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Pensem nas crianças, mudas, telepáticas

A convicção de que a leitura, a literatura salva, transforma. Essa convicção enquanto há gente que se esgueira pela vida. Estamos em guerra. Ou não é guerra o que deixa crianças e adolescentes à beira do abismo, esfameadas(os), desidratadas(os) de cuidados, pilhadas(os) de dois anos de ausência de escola, descobertas, encontros, cuidados, afetos. Tempos em que a matemática mais presente é a contagem de corpos. Ausências. Mães. Pais. Irmãs. Irmãos. Avós. Avôs…. É pra somar ou subtrair? Tempos de fome. Multiplicação. Tempos sem tempo de parar para acolher suas vidas. Como na guerra, os corpos caem e é vida que segue. Que vida? Quem vive? Vive como? Vive “apesar de”? Vive “o que temos pra hoje”?

O que você lê para crianças/adolescentes cujos corpos são o campo minado dessa guerra? Como você diz pra elas/eles que se não sabem ler não é culpa delas/deles? Com quais palavras você as/os embala, as/os protege, as/os acaricia em tempos em que fome é mais que substantivo,  é verbo-resultado de inação? 

“Sem cor, sem perfume, sem rosas, sem nada”.

Diz pra mim? Que poemas e histórias você lê para crianças/adolescentes? Subtraídas(os). Como você ensima o “mais”. Mais com mais dá mais. Multiplique e divida. O que estamos dividindo/partilhando com elas(eles) que não é pesar? Subtração de autoconfiança. De esperança já nem falo. Não dá para esperar. Não mais. Nem menos.

O que posso eu? O que pode você? O que podemos a leitura e a literatura em tempos de guerra e pilhagem contra a infância e adolescência, contra a vida? 

Que leituras propomos nós que defendemos o direito à literatura como bem incompressível? Que defendemos bibliotecas pulsantes abertas às comunidades em todas as artérias geográficas da presença humana? Nós, aqui, em tempos em que desaparecem bibliotecas e fervilham clubes de tiro. Eu? Eu não sei. E não sabendo, escrevo a você. Eu escrevo com agonia vizinha da agonia com que escreveu João Cabral à Carlos Drummond. É a dor. É o luto.

 “Pensem nas feridas  como rosas cálidas”.

Você sabe o que é contínuo curricular? Não? Sabe? Confira: os anos letivos de 2020 e 2021 foram juntados para evitar aumento de reprovação. Sabe o que significa? Verbo no passado, pilharam; matemática no presente, dois anos de aprendizagem e convívio. O que isso está significando você encontra aqui, onde de novo se escancara a desigualdade: estudantes negras(os) e mais pobres foram mais impactadas(os). Há déficitis abissais, mais precisamente nas áreas de língua portuguesa e matemática. Imagine o que isso significa: dois anos sem aulas e de repente estão numa sala repleta de estudantes que têm em comum esse hiato de espaço e tempo, quando viram a vida subtrair ao seu redor, partilhando essa fome de tudo e de tanto. E eis que de repente estão sendo inundadas(os) de palavras sem verbo de ligação, sendo depositórios de repertórios, com pouca ou nenhuma possibilidade de compreensão. 

Pode-se pensar que um planejamento cuidadoso foi realizado e agora em todas as escolas do país professoras e professores foram devidamente apoiadas(os) e sabem exatamente e muito bem como acolher e envolver exitosamente as crianças numa jornada de aprendizagem que lhes assegura uma jornada acadêmica exitosa no ano curricular para onde foram “continuadas(os)” e sem qualquer ônus à sua autoconfiança. Sim, porque o contrário de uma oferta como esta implicaria em que crianças, adolescentes e também docentes sejam atravessados por uma profunda sensação de incapacidade e fracasso, não é? Só que não é o que está ocorrendo.

Há uma enormidade de desafios que demandam cuidados, delicadezas, prontidão. E não temos evidências de que há em campo uma rede de cuidados à altura do desafio.

Crianças e jovens já estão sentenciados como dados estatísticos de defasagem

Quando a vida se torna estatística, ao invés de matéria prima para pensar ações de cuidado em tempo real, no chão em que se pisa, perdemos todus. Não faltam dados. 

Deveríamos estar, todas as gentes, sem exceção, com indignação em riste, em movimento, cobrando ações concretas para pôr fim a este estado de guerra. Eu não sei, mas me parece que somos uma sociedade em suspensão, alheia à pilhagem que está em curso. É o que temos para hoje?

