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O espelho de Machado de Assis

O ano era 1882. Em terras brasileiras, Joaquim Maria Machado de Assis publicava no jornal Gazeta de Notícias o conto O Espelho[1] – Esboço de uma nova teoria da alma humana. Posteriormente, a obra foi vinculada ao livro Papéis Avulsos, publicado no mesmo ano. O texto narra a fantástica experiência vivenciada por Jacobina, um jovem pobre que, aos vinte e cinco anos, é nomeado alferes da guarda nacional. Tal acontecimento desperta os mais exagerados sentimentos em seus familiares, e eles começam a dedicar ao mais novo alferes toda sorte de elogios e honras.

O posto de Jacobina acende o ímpeto de hospitalidade de uma tia, que o convida para passar uns dias em seu sítio. Lá chegando, Jacobina deixa de ser tratado pelo nome e passa a ser chamado de “senhor alferes”, vocativo estendido também aos escravos da casa. “Eu pedia-lhe que me chamasse de Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o ‘senhor alferes’”.

As manifestações honrosas legaram ao jovem alferes o melhor lugar na mesa, o primeiro prato a ser servido e a joia preciosa da casa: um grande espelho, cercado pelas pompas de um suposto passado imperial e resquícios de ouro. Diante de tanta opulência, “o alferes eliminou o homem”. Jacobina passou a sentir dentro do peito que não existia mais nada além de seu status de alferes. Consumido pela vaidade, o jovem começa a descortinar um vício profundo, nefasto e oculto em sua alma. No entanto, as circunstâncias mudam quando uma filha da entusiasmada tia passa mal, impelindo a anfitriã a deixar o sítio e o sobrinho alferes para trás. Sozinho com os criados, o rapaz não consegue conter o tédio e a insatisfação até que, poucos dias depois, é abandonado à própria sorte no sítio, já que os escravos de sua tia o enganam e fogem.

Na mais profunda solidão, sem nenhuma plateia para inflar seu ego, a intensidade de outrora se transforma em apatia, mecanicidade repetitiva, ponteiros de relógios que morrem a cada batida[2]. Essa letargia começa a provocar-lhe alucinações, delírios, confusões mentais e desespero. O mal estar só é apaziguado com a aceitação da loucura, fato que se dá quando Jacobina se veste de alferes, aceita que sua nova identidade é a que lhe foi imposta e atravessa mais seis dias de isolamento com essa sensação de poder, fitando-se fardado diante do grande e tradicional espelho depositado em seu quarto.

Essa experiência é lembrada pelo protagonista na idade adulta, no meio de um debate sobre assuntos metafísicos com amigos íntimos. Em sua explanação, Jacobina separa a alma humana em alma interior e alma exterior; esta última diz respeito ao que consome, apaixona, obceca o indivíduo. Ela é de fora para dentro. Já a alma interior é de dentro para fora, personificando a essência. Com este conto, Machado de Assis, aos quarenta e três anos, desenvolve mais uma personagem cuja ótica está baseada no que se é, no que se pensa que é e no que os outros pensam que se é.

Esse raciocínio pode ser percebido em outras obras machadianas, característica que faz do autor um observador arguto da sociedade. Nas palavras de José Carlos Garbuglio, expressas no artigo Desencontro e frustração, publicado no livro Crônicas da antiga corte: literatura e memória em Machado de Assis (2008):“Machado podia dar conta dos problemas porque tinha deles a visão por dentro, assim como a linguagem descolada dos compromissos de classe e suficientemente distante da sedução da corte”.

Assim como Lady Macbeth, personagem transformada em lenda pelo dramaturgo e escritor inglês William Shakespeare, Jacobina permitiu que o poder o consumisse, alterasse sua identidade, forjasse sua alma. O jovem alferes apaixonou-se pelo poder[3].

Jacobina atravessa um processo de mutação de identidade, no qual circunstâncias, pessoas e objetos fúteis reproduzem a ideia de nobreza, bens materiais, aristocracia e paixão pelo poder. A ambição e o delírio se unem em um êxtase febril, fazendo com que o jovem tenha sua identidade usurpada por algo inexplicavelmente mais forte e incontrolável.

No enredo de O Espelho, Jacobina permitiu que o alferes consumisse o seu coração humano, aceitando seus delírios como tática de sobrevivência; para não sucumbir, ele permitiu-se levar pela loucura. No momento em que, anos mais tarde, relata sua história aos amigos e eles insinuam que a experiência do então jovem alferes era de enlouquecer, ele afirma que o fato de olhar para o espelho, encontrar-se em dois – seu reflexo e seu corpo físico – e vestir a farda de alferes foi o que o salvou. Enquanto fitava o espelho despido da vestimenta, o jovem alferes só via sombras, figuras esfumadas, difusas. Ao utilizá-la:

Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me duas, três horas, despia-me outra vez. Com esse regime pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir.

Dessa forma, Jacobina permitiu que sua alma exterior, suas alucinações e instabilidades desnudassem o que carregava por dentro. Entrando nas profundezas de sua desordem mental, ele salvou a si mesmo.

[1]O Espelho foi publicado no jornal Gazeta de Notícias no dia 8 de setembro de 1882.

[2]Nesse fragmento, Machado faz uma referência sensacional ao poema ‘The oldclockonthestair’ (1845), do poeta americano Henry Wadsworth Longfellow. Essa citação é lembrada por John Gledson no livro 50 contos de Machado de Assis, Companhia das Letras, São Paulo, 2007, o qual seleciona, organiza e introduz.

[3]Referência ao prefácio escrito por Michel Foucault para a edição americana do Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Felix Guattari, Nova York, Viking Press, 1977, cuja potência da frase “Não se apaixone pelo poder” atravessa décadas.

Texto publicado originalmente na edição 51 da Revista Biblioo. Clique aqui e adquira em nossa loja virtual.

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