É possível a um vinicultor não gostar ou saborear do próprio vinho? Ser filósofo e não exercitar o ato de pensar? Ou ser amante e não amar?
Diante das aparentemente óbvias indagações, convido aos mais observadores e curiosos a deflagrarem comigo a seguinte hipótese para esta série que se inicia: é possível ser bibliotecário e não apreciar literatura? Não cultivar o hábito de leitura? Não ler?
É estranho imaginar que um dos principais cuidadores, preservadores e disseminadores da sexta arte, a literatura – a menina dos olhos de qualquer biblioteca que se preze, possa ser apático e indiferente ao sabor dos melhores romances, contos, crônicas ou poesia?
A importância da leitura é consensualmente universal. No ensaio “O direito à literatura” (1995), Antonio Candido, um dos maiores intelectuais e críticos literários do país, já afirmava a importância vital da literatura e da leitura e sua relação com o direito humano, muito antes desta afirmação ser tornar “moda” necessária, de uns anos pra cá, nos discursos e proposições das políticas públicas.
“(…) a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade.” – Antonio Candido.
De todos os profissionais, talvez seja o bibliotecário o que mais carrega o peso sobre si de arquétipos e estereótipos construídos pelo senso comum, ao longo de séculos, muitos positivos, mas alguns calorosamente preconceituosos e estranhos.
Esta é uma questão possivelmente herdada desde as civilizações antigas quando os bibliotecários de monumentais bibliotecas, além de assumirem a coordenação dos acervos, eram, em sua maioria, considerados os “doutos do museu”, tradutores, literatos, gramáticos e poetas. A relação, portanto, com o livro era intensa.
Um dos mais famosos bibliotecários da Biblioteca de Alexandria, Calimacus de Cirene ou simplesmente Calímaco, além de ter criado o primeiro catálogo, em grego pinakoi ou pinakes – que já evidenciava uma preocupação técnica, foi poeta, crítico, mitógrafo e professor de gramática. Recomendo, inclusive, a leitura do livro “A biblioteca desaparecida” (1989), do filólogo, historiador e filósofo Luciano Canfora, que aborda de forma interessante e multidisciplinar a antiguidade clássica, bem como a vida e o perfil dos bibliotecários.
Ainda hoje, embora a tecnologia esteja muito presente, a estreita ligação do bibliotecário com os livros é indissociável e até lógica, pois em todos os processos de trabalho, seja do planejamento, das tarefas técnicas, do atendimento aos projetos de incentivo e mediação de leitura, o livro está presente! Assim como as histórias, as narrativas e o conhecimento ali intrínsecos de alguma forma.
E pensar no rompimento confesso ou sugestivo desse laço seria e é uma trágica expectativa daqueles que circundam o universo das bibliotecas, dos livros, dos leitores e da leitura. Quase uma heresia para aqueles que percebem isso de alguma forma e um pecado inconfessável àqueles que talvez nunca irão assumir a falta de hábito de leitura
Não entende-se aqui a necessidade de satisfazer os aspectos pejorativos mais cruéis do imaginário coletivo, de que todo o acervo da biblioteca precisaria ser lido – indagação esta recorrentemente feita a bibliotecários por leitores e frequentadores de bibliotecas. Mas, por outro lado, isso diz muito do que se espera deste profissional.
Também não se pretende aprofundar as causas do problema, que aliás, poderia suscitar inúmeras suposições, desde, por exemplo, as razões históricas, tecnológicas e mercadológicas que intervieram nas formas de trabalho, provocando rupturas entre este e o trabalhador e a separação dos processos, ou, até mesmo a influência da estrutura curricular na formação acadêmica desses profissionais.
Entretanto, é preciso considerar que em função dos anseios e complexidades do mercado – e de um mundo em caos, é bem possível que muitos tenham escolhido suas profissões pela promessa de carreira, status ou salário. Muitas vezes a escolha do trabalho é associada às demandas do momento e não por “amor ao ofício”. Não se trata de fazer alguma associação ou supor um acaso, mas é visível o grande êxodo de bibliotecários para outras profissões ou carreiras. Se isto tem alguma associação ou não com o hábito de leitura, cabem estudos.
Deixo, todavia, o aprofundamento disso para os amigos das teorias e refutações, pois prefiro convidar para esta reflexão a poética de Aristóteles ou tomar como modelo os bons ensaios de Montaigne. Para certos enigmas, a ciência não basta! Experiência e observações, sim – ou contentar-se com certos mistérios, e pronto!
