O ano é 2020 e o século é o XXI, mas, infelizmente, precisamos falar sobre assuntos que permeiam a dinâmica social, desde tempos idos. É surreal que precisemos falar sobre racismo em um tempo que empresas particulares estão mandando pessoas para fora da órbita da Terra, numa tentativa de iniciar a exploração de turismo espacial. Como podemos ser tão pré-históricos e querer conquistar o espaço ao mesmo tempo?!
Como não é segredo para ninguém, vivemos uma devastadora pandemia, causada por um vírus que possui alta taxa de contágio e uma letalidade considerável. Embora possamos nos vangloriar de que os números de pessoas curadas da Covid-19 sejam altos, não podemos esmorecer e abrir a guarda, bem como esquecer de que esta doença vai mudar e muito nossas relações sociais, assim que pudermos voltar as nossas atividades anteriores, que doravante serão chamadas de “novo normal”.
Enquanto o mundo se esforça para conseguir uma vacina que determine o fim do contágio pelo novo coronavírus, práticas antigas insistem em perpetuar-se no meio das ditas sociedades evoluídas. Você que me dá a honra da leitura já deve imaginar que estou me referindo ao episódio ocorrido no último dia 25 de maio, na cidade Minneapolis (EUA), em que o policial Derec Chauvin matou um homem preto, ex-segurança, que atendia pelo nome de George Floyd, com os joelhos sobre o seu pescoço e com uma das mãos no bolso da calça.
Diante do ocorrido, uma série de manifestações pedindo justiça para Floyd e severas punições aos envolvidos tomaram conta de várias ruas em diferentes cidades dos Estados Unidos, gerando comoção, revolta e franca adesão ao movimento. Casos pontuais de descontrole urbano foram registrados; pessoas das mais diversas vertentes tentaram surfar na onda com um pseudo discurso de paz, sem ao menos buscar entender a moção que faz com quê pretos e pretas estadunidenses estejam nas ruas dando um grito de basta!
Diferentemente do que ocorre no Brasil, as relações raciais nos Estados Unidos são bem acirradas. Por lá, de maneira explícita, brancos e pretos travam verdadeiras batalhas, nem sempre bélicas, com vistas a manter suas posições. Claro que nessas batalhas a população preta sofre consideravelmente mais dos que as outras, e quando se fala das outras aqui, não se refere da população anglo-americana.
Historicamente falando, os pretos estadunidenses sofreram perseguições gigantescas durante anos, orquestradas por uma organização terrorista que atende pela alcunha de Ku Klux Klan. Diversos pretos e pretas foram assassinados por essa organização, bem como diversas casas, igrejas, clubes de pessoas pretas foram incendiados. Raros foram os processados e que cumpriram sentenças por isso; para ficarmos apenas com um exemplo.
Aqui vai uma dica de leitura! Um excelente livro que mostra em por menores as relações entre pretos e brancos no Sul dos Estados Unidos, em que uma menina preta, desde tenra idade, teve que aprender como é difícil ser preta e mulher numa época de latente estratificação social e de gênero. Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, da escritora e poetisa Maya Angelou, é um excelente (e forte) texto para nos ajudar a entende um pouco das relações sociais e interétnicas no país supracitado.
Retomando ao raciocínio inicial. Durante os dias que se seguiram ao assassinato de George Floyd, assisti vários programas, vídeos em redes sociais, pessoas dando diversos tipos de depoimentos sobre o tema. O que me chamou mais a atenção, no entanto, foi a insistência de âncoras de tevê, com os repórteres de rua, sobre a existência de uma pauta entre os que protestavam. Vamos analisar o que fora mencionado acima.
Milhares de pessoas foram às ruas protestar contra a brutal morte de um homem preto por um policial branco. É flagrante esse tipo de episódio nos Estados Unidos. Pessoas de outras, cidades em diferentes países, também saíram às ruas pelo mesmo motivo. Bom, parece-me bem claro que a pauta do movimento que tomou às ruas é a antirracista; também te parece?
Ao ouvir âncoras da Globo News e da CNN constantemente perguntarem sobre uma pauta para as manifestações, fica (mais) claro como o racismo estrutural é poderoso, e, tudo que diz respeito ao povo preto, precisa de algo “maior” a reboque para ser chancelado.
A pauta antirracista é a maior pauta de luta contra todos os preconceitos, e eu explico isso. Uma pessoa LGBTQI+ (dos chamados discretos), ao chegar em um lugar e se for preta, vão olhar primeiro para a cor da pele dela; uma pessoa pode ser milionária, mas se for preta, vão olhar primeiro para a cor da pele dela, e por aí vai. Dificilmente as pessoas não pretas vão buscar saber sobre a pessoa preta que está diante de si; buscar-se-á enquadrá-la em todos os estereótipos já existentes, em que todos os pretos e pretas estão inseridos.
