Em meio ao tédio da pandemia, encontrei no Youtube um filme incrível, verdadeiro presente do buda. Intitulado “Himalaia: caminho do céu”, o documentário francês retrata a vida do menino Kenrap, que aos cinco anos lembrou-se ser a reencarnação de um monge falecido aos 68 anos de idade, fazendo-o voltar ao mosteiro que pertencia. As imagens etnográficas, da recitação dos mantras à retirada da neve dos telhados, são belíssimas. Destaco uma delas: durante o recreio escolar, sob o olhar atento do monge inspetor, os meninos se interrogam: “Por que o cavalo branco?” Um responde, humildemente: “Não sei”. O mais esperto responde: “A cor dele existe para o olho. O motivo de sua existência está estabelecido. Pegue a cor branca do Buda Vairocana. Ele pode ser amarelo? Não pode ser amarelo, já que o Buda Vairocana é branco. A cor branca exclui a possibilidade da cor amarela.” E ao final do embate filosófico, o menininho sábio, reencarnação do velho monge, se aproxima da câmera e conclui: “O primeiro caso é nominativo. Denota a essência do objeto ao qual ele se refere.” Palmas para o mongezinho!
Esta cena de garotos budistas no pico do Himalaia pode ser muito útil, inclusive aos bibliotecários dos trópicos. Afinal, conhecer a essência das coisas qualifica nosso juízo, tornando-o adequado e preciso, evitando, assim, uma abordagem tosca e agressiva. Vou me ater a um caso particular e nada recente: observo, desde o dia de minha colação de grau, ocorrida há 21 anos, a atuação do Conselho Federal de Biblioteconomia (CFB) e mesmo dos Conselhos Regionais de Biblioteconomia (CRBs) ser objeto de críticas e censura, o que, diga-se de passagem, é esperado e mesmo recomendado. Afinal, além de se tratar de instituições humanas, portanto, falíveis, o julgamento tem a capacidade de corrigir, purgar e fortalecer. Entretanto, me incomoda quando a reprovação nasce, simplesmente, da ignorância.
Voltemos aos menininhos monges: não te parece absurdo esperar que o Buda Vairocana seja amarelo, se o que lhe caracteriza como tal é a cor branca? Ele poderia ser desqualificado como “não buda”, ou “menos buda” em virtude de sua essência amarela? Creio que não. Parece, ainda, razoável que eu justifique o abandono do meu gato pelo fato dele não ser capaz de voar, semelhante ao canário do meu vizinho? As duas situações acima evidenciam que o elogio ou o desprezo a qualquer coisa só se revela razoável se precedido da compreensão da essência da própria coisa. E o que é essência? Essência de algo é aquilo que lhe é característico e o torna o que é. Portanto, é um despropósito esperar que os Conselhos de Biblioteconomia atuem de modo estranho à sua essência.
Perguntemo-nos, então, com a humildade de um monge tibetano: O que são o CFB e os CRBs? Estou seguro de que descobriremos, facilmente, como bons pesquisadores de fontes que somos, as seguintes definições: “O CFB […] é uma Autarquia Federal Especial, dotada de personalidade jurídica de direito público; […] Os CRB são autarquias federais de natureza especial, dotadas de personalidade jurídica de direito público […]” (art. 16; art. 19, Resolução no 179, de 26 de maio de 2017).
O próximo passo na construção de uma crítica adequada ao CFB e aos CRBs é definir autarquia. O ilustre professor Hely Lopes Meirelles a define do seguinte modo: “[…] Forma de descentralização administrativa, através da personificação de um serviço retirado da Administração centralizada.” Em outras palavras, o CFB e o CRBs pertencem à estrutura estatal, exercendo, por meio de outorga do próprio Estado, serviço público típico, que é o de fiscalizar, garantindo, assim, que a população se sirva de bibliotecas gerenciadas por bibliotecários. Uma tarefa, diga-se de passagem, nobre e desafiadora! A partir do esclarecimento desses três pontos – o que é essência?; o que são o CFB e os CRBs?; O que é autarquia? –, já é possível cada um tecer o seu justo juízo.
Da minha parte, irei me restringir a uma constatação, aprendida na pele: o desafio enfrentado por quem se dispôs a trabalhar em prol das bibliotecas, tornando-se conselheiro no CFB ou no CRB. Afinal, esse colega terá que equilibrar suas posições políticas pessoais – quase sempre legítimas, diga-se de passagem – com os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, CF/88). Afinal, o CFB e os CRBs não são um sindicato ou uma associação, mas uma autarquia. Desse modo, seus membros, enquanto agentes públicos, são desprovidos de livre atuação, não podendo falar e fazer o que bem entendem, ainda que movido a boa intenção.
Assim, no âmbito dos Conselhos, interesses pessoais e partidários não podem sufocar o interesse público. Se por um lado a obediência a esse princípio impõe a eles a adoção de um tom claro e respeitoso ao se dirigir às autoridades instituídas, legitimamente eleitas, por outro lhes garante uma série de mecanismos estabelecidos pelo próprio ordenamento jurídico para defender e fortalecer o direito de todos os cidadãos terem acesso a bibliotecas de qualidade. Essa postura serena, longe de tornar o CFB e os CRBs neutros, revela sua capacidade de atuar no cenário político enquanto o que são, de fato: autarquias. A fidelidade a sua essência, além de evitar práticas ilícitas, como o de confundir os interesses pessoais e coletivos, ou de adotar um discurso político partidarizado, potencializa suas pautas em prol de toda a sociedade. E cá entre nós: o tempo não deixa sombra de dúvida que a capacidade dialógica tem se revelado muito mais fértil que a virulência, independentemente de quem esteja morando no Palácio do Alvorada.
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