Como uma postagem minha com um texto de opinião sobre o primeiro dia de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) 2018 viralizou feito rastilho de pólvora por esse Brasil, tendo recebido inúmeros pedidos de amizade no Facebook, me sinto na obrigação de pensar com vocês sobre a natureza desta prova.
As questões são cuidadosamente elaboradas por um grupo de profissionais da educação, selecionados através de um edital de chamada pública, que passam a ser orientados por membros do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), órgão do Ministério da Educação (MEC).
As questões aprovadas após uma série de pré-testes passam a fazer parte de um “banco nacional de itens”, uma espécie de baú do tesouro do conhecimento que pode ser acessado a cada ano pela equipe do INEP responsável por montar a prova.
Essa equipe trabalha sob um forte esquema de segurança, e a própria área de trabalho é restrita. Além de várias portas de segurança, o INEP dispõe de um scanner corporal. Ou seja, o INEP é praticamente um caixa-forte.
Uma pergunta: então os colaboradores podem fazer uma questão sobre qualquer tema, utilizando, inclusive, textos ideologicamente comprometidos com esse ou aquele pensamento? Não é bem assim. Há uma matriz de conhecimentos, com habilidades e competências sobre a qual se constituiu a modalidade do Ensino Médio, que nada mais é que os anos finais da educação básica.
Essas matrizes de referência são, até agora, o norte do ensino básico, e reúnem todos os saberes construídos ao longo de várias décadas, resultado de muito esforço de vários governos (desde Fernando Henrique Cardoso a Dilma).
Quem é professor sabe que desde a promulgação de Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996, vimos uma série de documentos norteadores da educação brasileira, tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, os PCN+, as Diretrizes Curriculares Nacionais, e a mais recente (e ainda em processo) Base Nacional Comum Curricular.
Não é pouca coisa. Não é pouca discussão. Não se trata de material de esquerdista, petralha, comunista e quaisquer outros qualificativos pejorativos com os quais designem os trabalhadores da educação. É material humanista, comprometido com o conhecimento em todas as suas potências de pluralidade e respeito à humanidade, elaborado por quem pensa e faz a educação deste país.
De norte a sul, do Oiapoque ao Chuí, as escolas trabalham os seus conteúdos com base nesses materiais, sobretudo nessas matrizes de referência. Não estou aqui discutindo o problema social das escolas públicas, com seu sucateamento constante, com a falta de verba, com a desvalorização salarial dos professores. É fato que há abismos gritantes entre a escola pública e a privada. Mas ambas trabalham, ou devem trabalhar, a partir de um mesmo material.
Assim, a matriz é organizada por eixos cognitivos que são comuns a todas as áreas de conhecimento. O aluno precisa dominar linguagens (assim mesmo, no plural), compreender fenômenos, enfrentar situações-problema, construir argumentação, elaborar propostas. Ou seja: aquele pensamento unilateral sobre as coisas não serve aqui, porque educar não se trata de doutrinação.
Para isso, há as igrejas. Escola não é igreja. Professor não é líder religioso. Professor conduz o aluno na construção de conhecimentos a partir da revisão daquilo que a história e a cultura já produziram. Simples: o ensino formal dá ao aluno ferramentas para que ele escave (e “escove a contrapelo”) a história do conhecimento e produza o novo, ou seja, faça intervenções tendo o cuidado de não ferir a dignidade humana. É uma relação dialética. É uma consciência ética. Sem ética não há ensino. Não há como viver em coletividade quando se fere esses princípios.
Todas as disciplinas, ou componentes curriculares, contempladas na prova do ENEM, divididas em áreas como 1. Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias, 2. Ciências Humanas e Suas Tecnologias, 3. Ciências da Natureza e Suas Tecnologias e 4. Matemáticas e Suas Tecnologias seguem competências e habilidades definidas.