Posteriormente, sabendo que a pessoa é LGBTQI+, pobre, de outras regiões e/ou países ditos inferiores, somar-se-á ao fato da negritude, aumentando assim o grau de rejeição devido o preconceito. Só um adendo: se for mulher preta então, a rejeição é maior, como questionou Sojourner Truth, uma mulher preta estadunidense do século XIX: “não sou eu uma mulher?!”
A nossa construção social é permeada de exemplos em que o povo preto foi condicionado a posição de subclasse, ser inferior, meros serviçais. Os livros de histórias estão aí para nos relatar a brutalidade que foi empregada na captura, comercialização (ainda em África), transporte, condições sanitárias, chegada, outra comercialização etc., nos tempos em que durou a grande diáspora.
Sabemos bem como o Brasil manteve em cativeiro durante 350 anos homens, mulheres, crianças, jovens, velhos e adultos. Podemos explicar sem muito teoria como se deu a imensa massa de pessoas pretas, sobrevivendo em lugares inóspitos, com subempregos e péssimos salários, marginalizados, depois da fantasiosa abolição da escravatura.
Mesmo assim, temos que conviver civilizadamente com pessoas da mediocridade de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares. Um homem preto retinto que se presta ao papel de capitão do mato do século XXI. Não quero dizer que todos os pretos e pretas precisam estar em movimentos negros, mas todos e todas precisam ter uma pauta antirracista sim. Este senhor, de maneira flagrante, atua na contramão do que a Fundação Palmares deveria exercer. Ele não contribui com o debate antirracista, pelo contrário; ele está prestando um desserviço pleno e irrestrito.
Na quarta-feira, dia 03 do corrente, assistindo um programa na CNN Brasil, vi o jogador de futebol Daniel Alves estava dando uma entrevista. Durante o programa, a âncora Luciana Barreto (mulher preta) questiona o jogador da pouca adesão dos atletas brasileiros com a pauta antirracista em franca comparação com atletas estadunidense, que, vez e outra, protestam contra o racismo em suas participações em eventos esportivos.
Daniel, claramente desconfortável, começa a dizer, em outras palavras, que o fato de uma pessoa não se posicionar em redes sociais sobre o tema não significa que ela não esteja fazendo nada. Seguindo respondendo, o jogador disse que não quer dizer nada também, alguma pessoa fazer postagens nas redes sociais, e que ele não concordava com a frase: vidas negras importam; para ele, todas as vidas importam…
Ao ouvir o Daniel, me bateu uma raiva momentânea, mas depois me acalmei. Sei que o racismo estrutural é poderoso e estende seus tentáculos para toda a sociedade (vide o capitão do mato da Fundação Palmares), mas não me desce pela garganta ver um homem preto, com fácil penetração no mundo da publicidade e das redes sociais, negar sua existência enquanto pessoa preta, e contemporizar assuntos relacionados com a pauta antirracista.
Logo ele que foi vítima de um ato racista na Europa, quando arremessaram banana no campo, no local onde ele estava se preparando para cobrar um escanteio. Todas as vidas importam, Daniel, mas, para os racistas, as negras nada valem! Ao contrário do que vi na entrevista do Daniel Alves, eu pude ter a alegria de ver e ouvir duas mulheres pretas, se posicionando em defesa da luta antirracista, na mesma emissora.
Paula Lima (no dia 02/06), e Negra Li (no dia 03/06) deram aula de racismo estrutural, movimento antirracista, o racismo disfarçado a brasileira, a necessidade de fala de quem tem acesso aos canais de comunicação e, acima de tudo, o convite para que pessoas não pretas pudessem somar no movimento, e não se calar diante de uma situação de racismo. Não tenho a pretensão de que serei lido pelo Daniel Alves, mas se o fosse, deixaria a seguinte sugestão para ele: busque saber mais sobre sua etnia, e poderá entender mais sobre você mesmo!
É triste, diante de um cenário em que mais de 30 mil vidas foram ceifadas apenas no Brasil por conta de uma pandemia, nós precisamos ainda falar sobre racismo, sobre respeito, sobre empatia. É claro que não me queixo em ter que falar sobre o assunto, mas sim em saber que quase nada mudou no mundo sobre isso.
É realmente lamentável ter que voltar neste assunto diante de uma pandemia, mas não espere silêncio de mim quando o que fora feito ao George Floyd pode ser feito comigo, pelo mesmo motivo: ser uma pessoa preta. Como bem disse Angela Davis: “vamos nos erguer enquanto subimos”! Vidas negras importam!
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