Em outubro de 2017 a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, que estava em cartaz no Santander Cultural, em Porto Alegre (RS), foi cancelada pela instituição após uma série de protestos nas redes sociais. Acusada de fazer apologia à pedofilia, à zoofilia e de ofender a moral cristã, a mostra foi alvo de uma campanha, articulada principalmente pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e grupos religiosos, pedindo o seu fechamento.
O quadro Cenas do Interior II (ver baixo), uma das principais obras da exposição, de autoria da artista plástica Adriana Varejão, mostrava cenas de sexo entre duas figuras femininas japonesas, uma figura japonesa e um negro, dois homens brancos e um negro e duas figuras masculinas brancas indistintas com uma cabra, que divulgada sem contexto acabou por provocar a ira de muitos conservadores.
“Esta é uma obra adulta feita para adultos. A pintura é uma compilação de práticas sexuais existentes, algumas históricas (como as chungas, clássicas imagens eróticas da arte popular japonesa) e outras baseadas em narrativas literárias ou coletadas em viagens pelo Brasil. O trabalho não visa julgar essas práticas. Como artista, apenas busco jogar luz sobre coisas que muitas vezes existem escondidas”, disse Varejão ao GaúchaZH à época.
Dias depois a exposição tentou emplacar no Museu de Arte do Rio (MAR), mas foi proibida pelo prefeito Marcelo Crivella (PRB). “Saiu no jornal que vai ser no MAR. Só se for no fundo do mar”, disse Crivella em tom de deboche na ocasião. “A população do Rio de Janeiro não tem o menor interesse em exposições que promovam zoofilia e pedofilia”, disse o prefeito que é ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus.
Com a negativa da Prefeitura local, a exposição só chegaria ao Rio no ano seguinte após uma bem-sucedida campanha de financiamento coletivo que arrecadou mais de R$ 1 milhão. A remontagem no Rio contou com 223 obras de 84 artistas nacionais e internacionais, como Adriana Varejão, Alair Gomes, Alfredo Volpi, Cândido Portinari, Efrain Almeida, Guignard, Leonilson, Lygia Clark, Pedro Américo, Sidney Amaral e Yuri Firmeza, se tornando sucesso de público.
Ainda em 2017, a performance “La Bête”, realizada durante a abertura do “35º Panorama da Arte Brasileira”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), provocou uma onda de ataques aos organizadores e ao artista Wagner Schwartz. A polêmica em questão resultou de vídeos e fotografias registrados na exibição, em que uma menina, com não mais que cinco anos, aparece interagindo com o artista que estava nu.
A performance é inspirada na série de esculturas Bichos de Lygia Clark, desenvolvida nos anos 1960 e feitas a partir de chapas metálicas que devem ser manipuladas e manuseadas pelos espectadores para então se metamorfosear em diferentes formas, ou “bichos”. Por meio deste trabalho, o artista se transforma numa escultura performática, que assim como as esculturas, requerem a interação do público e dos espectadores para tomar vida.
Mais recentemente, governo do estado do Rio cancelou a exposição “Literatura Exposta”, na Casa França-Brasil (CFB), onde seria realizada uma performance, o que obrigou os artistas a fazerem uma apresentação na rua como forma de protesto. A mesma exposição já tinha sido censurada meses antes quando uma parte da instalação, “A Voz do Ralo É a Voz de Deus”, foi proibida por conter um áudio com declarações polêmicas do presidente eleito Jair Bolsonaro. O áudio foi substituído por uma receita de bolo.
Estes e uma série de outros fatos parecem comprovar a existência de uma investida conservadora contra a arte e os artistas no Brasil. Mas porque os conservadores têm tanto medo da arte e dos artistas? Para Álvaro Figueiredo, curador da “Literatura Exposta”, a arte tem o poder de apontar, questionar e até destruir conceitos fortemente estabelecidos, de uma forma muito simples: “aguçando instintivamente no observador suas emoções mais puras e genuínas, e contra isso é difícil criar resistência”.
Também é importante questionar se os ataques e atos de censura recentes às artes fazem parte de uma onda conservadora, como se tem dito, ou isso é um elemento integrante da cultura do brasileiro. Figueiredo acredita que são as duas coisas. “A onda conservadora está surfando nessa parcela da cultura e vice-versa. O risco é exatamente uma fortalecer a outra”, receia ele que considera ter havido censura à exposição da qual era curador.
O poeta, artista e colaborador da Biblioo, Rafael Lemos, acredita que a arte é perigosa porque ela é capaz de organizar a sensibilidade, sendo que, segundo ele, organizar a sensibilidade é o passo fundamental para bloquear o desespero do qual a direita brasileira se vale para chegar ao poder, se referindo as eleições recentes em que o eleitorado elegeu não só um Congresso Nacional bastante conservador, mas um presidente, Jair Bolsonaro, com uma plataforma profundamente alinhada com este tipo de pensamento.
Lemos afirma que a política de flexibilização adotada pelo governo (menos meio ambiente e mais indústria, menos direitos e mais empregos, menos leis e mais armas etc.) só é viável em conjunturas de desespero, onde a população se agarra de forma fácil a promessas que não se amparam na realidade, mas que agradam um eleitorado ressentido com a política, decepcionado com a corrupção e acuado pela violência, e que ao mesmo tempo despreza e educação e a cultura.
