Como devemos entender o papel social do bibliotecário?
O papel social é definido como “um comportamento esperado de todo indivíduo ocupando uma posição social particular.”[1] Vou lhe confessar algo: não morro de amores por essa expressão. É que na sociedade atual, marcada pela fragmentação, me soa inadequado supervalorar a ideia de conformismo do bibliotecário no exercício de tal “papel”.
Afinal de contas, nem tudo o que o bibliotecário faz é imposto. Embora saibamos que o modo de exercer a profissão tenha certas limitações, há situações que fogem à lógica da coerção. Numa entrevista para o Le Monde, há exatos 40 anos, o filósofo Michel Foucault tratou dessa questão: “Se as sociedades se mantêm e vivem, ou seja, se os poderes não são ‘absolutamente absolutos’, é que por trás de todos os consentimentos e coerções, para além das ameaças, das violências e das persuasões, há a possibilidade desse momento em que a vida não mais se troca, em que os poderes não podem mais nada.”[2]
No curso dos dois últimos séculos, diversos bibliotecários exerceram a desobediência em prol da liberdade de expressão e da dignidade da pessoa humana. Alguns, inclusive, pagaram um alto preço pela ousadia de exercer a liberdade.
Prefiro a expressão “identidade social” do bibliotecário. Sua fonte primeira é a Lei nº 4.084/62. Devemos ser gratos aos que nos precederam pela aprovação da lei. É ela que atribui o título “bibliotecário” a um tipo particular de sujeito, lhe atribuindo, em seguida, competências privativas. A lei em questão o eleva a um status privilegiado, lhe outorgando o reconhecimento coletivo, garantindo-lhe o direito de fala.
É ela, juntamente com todos os outros atos normativos, que lhe confere, inclusive, o direito de se indagar: “Como agir de acordo com o que está dito pela lei e atribuído pela situação?” Ou seja, o confronto do que lhe é dito e o quotidiano na biblioteca pode lhe mover a questionar ou acatar a justeza desse conjunto de normas. A identidade extrapola o “comportamento esperado” por envolver um confronto continuado entre o que foi estabelecido e o que é experenciado.
Em 2018, o Conselho Federal de Biblioteconomia, por exemplo, reconheceu, ao participar de um grupo de trabalho no âmbito do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a “legitimidade” da existência de outros equipamentos culturais destinados a formar leitores, além da biblioteca. Essa postura corajosa traz enormes benefícios para a sociedade, incluindo os bibliotecários.
Quais os deveres e direitos fundamentais do bibliotecário?
Adentramos no campo normativo. O nosso Código de Ética e Deontologia,[3] publicado recentemente, abarca 41 deveres. Dentre estes, 13 são apresentados como atos proibitivos; tecer comentários desabonadores sobre a profissão e aderir a práticas discriminatórias estão aqui enquadrados. Além disso, 16 infrações éticas são passíveis de penalidades, como delegar a pessoas leigas atividades do bibliotecário.
Os direitos também foram contemplados, mas dentro da perspectiva do direito do “outro”, seja o cidadão, beneficiado com informações livres de práticas censoriais, seja a sociedade como um todo, que usufrui de boas bibliotecas ao impedir o exercício ilegal da profissão. É evidente que o nosso Código não abarca todas as ações e interdições, até porque não é este o seu objetivo.
Um código de conduta tem por finalidade definir as bases necessárias à manutenção da reputação de um grupo profissional. Penso que a leitura dos 17 artigos de nosso Código deve nos levar a um movimento reflexivo duplo: a cada serviço prestado, a cada produto ofertado, a cada discurso postado, devemos nos perguntar: “A quem estou beneficiando? A quem estou prejudicando?”[4]
A partir disso, qual seu papel na política? Ele deve ter atuação?
