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O nada que é tudo. Incursão teórica sobre o conceito de mito

O fragmento da obra ‘Mensagem’, do poeta português Fernando Pessoa, traz à tona um dos muitos símbolos no qual o termo mito está imbuído, pois “O mito é o nada que é tudo/ O mesmo sol que abre os céus/ É um mito brilhante e mudo/ O corpo morto de Deus/ Vivo e desnudo”. Narrativas fantásticas circundadas por deuses e heróis que ganham vida em ruínas de templos gregos e romanos constituem a noção de mito difundida pelo conhecimento popular, embora o termo já tenha alcançado outras definições nos campos científicos, gerando uma multiplicidade de proposições teóricas que indicam diferentes abordagens sobre o conceito de mito.

A origem etimológica do vocábulo é oriunda das tradições gregas, visto que, como destaca a professora e filósofa Marilena Chauí no livro ‘Convite à filosofia’, a palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para os outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, designar). A civilização grega entendia o mito como uma narrativa verídica e pública, realizada por alguém que tinha autoridade conferida pela credibilidade, ou seja, um narrador que testemunhou presencialmente o que narra ou recebeu a narrativa de quem testemunhou, demarcando a importância da história oral para a perpetuação do mito.

Segundo Mircea Eliade, aclamado mitólogo romeno que discorre sobre as origens do vocábulo e da compreensão do mito em seu livro ‘Mito e realidade’, até o século XIX, o mito era tratado dentro da acepção comumente empregada ao termo, ligado à ideia de fábula, invenção, ilusão, mentira. Somente no período seguinte, o vocábulo foi aceito por estudiosos a partir da compreensão que comunidades remotas atribuíam, para as quais o mito partia de uma história verdadeira de caráter divino, exemplar, e de grande significado, portanto, incontestável.

Esse processo de redimensionamento confere ao termo mito diferentes acepções e significados, com variáveis relativas à cultura, sociedade, época, comportamento e crenças. Como lembra o estudioso Joseph Cambell, especialista em mitologia e religião comparada:

“Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos”.

Inserido nessa perspectiva, o mito pode ser concebido como potencialidade dos fenômenos humanos e culturais, explicando-os e interpretando-os a partir do seu surgimento. Em ‘Mito e Realidade’, Mircea Eliade credita ao mito a narrativa de “uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio”, isto é, como crenças e entidades transcendentais (sobrenaturais) tornam possível a existência de uma realidade ao narrar sobre a criação, a origem de algo.  Por meio dessa sacralização mitológica, a humanidade “fundamenta o mundo e o converte no que é hoje”.

Na abordagem adotada por Campbell é possível avaliar como grandes instituições humanas atravessam séculos sem deixar sucumbir a essência do mito, legitimando, assim, as experiências que o termo evoca. “As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito”, lembra Campbell em ‘O herói de mil faces’.

Percebe-se que tanto Eliade quanto Campbell compartilham do pensamento de que o termo mito não deve ficar restrito dentro da concepção simplista que o tabula como história falsa, pois ele faz parte do histórico dos nossos antepassados, apresentando-se como peça fundamental na compreensão do presente. Eliade fortalece essa diferença apresentando a perspectiva dos Pawnee, tribo nativa norte-americana, projetando a distinção onde “nas histórias verdadeiras, defrontamo-nos com o sagrado e o sobrenatural; as falsas, ao contrário, têm um conteúdo profano”. O mitólogo exemplifica a assertiva com outras tribos indígenas (“Cherokees, Hererós e indígenas de Togo”), que atribuem aos seus mitos uma natureza real, verdadeira, separando-os das estórias de caráter profano. Nesta perspectiva, Eliade entende o mito como “uma história sagrada e, portanto, uma história verdadeira, porque sempre se refere a realidades”. Desse modo, o autor aborda o mito como narrativas de histórias sagradas, ou ainda, como narrativas de origem que explicam fenômenos sociais e falam da realidade concreta, descrevendo “as diversas e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do sobrenatural) no Mundo”.

Vale contemplar ainda no decorrer destas exposições teóricas o conceito de mito proposto por Marilena Chauí, que o entende como “uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.)”.

Assim, o mito evidencia a origem das coisas, a essência, o começo, explicando o próprio mundo e reintegrando a narrativa de origem. Percebe-se, então, que o conceito de mito envolve uma série de acepções e significados distintos que ultrapassam o simples plano da estigmatização ocidental ou racionalização sistemática. Na análise das estruturas míticas modernas, Roland Barthes identifica a presença de mitos em veículos midiáticos, produções artísticas e na publicidade da França da década de 1950, admitindo o relacionamento conceitual entre mito e história. “A história condiciona o mito em dois pontos: na sua forma, que é apenas relativamente motivada, e no seu conceito, que é histórico por natureza”, explica Barthes na obra ‘Mitologias’. Segundo o autor, a sociedade é “o campo das significações míticas”, já que “o que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido, por mais longe que se recue no tempo, pela maneira como os homens o produziram ou utilizaram; e o que o mito restitui é uma imagem natural desse real”. Nessa linha de pensamento, Barthes sustenta que o mito confere aos atos humanos a simplicidade, organizando um espaço sem contradições, sem profundidade, sem essencialidade, onde as coisas parecem estar impregnadas de significado por si próprias.

“A função do mito é evacuar o real: literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia, ou, caso se prefira, uma evaporação; em suma, uma ausência perceptível”.

Para o semiólogo francês, o mito é uma “fala despolitizada, (…) cuja função específica é transformar um sentido em forma”; fala esta definida por sua intenção. As acepções de Roland Barthes auxiliam na leitura dos mitos modernos, criados e recriados pela cultura de massa, termo combatido categoricamente por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, que o substituíram por indústria cultural (vide a obra Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos, 2006).

Para dar prosseguimento às incursões teóricas propostas, é interessante traçar um esboço, mesmo que de forma elementar, sobre as quatro teorias apresentadas por Thomas Bulfinch (O Livro de Ouro da Mitologia: histórias de deuses e heróis) para a origem das narrativas mitológicas e, de forma sublinhada, analisar a interpretação do estudioso Joseph Campbell para o poder dos mitos (O Poder do Mito) e a transformação cabal que ocorre no que ele denomina “a saga do herói” (O Herói de Mil Faces).

Continua…

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