Assisti, neste mês de abril, ao espetáculo “Os Desertos de Laíde”, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB-RJ). Fiquei tão tocada, que passei os minutos seguintes à peça totalmente muda, em afeto, em luto, em sensibilidade remexida pela arte. Chorei, um choro que sequer limpei, deixei escorrer na face e seguir seu curso, como o de um rio que precisa correr e sabe por onde ir.
Vale destacar que não choro em filmes, peças ou momentos tristes. Raramente choro, não importa o quão tocada eu fique. Mas chorei. E foi bom, curativo. Escrever é, também, outra forma de cura, então cá estou.
No início estava meio dispersa e achei que não ia me conectar com a peça. A gente avalia os cenários, o entorno, a nossa própria expectativa com referências outras, quase nunca suficientes, quase sempre brancas, quase sempre européias. Colonizadas?! Por mais que tentemos não fazer isso, ficamos imaginando o que está por vir.
O som de Dai Ramos fala com as nossas entranhas, e gostaria agora de ter uma palavra mais suave para tal, mas não tenho. Falar com o coração não é o mesmo e essa expressão está tão batida e mal utilizada que me recuso a usá-la para tal. Mas senti as batidas deste coração ao som da música que nos ajuda a entrar nesse mundo complexo de Laídes, tantas, várias.
A expressão corporal das atrizes Tatiana Henrique e Juciara Áwô é algo não só impressionante, mas admirável. Sentimos fisicamente dores ao vê-las mover-se em angústias. Da iluminação à execução sonora, o espetáculo é um deleite bem montado para instigar as sensações geradas pela história.
O gracejo da mãe ao contar as malcriações do filho nos dá fôlego para ainda sorrir e lembrar da vida. Mas é a morte que permeia as histórias. Mortes não teatralizadas, mas reais. Tatiana Henrique nos lembra ao final que a cada 23 minutos um corpo negro é morto no Brasil, agora, diariamente, enquanto assistimos a peça, escrevemos um texto ou os lemos na internet.
E que falar sobre isso é fundamental. E que fazer algo a respeito é fundamental. Não sabíamos ainda que cada corpo poderia ser atingido 80 vezes a cada 23 minutos. Quantos minutos dos 23 leva para desferir 80 tiros? A arte é uma forma de resistência, de luta, de mudança da sociedade, de provocação de diálogos, de incômodos, de ação. Que nos ajuda a curar.
Tenho por hábito pensar em amigos que gostariam da peça que estou assistindo, o que diriam, como reagiriam. Pensei em várias pessoas, em vários projetos, em muitas possibilidades durante a peça. Minha mente viajou em tanta ânsia de movimento que perdi um trecho da fala no final. Mas acho que o objetivo foi cumprido: a arte provocou reação que gerará ação.
Uma amiga diz que não sabe porque negrxs insistem em exaltar a dor. Que afetos tristes geram mais afetos tristes e nenhuma real mudança ou forma de ação. Acho que ela não entende que não exaltamos a dor. A dor é parte dessa existência, não porque a alimentamos, mas porque ela foi historicamente imposta e continua sendo.
Estamos apenas relatando uma existência que sempre foi silenciada. E essa existência, ao ser contada, provoca inúmeros movimentos, inclusive de cura, de superação, de resistência, de ação política. Nossa dor é política, porque nosso extermínio é político, e nossa sobrevivência também. Quem fica e conta a história mantém viva uma existência exterminada.
Mas nunca consegui explicar isso a ela. Talvez agora eu consiga. Afinal, ninguém diz que o teatro grego tem afetos tristes demais para ser mencionado, utilizado, estudado, comparado. Ou que o holocausto judeu é triste demais para ser homenageado, registrado, repensado, teatralizado. Só a dor preta incomoda.
Pensei também em amigos que escreveriam coisas lindas baseadas na peça, poemas, crônicas, ensaios. Pensei num amigo que talvez fizesse uma linda ilustração baseada nessa história. Na amiga atriz, comovidíssima. E numa amiga que choraria muito intensamente.
Uma das coisas que mais me chamou atenção, logo no início, foi a metáfora da pipa. Nunca imaginei uma metáfora tão simples e tão bela. O uso da pipa como fio de ligação, como símbolos, como perdas, alegrias, conexão. Pensei nas coisas que essas mães que perdem todos os dias devem sentir e nunca dizer. No medo diário de todas as mães pretas.
Lembrei de todas as mães de preto que conheço. Pensei em coisas que nunca havia pensado antes. As roupas no varal, as marcas de tiro, os cheiros de ervas no ar, os sacos de areia, os desertos, os corpos… Cada imagem era bela, cada metáfora poderosa e cada sensação indescritível.
Mas não estava lotada, apesar de cheia, e isso é algo ainda incompreensível pra mim. Fiquei muito abalada. E recomendo a todos que compareçam para se abalarem também.
Ficha técnica
Peça: Os Desertos de Laíde
Texto: Rona Neves.
Direção: Luiz Monteiro.
Elenco: Juciara Áwô e Tatiana Henrique.
Quando: até 28/04/2019
Horário: 19:30h
Local: Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro (CCBB-RJ)
Valor: R$15-30
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