“Isso tem pouco a ver, me parece, com a condição material: é uma espécie de ponto cego, onde o marxismo tem dificuldade de atuar porque passou décadas se ocupando de emprego e produção. Nesse sentido, o marxismo se burocratizou, perdeu a sensibilidade para entender que o trabalhador também gosta de beleza, também quer uma arte para a revolução e que talvez ela não seja, paradoxalmente, necessariamente uma arte engajada, de combate, mas que seja uma arte que organize a sensibilidade”, explica.
Retomando o pensamento de Milton Santos, o artista explica que esta direita se vale de um estado existencial destrutivo do ser humano para reinar, onde o ser humano se vê obrigado a endurecer junto da brutalidade que está em seu entorno, sendo este um motivo fundamental pelo qual os conservadores tem tanto medo da arte, mas que nunca aparece explicitamente e que talvez não seja nem mesmo consciente para eles, se manifestando através das ações contra a arte.
Essas ações seriam, segundo Lemos, um misto de uma tradição anti-intelectual com ações planejadas. “A tradição anti-intelectual existente no Brasil não é de hoje, é reflexo de um país que foi criado na mão de latifundiários poderosíssimos, porém chucros. Chucros igual ao presidente atual. Essa tradição não significa que o Brasil é um país naturalmente conservador, mas que ‘aprender’ no Brasil sempre foi relacionado a ‘intervir’”, pondera.
Lemos explica que não é uma coincidência que os primeiros poetas da nossa tradição literária sejam formados em direito ou medicina e filhos de latifundiários: “porque eles absorviam a cultura geral (muitos iam estudar na Europa), enquanto estudavam para se tornarem homens da política brasileira. Acho que isso explica o Brasil ter poetas desde o século XVII, mas não ter músicos ou pintores, só anônimos”.
Para ele a anti-intelectualidade que corrói o Brasil hoje não é essa, é uma transplantada dos Estados Unidos da América, da cultura do self-made man, ou seja, o homem que é empreendedor e responsável pelo seu próprio sucesso, oriundo do protestantismo trabalhista, da cultura de uma país historicamente isolacionista, decididamente contrário aos fundamentos iluministas europeus.
“Os fundadores dos EUA não vieram pra cá obrigados, eles vieram porque não queriam mais aquela Inglaterra, queriam outra. Por isso as primeiras colônias se chamam New England. Essa cultura, apesar de ter dado grandes pensadores da liberdade, não tem alimentação da arte, só a arte realista, com fins de registro. E não tem a Igreja Católica como patrocinadora de arte”, pondera ele que hoje faz mestrado na Universidade de Yale nos Estados Unidos.
Lemos acredita que a arte protestante é muito pobre, porque o fundamento do protestantismo é o trabalho útil e o da Igreja Católica é o ócio. Para ele essa cultura do trabalho produtivo a qualquer custo vem sendo transplantada, com maior ou menor grau de planejamento ideológico, há décadas para o Brasil, através dessas igrejas, que prepararam o terreno para uma direita como a atual, refrataria as diferenças.
“Essa igrejas tiveram um papel mais ou menos consciente no apagamento de uma cultura popular rica e revoltosa como a brasileira: toda a cultura de terreiro, associações de negros, a roda de samba como âmbito de preservação de uma cultura marginalizada, a troca entre a cultura negra e os ritmos nordestinos, isso tudo começa a ser abertamente reprimido pelos protestantes”, garante.
Aos elementos religiosos e culturais se acrescenta um cenário político e econômico bastante desfavorável após 15 anos de bonança. “Com o recesso econômico, uma população que estava acostumada com um poder aquisitivo durante o governo PT e já solapada internamente há décadas pela cultura em que não existe maior vergonha que não trabalhar, a americana, era natural que o primeiro burrão que batesse à porta falando atrocidades ganhasse o jogo”, acredita Lemos se referindo à Jair Bolsonaro eleito presidente em 2018.
Ainda durante o período de bonança econômica houve uma supervalorização dos artigos de luxo em detrimento da arte que é empurrada para um segundo plano. “E aqui aparece o erro do PT de ter investido em poder aquisitivo, mas não em uma educação política de base. Treze anos no poder dava pra formar uma geração de eleitores ferrenhos, o que não foi feito. Então o pobre vai trabalhar para ostentar whisky e energético, mas não vai no teatro nem que seja de graça”, lamenta.
“O Brasil nunca foi um lugar conservador, de ideologia de gênero conservadora: olhe a literatura histórica: tem sempre gay, travesti, prostituta, português que sai de casa, casa com a prostituta e vira seresteiro, a madame que se assanha com o negro… É uma sociedade violenta, onde a miscigenação está marcada pelo estupro, sem dúvida. Mas também é uma sociedade, sobretudo nas camadas populares, que sempre foi muito aberta para fora da hetero-normatividade. Então acho que aí entra o segundo motivo do combate à arte: é preciso combater a arte para parecer que o governo está colocando o país nos eixos morais”, garante.
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