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Para além do bang-bang, “Godless” fala sobre como o destino é apenas um sopro

Uma intensa nuvem de fumaça revela, aos poucos, a chacina de uma pequena cidade. Homens, mulheres e crianças furados por balas tombam no chão. Estamos em meados do século XIX, embasbacados com a sanguinolência praticada em Creede, cidade localizada no Colorado. De imediato, percebemos que a poeira da terra, a estrutura e o isolamento do lugar revelam que se trata de uma narrativa de faroeste. Mas “Godless” (2017) não é apenas isso.

Lançada pelo Netflix no final do ano passado, a minissérie vai, no seu ritmo, aproximando o espectador insistente de um cenário impiedoso e esteticamente impecável. Mas é preciso ter calma, pois a trama é bem mais lenta do que os disparos audaciosos que acompanhamos em filmes do gênero. Criada e dirigida por Scott Frank, Godless é um dos melhores lançamentos de 2017. O enredo western ganha toques especiais ao trazer mulheres como protagonistas. Aqui, elas não são as esposas de xerifes ou foras-da-lei: elas são as próprias matadoras.

Série foi lançada ano passado pela Netflix. Foto: Divulgação

Toda a perseguição sangrenta começa quando o criminoso com paranoia religiosa Frank Griffin (Jeff Daniels) parte em busca de Roy Goode (Jack O’Connell), um dos membros de seu bando que o abandona e trai. Roy é tido pelo perigoso fora-da-lei como um filho, portanto, sua traição não pode ser perdoada. Ferido, Roy vai parar no rancho de Alice Fletcher (Michelle Dockery), a fazendeira casca-dura mais resoluta dos últimos tempos. Enquanto procuram pelo antigo protegido, Frank e seu bando provocam um verdadeiro massacre em todas as cidades e vilarejos por onde passam. O rancho de Alice Fletcher fica próximo à cidadezinha de La Belle, onde mulheres fazem a coisa acontecer depois que 99% dos homens do local morreram em um grave acidente ocorrido em uma mina alguns anos antes.

Enquanto isso, nós, espectadores, acompanhamos calmamente a história de outros personagens. Além do enredo principal, há tramas periféricas instigantes, como a da já citada Alice Fletcher, fazendeira de etnia branca que toca um rancho com o filho e a sogra, ambos indígenas, angariando preconceito e indisposição das redondezas (lembre-se: a história se passa em meados de 1800); Mary Agnes McNue, (Merritt Wever) que perdeu o marido no acidente da mina e, com seu temperamento forte, é praticamente uma xerife para a cidade – já que o irmão, o xerife Bill McNue (Scoot McNairy), vive às voltas com problemas físicos e emocionais -, e o jovem assistente de xerife Whitey Winn (Thomas Brodie-Sangster), órfão de pai e mãe, que vive por conta própria na cidade e, na minha sincera opinião, é o homem mais corajoso de La Belle. Há também o grupo que vive em Blackdom, vilarejo próximo de La Belle constituído por integrantes do Buffalo Soldier (regimento formado pelo exército dos Estados Unidos e composto por negros), escondendo na pele de agricultores verdadeiros pistoleiros profissionais.

Com o avançar da história, descobrimos mais sobre Frank Griffin e sua obsessão em ser “O” predestinado, “O” escolhido e “O” ungido, destinado a uma missão especial ligada à ideia de virtude, conquista e benção divina. Mas, se tem uma coisa que Godless nos ensina, é que o destino é apenas um sopro. Ou seja: em uma terra devastada, sem Deus, não há espaço para salvadores. Uma das cenas mais emocionantes da minissérie se dá com o enfrentamento das mulheres de La Belle contra o bando de mais de 30 homens de Griffin (fortemente armados, diga-se de passagem).

Com atuações de ponta, Godless tem vários destaques, o que torna difícil apontar esse ou aquele. Mas me atrevo a destacar o trabalho de Michelle Dockery, que não deixou a desejar no papel de mulher linha dura, aliando beleza à inteligência emocional e intelectual. Durante quase seis anos, Michelle interpretou a aristocrata Lady Mary Crawley na aclamada série Downton Abbey, e foi uma agradável surpresa perceber que a atriz pode transitar – sem incorporar trejeitos – tanto pela hora do chá, servido impecavelmente em xícaras de porcelana, quanto pelo poço fundo na terra áspera.

Se você ainda não assistiu ao faroeste mais encantador dos últimos tempos, a hora é agora.

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