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Projeto de alfabetização do MEC expõe face autoritária em curso no país, diz manifesto

Ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, durante lançamento do programa "Conta pra mim" no final de 2019. Foto: Gabriel Jabur/MEC

“O programa ‘Conta pra mim’, lançado pelo Ministério da Educação [MEC] no final de 2019, expõe mais uma face do projeto autoritário em curso no país”. A afirmação está contida em um manifesto lançado nesta quarta-feira, 30, e assinado por diversos profissionais e entidades, mas ainda aberto a novas adesões.

Intitulado “Não ao retrocesso nas políticas públicas do livro e da leitura”, o documento diz que o “Conta pra mim”, que oferece cartilhas, vídeos e livros em um site criado pelo Ministério, é “sustentado por concepções ultrapassadas, preconceituosas e excludentes de educação e de família”.

“Dentro de uma proposta denominada ‘Literacia familiar’, [o programa] nega-se a bibliodiversidade, característica da produção editorial brasileira, ao serem disponibilizados livros com formatos idênticos, com a mesma proposta de ilustração, em títulos e gêneros diversos, adaptações restritas de narrativas clássicas, representadas com linguagem empobrecida”, diz o manifesto.

“Esse programa do atual governo decide privilegiar narrativas que estabelecem verdades prontas e fechadas ao invés de proporcionar um repertório que contemple os conflitos, os desejos, os medos, as alegrias e os sonhos humanos, com convites para caminhos plurais”, criticam os signatários do manifesto.

“Depois da matéria da revista quatro cinco um, “Conta outra“, assinada por Rubens Valente, vários profissionais do livro e da leitura – que já estavam incomodados com o Programa Conta pra mim (MEC) – começaram a se manifestar nas redes sociais, contrários ao Programa. Na tentativa de articular de forma organizada a insatisfação geral, alguns autores e ilustradores de livros infantis, professores e pesquisadores criaram um grupo no Facebook reunindo outras tantas pessoas para a escrita de uma primeira versão do manifesto”, afirmam os idealizadores do manifesto.

Segundo eles, “não se trata de um artigo ou dossiê sobre o assunto, mas de um manifesto escrito que tenta contemplar as principais indignações de profissionais da educação e da cultura no que diz respeito à esse Programa. Ao lançarmos o manifesto, rapidamente tivemos adesão de pessoas de todo o Brasil, para além deste círculo inicial”.

De acordo com a portaria que instituiu o programa, o “Conta pra mim” integra a Política Nacional de Alfabetização e tem como objeto a efetivação da “promoção de práticas de literacia familiar”, bem como das disposições contidas no chamado “Marco Legal da Primeira Infância”, instituído pela Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016.

A portaria que institui o programa conceitua como “literacia familiar” o “conjunto de práticas e experiências relacionadas com a linguagem, a leitura e a escrita, as quais a criança vivencia com seus pais ou cuidadores”, estabelecendo como público-alvo “todas as famílias brasileiras, tendo prioridade aquelas em condição de vulnerabilidade socioeconômica”.

Pelo menos 3.959 municípios brasileiros aderiram ao “Conta pra mim”, o que representa 71% do total em todo o país. O programa também informa que a partir de 2021 será instituído um prêmio com incentivos financeiros para professores, diretores e coordenadores pedagógicos que obtiverem bom desempenho em alfabetização. A proposta ignora outros profissionais como, por exemplo, bibliotecários e mediadores de leitura.

Até o fechamento dessa reportagem o documento já contava com cerca de 1.400 assinaturas de profissionais dos mais diversos segmentos ligados ao livro e à educação. Veja abaixo a integra do manifesto “Não ao retrocesso nas políticas públicas do livro e da leitura” que está aberto a novas assinaturas, o que pode ser feito clicando aqui:

“O programa Conta pra mim, lançado pelo Ministério da Educação no final de 2019, expõe mais uma face do projeto autoritário em curso no país. Sustentado por concepções ultrapassadas, preconceituosas e excludentes de educação e de família, oferece à primeira infância (crianças de zero a cinco anos) e às suas famílias produtos (cartilhas, vídeos, “livros”) e muita propaganda sobre o que alguns desconhecidos elegeram, a partir de valores morais e religiosos, como o certo e o errado, o bom e o mau, o bonito e o feio. Desconsiderando o vasto e qualificado conhecimento acumulado de pesquisas sobre a literatura infantil e formação de leitores,  experiências sobre leitura e infâncias e a intensa criação e produção editorial brasileiras, que contam com reconhecimento e prêmios nacionais e internacionais, de outras políticas públicas exitosas já implementadas, o programa do Governo Bolsonaro, coerente com a atuação do atual Ministério da Educação, investe na conformação e na redução de horizontes para o livro e a leitura no país. Dentro de uma proposta denominada “Literacia familiar”, nega-se a bibliodiversidade, característica da produção editorial brasileira, ao serem disponibilizados livros com formatos idênticos, com a mesma proposta de ilustração, em títulos e gêneros diversos, adaptações restritas de narrativas clássicas, representadas com linguagem empobrecida. Além disso,  desconsidera-se   sua materialidade – que livro é esse que pode ser lido on line e impresso em casa (como se toda casa brasileira tivesse condições materiais para isso), inclusive em formatos para colorir?  

Nós, educadores (as), professores(as), bibliotecários(as), pesquisadores(as), escritores(as), ilustradores(as), editores(as), mediadores(as) de leitura, narradores(as) de histórias, produtores (as) culturais, agentes comunitários(as), mães, pais, avós e todos os (as) que nos dedicamos à educação e à cultura das infâncias, recusamos uma iniciativa que não considera as crianças e as famílias brasileiras e suas condições objetivas e subjetivas para ler; que desconsidera a importância da escola como espaço privilegiado para a formação de leitores; que despreza nossas pesquisas e experiências em função de conceitos mal compreendidos e aplicados de maneira aligeirada. Dizemos não a esse programa e reiteramos nosso compromisso formativo na relação entre crianças e livros, ou melhor, bons livros.  

Mais que de histórias bonitas e divertidas para passar o tempo com os pequenos, os livros (texto, ilustrações, formatos) são feitos de ideias. Nos livros de literatura, a criança encontra aberturas diversas para compreender o mundo, que é grande e complexo. Esse programa do atual governo decide privilegiar narrativas que estabelecem verdades prontas e fechadas ao invés de proporcionar um repertório que contemple os conflitos, os desejos, os medos, as alegrias e os sonhos humanos, com convites para caminhos plurais. A oferta da língua que narra, canta, orienta, comunica, ordena e subverte já é promessa de alguma liberdade. Entender e se apropriar da língua, falada ou escrita, ampliam os horizontes do pensamento. Em contato com os livros e a leitura, desde muito pequenas as crianças começam a participar da cultura escrita. E começar cedo não quer dizer aprender a decifrar precocemente símbolos gráficos, sair na frente para competir, mas significa, isso sim, contar, desde os primeiros dias de vida, com a abertura para novos  horizontes, que as ajudem a compreender o tempo e o espaço em que vivem e as relações de que participam.  

Por isso e considerando conquistas como a Política Nacional de Leitura e Escrita e a trajetória do PNBE, dizemos coletivamente não ao Conta pra mim e exigimos a elaboração de um programa que incorpore uma revisão conceitual e executiva, com processos transparentes, que incluam efetivamente os vários agentes que se dedicam ao tema, desde o planejamento das ações até a criação, a produção e a distribuição dos livros.

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