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Os limites no regime democrático e o perigo da desinformação

Sara Geromini é líder do grupo 300 do Brasil. Foto: Agência Pública

Ao parar e pensar que a humanidade já vivenciou episódios grandiosos durante os milhares de anos que estamos peregrinando sobre à Terra, fico perplexo quando me deparo com algumas situações, digamos, vexatórias, de pessoas que têm instrução, foram alfabetizadas, mas parecem não entender o que um texto curto e simples quer dizer.

Minha cara, meu caro, estamos vivenciando tempos extraordinários! Se Eric Hobsbawm, historiador marxista britânico, afirmou que o século XX foi breve, Alcantara, ou seja, eu, afirma que o século XXI nem ao menos começou. Brincadeiras à parte (até mesmo para suportarmos a tensão dos últimos tempos), vamos ao tema que norteia esta reflexão.

Muito se falou nos últimos meses, sobretudo aqui no Brasil, da famosa e celebrada liberdade de expressão. E você, sabe o que é a liberdade de expressão? Sabe os limites da liberdade de expressão? Há limites para a liberdade de expressão? Não prometo dar todas as respostas e esses questionamentos, mas podemos refletir juntos, e chegarmos a um denominador comum; topa?!

A nossa Constituição Federal, conhecida como Constituição Cidadã, promulgada em 5 de outubro de 1988, é a nossa Carta Magna mais abrangente. Nela encontramos garantias estabelecidas, que não estavam contidas nas outras (e olha que o Brasil já teve 6 constituições antes da atual).

Embora seja relativamente longa (e deveras emendada), nossa Constituição traz uma riqueza de detalhes que vale a pena a leitura. Todavia, uma parcela considerável da população brasileira, principalmente nestes tempos de pós-verdade das redes sociais e sem muita apuração, prefere deparar-se apenas no art. 5º do capítulo I, do chamado Título II: Dos direito e garantias fundamentais. E, pasme-se, não são todos os 73 incisos que estão na “boca do povo”; eles gostam apenas de uns poucos incisos do quinto artigo.

“É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Este é o mais falado, defendido, aclamado inciso da Constituição Federal, evocado nos últimos tempos. Lembra da perplexidade que relatei no primeiro capítulo? Pois bem, vamos a ela.

O texto citado na íntegra por mim diz respeito ao inciso IV, entretanto, no inciso seguinte, já vem uma advertência à livre manifestação do pensamento, vejamos: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. O que me deixa perplexo é que diversas pessoas ficam bradando que têm direito de falar o que quiser, e nem ao menos tiveram a coragem de ler o inciso abaixo, que tem dois versos e meio apenas

Ainda na Constituição, o inciso X do mesmo capítulo mostra-nos a seguinte sentença: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua vida”. Na minha visão de curioso, e não jurídico, eu enxergo neste inciso, mais uma advertência à liberdade de expressão, ou seja: a liberdade não flerta com o crime; é preciso respeitar os limites estabelecidos!

Muitos exaltam à democracia como um dos melhores regimes políticos já implantado. Maquiavel diria que o melhor regime é aquele em que um só tome as decisões, ou seja, à tirania. Estudando ciência política, e abandonando as paixões da militância, além de ancorar-se em outros autores/pensadores das leis e das instituições, a fala do florentino faz um certo sentido.

O grande e letal problema da tirania não é o poder nas mãos de uma só pessoa, mas o abuso que essa pessoa pode fazer do seu poder; mas isso é assunto para outro texto. Voltando à democracia, ela é exaltada porque permite que a maioria tome as decisões, o que Alexis de Tocqueville chamou de tirania da maioria, em um capítulo do seu mais aclamado livro: A democracia na América.

Sendo à democracia um regime em que prevalece a vontade da maioria, muitos tendem a achar que, por ter elegido um político para um cargo do Executivo, por exemplo, podem tudo. Não, não podem tudo! A democracia garante largas vantagens, mas não a de cometer crimes.

Isso que parece não fazer sentido na cabeça das pessoas que, flagrantemente cometeram crimes nestes últimos dias, e pensam que estão resguardados pela Carta Magna. Muitos acreditam que com o acesso aos mecanismos eletrônicos que possibilitou que um sem número de pessoas tivessem informação, as leis fossem suprimidas, pelo contrário, quanto mais se sabe e se fala, mais responsabilidade será exigida de quem comete excessos.

Bom, vamos tentar colocar a realidade nossa dos últimos dias, neste contexto teórico traçado até aqui. Para melhor analisarmos a questão, vou trazer duas personagens do mundo real para a análise, afim de nos ajudar a entender os limites da chamada liberdade de expressão. Vamos começar pelas damas.

Há três semanas à Polícia Federal deflagrou uma operação que alcançou algumas pessoas do universo “bolsonarista”, dentre elas, uma senhora de nome Sara Geromini. Sara, líder de um movimento chamados de “os 300 do Brasil”, gravou um vídeo, logo após os policiais deixarem sua residência. Até aí, tudo bem, não é proibido gravar vídeo. Porém, o que fora dito no vídeo é o que precisamos analisar.

Ao se referir ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes no dito vídeo, Sara afirma que se estivesse na presença dele, o chamaria para cair na porrada. Por enquanto, tudo bem na liberdade de expressão? Sim! Todavia, ao chamar o ministro de arrombado, que transformaria a vida dele em um inferno, que não o deixaria mais em paz até ele pedir para sair, que iria descobrir quem trabalhava na casa dele e com isso atingi-lo, isso é ameaça, e segundo o código de processo penal, configura-se como crime! E olha que a dita senhora está sendo investigada por outros indícios de crimes, mas não são relevantes para exemplificação nesta reflexão.