No geral, todos os textos que formam os enunciados dos itens, retirados de diversos suportes, quer físicos, quer digitais (livros, jornais, internet, letra de música…), mostram um painel plural daquilo que entendemos por cultura. Mas, no fundo, sua função ali é verificar se o aluno aprendeu a ler.
Em sua maior importância, a prova do ENEM quer saber se o candidato sabe interpretar textos, não importa que viés político e cultural tenham esses textos. Resumindo, vou dizer o óbvio (e tenho clareza de que quando precisamos dizer o óbvio é porque estamos vivendo tempos de extrema afronta ao saber) citando um ser cujo pensamento se tornou abominável por quem deseja uma educação que ensina a obedecer, não a pensar: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” (PAULO FREIRE).
A prova do ENEM, que existe desde o governo FHC, reúne três tipos de conteúdo: conceituais, procedimentais e atitudinais. O aluno é solicitado a se questionar: “O que sei do conhecimento humano e o que devo fazer com isso?”. Ler o mundo e ler a si mesmo é a grande tarefa da educação, gente! Escola não é funil onde se joga uma montanha de saber num balde-cérebro vazio até transbordar.
Por isso, no próximo domingo, quando os alunos forem fazer a segunda parte da prova, que corresponde às áreas de ciências da natureza (física, química e biologia) e matemática, não esperem encontrar questões que dizem que a terra é plana, imóvel e que o sol e a lua é que giram em torno dela.
Também não esperem encontrar questões que afirmem que o primeiro homem foi feito do barro e que a primeira mulher não passa de uma costela do homem, bem como não esperem encontrar questões que afirmem a superioridade física de um homem em detrimento do outro pelo meio e a raça ou que afirmem que se pode desmatar a Amazônia para virar pasto do gado ou monoculturas de agropecuaristas sem que isso afete o ecossistema planetário.
Essas questões estão superadas há muito tempo e, se foram recuperadas atualmente, apenas indicam que ondas conservadoras querem que retornemos ao passado. Em compensação, a prova vai estar repleta de questões que façam o sujeito pensar em si e no mundo ao seu redor do ponto de vista rizomático, ou seja, pertencente a uma complexidade.
Tempo, espaço, matéria, luz, energia, movimento, fenômeno térmico, transformações químicas, equilíbrio ambiental, ecologia, origem e evolução da vida, identidade e diversidade da vida, indicadores sociais, ambientais econômicos, aspectos sociais da biologia (sexualidade, doenças, gravidez na adolescência…) violência e segurança pública, aspectos biológicos e sociais da pobreza, legislação e cidadania vão inundar a prova.
E não adianta depois vir paras as redes sociais dizer que o ENEM é comandado por petralhas comunistas. Quem disser isso, não entendeu nada de educação, não entendeu nada de humanidade, não entendeu nada de vida. O velho Paulo Freire continua a nos dar caminhos:
“Ensinar um conteúdo pela apropriação ou apreensão deste por parte dos educandos demanda a criação e o exercício de uma séria disciplina intelectual a vir sendo forjada desde a pré-escola. Pretender a inserção crítica dos educandos na situação educativa, enquanto situação de conhecimento, sem essa disciplina, é espera vã. Mas, assim como não é possível ensinar a aprender, sem ensinar um certo conteúdo através de cujo conhecimento se aprende a aprender, não se ensina igualmente a disciplina de que estou falando a não ser na e pela prática cognoscente de que os educandos vão se tornando sujeitos cada vez mais críticos.” (Paulo Freire, Pedagogia da Esperança).
Esse texto, de certo modo, é apenas para reafirmar que não pode haver escola sem compromisso com a subversão, que educar é desconfiar das certezas oferecidas como um cala-a-boca, que não pode ser professor quem não tem compromisso com a diversidade e a pluralidade do pensamento. Esse texto é apenas para dizer que somos uma legião de subversivos e jamais poderão fazer de nós massa de manobra a serviço do conservadorismo.
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