Estamos colecionando estatísticas:

2013: A maioria dos alunos que concluem o 3º ano não sabem ler nem fazer conta

2017: Mais de 50% dos alunos do 3º ano tem nível insuficiente em leitura e matemática

2022: Mais de 50% dos estudantes que chegam ao 3º ano do ensino fundamental sem ter habilidades básica de leitura

“Mas oh não se esqueçam da rosa da rosa, a rosa radioativa estúpida e inválida”

O Congresso Nacional sabe sobre o caos reinante que afeta cerca de 37,5 milhões de estudantes (85,4% do total) que frequentam as redes públicas municipais e estaduais. Sem falar da rede privada, que também porta uma bagagem repleta de defazagens.

Em 2021 foi constituída uma subcomissão temporária para acompanhamento da educação durante a pandemia. Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (e diversas outras pessoas que atuam em defesa da educação básica) esteve lá, comentou o fato de a comunidade escolar estar com medo da volta presencial e questionou: ”Que educação se faz com o medo? Que educação se faz sem condições? Então, do ponto de vista pedagógico também, não é o caso de voltar sem condições sanitárias”.

O cenário foi devidamente apresentado e explorado. Falouse-se sobre a ampliação das desigualdades, o desafio ampliado em função da insegurança alimentar devido à descontinuidade do fonecimento de alimentos para estudantes, o cuidado com a saúde dos profissionais da educação, a precarização do trabalho docente, o desenvestimento na educação básica, os riscos de reabertura das escolas sem as garantias dos protocolos de biossegurança (veja aqui manual super cuidadoso elaborada pela equipe da Campanha).

Um relatório foi produzido apontando 3 eixos de ação: (1) avaliar os impactos, (2) debater planejamento e boas práticas no retorno das aulas presenciais e (3) debater uma agenda estratégica para os próximos anos para recuperar as perdas. Ele também contém recomendações para os Ministério da Educação, da Saúde, da Economia, Tribunal de Contas da União.

Neste relatório consta a avaliação do TCU referente à qualidade da gestão do MEC para fazer frente a este estado de calamidade da educação básica. Ouça:

“… as ações levadas a cabo pelo MEC se mostraram fragmentadas, intempestivas e sem foco específico para a resolução dos problemas enfrentados pelas redes de ensino da educação básica, decorrentes da pandemia, em prejuízo ao fortalecimento do auxílio aos entes subnacionais, no contexto do regime de colaboração. Tal ação decorreu, em grande medida, da falta de monitoramento adequado e tempestivo da situação dos entes, o que pode agravar ainda mais as desigualdades educacionais, com retrocessos nas metas do PNE, além de comprometer a busca conjunta por soluções e a disseminação de boas práticas”. (TC 040.033/2020-1)

Um ano após o encontro, como estamos? Andressa comenta: “Além da falta de articulação federativa, o país ainda vive desafios de articulação intersetorial. Muito disso não é somente por falta de vontade política: até onde há vontade política de construir uma teia de cuidados e de direitos, faltam condições mínimas de estrutura para efetivar as ações necessárias, por falta de financiamento em todas as áreas sociais, asfixiadas por uma política econômica para poucos e não para todos”.

As eleições estão aí, logo aqui. Quais compromissos pela educação estão assumindo candidatas e candidatos? É preciso ser intransigente quanto à priorização do atendimento às necessidades fundamentais da educação básica, “gratuita, laica, inclusiva, equitativa e de qualidade com financiamento adequado para todas as pessoas residentes em território brasileiro”, que deve estar contida nos planos de governo e mandato. Aqui você encontra a Carta Compromisso pelo Direito à Educação nas eleições de 2022 produzida e referendada pelas organizações que integram a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Uma escola onde estudar faça sentido, instalada numa rede de cuidados, onde crianças e adolescentes poderão de fato apropriar-se da palavra para compreender a realidade e se compreender nesta realidade, não para adaptar-se a ela, mas para transformá-la. Um lugar onde será possível ler literatura como experiência e experimentar a potência de recriar o mundo, como nos disse Paulo Freire. Uma escola onde ler seja verbo de emancipação humana.

Porque não há vida possível destacada de seu contexto, sem considerar as condições objetivas em que ela se dá e na qual estamos inseridas(os). Ninguém recria ou fabula em suspensão. Nosso planeta não seria possível sem a força gravitacional que o sustenta. É ingenuidade pensar que podemos colar com poesia os fragmentos de vida estilhaçados pela negligência.

“Pensem nas crianças, mudas, telepáticas
Pensem nas meninas, cegas, inexatas
Pensem nas mulheres, rotas alteradas
Pensem nas feridas, como rosas cálidas

Mas, oh, não se esqueçam da rosa, da rosa
Da rosa de Hiroshima, a rosa hereditária
A rosa radioativa, estúpida e inválida

A rosa com cirrose, a anti-rosa atômica
Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada”

Rosa de Hiroshima, Vinícius de Moraes

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