Retomo aqui, a tentativa de levantar um dos paradoxos mais intrigantes da biblioteconomia, pelo menos por parte dos mais atentos e dos que se julgam leitores-bibliotecários.
A questão se torna ainda mais instigante pelo fato de existirem bibliotecários não leitores em um contexto no qual se fala tanto em projetos de incentivo e mediação à leitura, principalmente nas bibliotecas escolares, universitárias e comunitárias.
Todas as relações de motivações e aprendizagem passam pelo exemplo, algo já bem ventilado pelos filósofos e pensadores da educação. O velho dito popular “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” exemplifica bem uma relação de descompasso e sem eficácia. Abrindo o lado ético e moral da questão: beira a hipocrisia exigir dos outros aquilo que não se pratica.
Em sua “Poética”, Aristóteles já falava sobre o fascínio que a representação (mimesis ou mimese) exerce nas pessoas:
“Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e todos têm prazer em imitar… Outra razão é que aprender é sumamente agradável não só aos filósofos, mas igualmente aos demais homens…” – Aristóteles.
A problemática se amplia, porque os sabidos efeitos negativos ocasionados pela falta do hábito de leitura na vida do bibliotecário não recaem somente sobre ele, mas também na missão e no público aos quais ele destina suas horas de trabalho.
Só por este ângulo, cai por terra algum argumento que possa servir de subterfúgio. Se todos hoje já são incentivados à leitura, não vejo como possível fazer um trabalho de qualidade em biblioteca e ser apático à leitura, mesmo que o profissional direcione suas aptidões para as áreas mais técnicas. Até mesmo nestas, o repertório cultural e linguístico é imprescindível nos processos de catalogação, classificação e indexação. Há dúvidas técnicas que não se resolvem apenas com os manuais.
Segundo os prospectos do pleito do projeto “Eu quero minha biblioteca” sobre inclusão da universalização de bibliotecas em escolas públicas, com base na Lei 12.224/10, além de tratar da educação para leitura e da promoção de leitura, o final do texto enfatiza que: “O bibliotecário e/ou auxiliar de biblioteca deve ser leitor” . O próprio PNLL – Plano Nacional do Livro e Leitura aborda e prevê a integração dos eixos na própria sigla.
Parece redundante falar sobre leitura para os profissionais da biblioteconomia, porém o assunto se torna salutar, principalmente, no contexto político atual de total descrédito à educação e cultura, que tristemente vivenciamos. O Brasil de hoje luta por tentar ao menos manter o que foi conquistado às duras penas pelos governos anteriores.
Estamos na contramão de qualquer preceito moral, ético, social ou humano, talvez jamais visto na história brasileira. Recentemente, sob argumentos obscuros e duvidosos, o Ministro da Economia, do governo Bolsonaro, levantou a proposta (ilegal) de tributar livros, como parte da reforma tributária, enquanto, por outro lado, se mantém a isenção de impostos para partidos políticos, cultos e templos religiosos.
Tal iniciativa, se levada a cabo, pode ser a morte do livro, dos projetos de incentivo à cultura, à leitura e à educação no país, que já agoniza – para não dizer de outras inúmeras ações e declarações esdrúxulas feitas também pelos ex-ministros da educação e de outras áreas do governo.
A importância do ato de ler, que o diga Paulo Freire, um dos maiores pensadores da educação do mundo contemporâneo, é e será sempre instrumento de poder, de formação de senso crítico, de transformação e emancipação intelectual. Não é à toa em que períodos onde reinou o ódio, o fundamentalismo e ideologias perversas, livros foram queimados, bibliotecas, museus e importantes centros culturais foram destruídos.
Mais do que nunca, ler num contexto político devastador de total desmonte das praxes e estruturas onde se abrigam e difundem o saber, a ciência, e as artes, é também ato de consciência política e de bravura. Num mundo de pós-verdade, onde sérias decisões têm sido embasadas por notícias falsas, o livro precisa ser nosso porta-voz, escudo e símbolo de resistência e de incentivo ao saber.
Portanto, nos examinemos e nos apropriemos da frase de combate do momento: a leitura como direito humano!
O mundo está gritando por grandes transformações e só a valorização e o investimento por mais conhecimento e leitura de qualidade podem abrir caminhos. Que sejamos também nós, para além das políticas públicas, os canais, a ponte, mas também o bom exemplo para esta geração, que também semeará bons frutos para as futuras gerações.
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