Os apoiadores do presidente, os que têm mandato e os que não dispõe do mesmo, fazem um estardalhaço nas redes, nos programas de televisão e de rádios, em jornais, em defesa da liberdade de expressão. Será que essas pessoas não leram o inciso V do artigo 5º do primeiro capítulo da constituição? Ameaçar agora está amparado pela garantia da liberdade de expressão? Você entende que há limites e responsabilidades naquilo que se fala e/ou escreve?

Enquanto isso na “Educação”

A outra personagem que trago para sustentar a análise é o polêmico, mal educado, debochado, iletrado (grifos meus) Abraham Weintraub. O, não sei como, ministro da Educação do governo federal vive falando o que lhe vem à cabeça. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril passado ele, falastrão de primeira hora, disse que, por ele, mandaria prender todo mundo, a começar pelos “vagabundos do STF”, sugerindo que estes são crminosos.

Aqui temos duas questões técnicas. Como homem público, ele não pode tomar ciência de um acontecimento ilícito e silenciar, sob pena de estar prevaricando, logo, se ele sabe que os ministros do supremo são bandidos, deveria apresentar uma notícia crime. Agora, se ele apenas falou que os ministros do Supremo são bandidos, sem ter provas para sustentar isso, ele comete crime contra a honra (calúnia), tipificado no Código Penal.

Afim de deslegitimar a decisão do decano do STF, Celso de Melo, em tornar a supracitada reunião pública, simpatizantes do governo federal fizeram uma campanha, principalmente nas redes sociais, alegando que a reunião era secreta, e como tal, não deveria ter seu conteúdo revelado. Se a reunião era com pessoas públicas, que ocupam cargos públicos, e em prédios públicos, a reunião, necessariamente é pública!

Lembram do grampo ilegal (pois já havia acabado o prazo dado pela justiça, e tinha uma pessoa com prerrogativa de foro, que não deveria ser investigada por juiz de primeira instância) feito e divulgado por Sergio Moro, em que a ex-presidenta Dilma conversa com o também ex-presidente Lula, e que muitos vieram à tona dizendo que era de interesse público?!

Repito aqui para não ficar dúvidas no ar: liberdade de expressão é garantia constitucional e, contra isso, ninguém prosperará. Ofensas e ameaças, dentre outros crimes que podemos vocalizar, são excessos que precisam ser contidos pela lei, haja o que houver. Se você ainda tem dúvidas de qual é a linha que separa liberdade de expressão e crime, coloque-se no lugar da pessoa que foi atingida, e tire suas conclusões. Esta é uma boa maneira que eu encontrei para limitar o que digo e escrevo, para ficarmos com dois exemplos.

O que se percebe atualmente é uma algazarra de opiniões, análises, teorias que surgem dos mais diversos lugares. Enquanto profissional da informação que sou, fico atento a tudo, filtrando tudo, e tiro conclusões. Umas das conclusões que pude tirar nestes dias de isolamento em casa foi a seguinte: o presidente da República, bem como seus adeptos, alguns parlamentares e até jornalistas, estão (de maneira pensada) criando uma narrativa de que estão criminalizando o direito de expressar-se livremente.

Já fora abordado neste texto, dois exemplos em que pessoas abriram mão de ofensas e injúrias, travestidas de liberdade de expressão. Não há problema algum em fazer críticas aos poderes da República, pelo contrário, à democracia é o regime em que se convive com o contraditório.

Porém, a narrativa criada pelo “bolsonarismo” vai ao encontro da confusão, dá dubiedade, se valendo de crimes para defender um princípio constitucional, alegando que o que fora dito e executado contra o STF, por exemplo, está dentro das garantias individuais.

O que as hostes bolsonaristas fazem hoje, o então deputado federal pelo Rio de Janeiro, Jair Messias Bolsonaro sempre fez enquanto ocupou uma cadeira na Câmara Federal. Se as medidas legais tivessem sido tomadas contra o então deputado, talvez hoje não teríamos esta inversão de valores no tocante à lei.

Quando Jair disse coisas da envergadura de: “só não te estupro porque você é feia”, “tenho vontade de fuzilar Fernando Henrique Cardoso”, “que a ditadura deveria ter matado uns 30 mil”, “que se fosse eleito presidente, daria o golpe no outro dia”, “que os negros do quilombo devia pesar 7 arrobas”, além de ostentar um cartaz na porta do seu gabinete que trazia um cachorro com um osso na boca, seguido de uma frase que fazia alusão aos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, à Câmara dos deputados, ao invés de ignorar por se tratar de um deputado exótico do baixo clero, tinha que agir firme na aplicação da lei; não fez, e também deve ser lembrada como aquela que ajudou a chocar os ovos da serpente!

É preciso redobrarmos a nossa atenção no que vemos e lemos nestes tempos de pós-verdade, em que pessoas que nunca tiveram contato com o texto constitucional ficam dando aulas de juridiquês chulo nas redes sociais, associado com as nefastas notícias falsas, e que infelizmente convencem um contingente significativo da população.

Uma frase do ministro Edson Fachin, durante o julgamento da ADFP relacionada ao inquérito 4.781 me chamou atenção e me fez pensar bastante, e é com ela que encerro esta nossa reflexão: “não existe direito no abuso de direito!”

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