O filósofo italiano Norberto Bobbio costumava dizer que a apatia política faz vítimas mesmo entre os mais instruídos e informados.[5] Suspeito que nós, bibliotecários brasileiros, não sejamos uma exceção. Embora tenhamos abraçado uma profissão cuja natureza seja “sociocultural”, como reza o art. 2ª de nosso Código de Ética, observo que padecemos, juntamente com os demais trabalhadores, de um alto nível de desinteresse pelo que ocorre nas instituições políticas.
O que é ser alienado? É estar separado daquilo que se criou. É não conseguir estabelecer uma relação inequívoca entre o que se faz e o resultado do que se é ofertado. Penso que o cúmulo da alienação de um bibliotecário é ignorar a relação direta entre a perda de relevância simbólica do equipamento cultural em que atua, refletida no prédio sem manutenção e nos baixos salários, com o seu desdém pela res pública, ou seja, a coisa do povo, a coisa pública. É um suicídio encarar a biblioteca como uma ilha cercada por águas tranquilas, livre das intempéries de Brasília e das bolsas.
Tramitam no Parlamento dezenas de proposições que nos afetam intensamente. Algumas são muito benéficas, como a criação de fundos para a cultura. Outras, de cunho moralizante, podem lesar nossos equipamentos culturais. Diante das pautas políticas, há duas possibilidades: primeiro, não entrar no mérito do embate, seja por ignorar a existência do risco, seja por acreditar ser o silêncio o melhor remédio. Trata-se de uma tentativa de sobrevida perigosa. Segundo, entrar no embate. Isso implica compreender os dispositivos discursivos da outra parte e estabelecer as armas de luta adequadas.
O que devemos entender por atuação política do bibliotecário? Importante diferenciar da atuação partidária, que qualquer cidadão pode ter…?
O instrumento de trabalho do bibliotecário é a palavra. Quem detém a palavra exerce o poder. Portanto, o bibliotecário participa do poder político ao pronunciar certos enunciados que serão considerados verdadeiros.[6] Que enunciados são esses? Que a administração da biblioteca é de exclusividade sua, já que seu bom funcionamento envolve a aplicação de uma gama de técnicas.
O fato é que, embora sendo o equipamento cultural com maior capilaridade no país, a biblioteca tem perdido espaço. Basta consultar as planilhas de orçamento do Departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (DLLLB) dos últimos anos para se comprovar isso.
Na minha opinião, há duas possibilidades de se estancar a sangria e ambas se dão extramuros. A primeira, como agentes políticos, ocupando um cargo ou mandato. Atualmente, temos bibliotecários em algumas casas legislativas. Isso é muito bom, mas nem todo mundo tem vocação para ser político. Há uma segunda forma de exercício do poder político, que é a participação popular. Ela tem um papel importante na construção e execução das políticas públicas culturais.
O debate entre a sociedade civil e o Estado é garantido por alguns mecanismos institucionais constantes na própria Constituição Federal. Dentre eles, ressalto a nossa participação em todos os órgãos públicos quando estiverem sendo discutidas e deliberadas ações de nosso interesse. O fortalecimento das bibliotecas é diretamente proporcional ao gasto da sola de nossos sapatos nos corredores do Parlamento. As ferramentas são tantas: projeto de lei, frentes parlamentares, audiências públicas, requerimentos de informação, emendas parlamentares.
Disse e repito: “Longe de mim propor que bibliotecários passem a defender um projeto político-partidário”! [7] O imprescindível é conhecermos os mecanismos estabelecidos pelo próprio Estado para exercermos a boa política em defesa das bibliotecas, que podem exercer um papel admirável na efetivação da cidadania. Seria fabuloso que, além de catalogação, todas as nossas escolas de biblioteconomias tratassem de políticas públicas. Isso traria enormes benefícios.
Em que ambientes o bibliotecário deve atuar politicamente?
“Onde duas ou mais pessoas estiverem reunidas, a política estará no meio delas.” Ao prestar um bom atendimento, o bibliotecário estará exercendo a política. Recentemente, dezenas de bibliotecas públicas foram desativadas em Londres sob o argumento de corte de gastos; assustado com os gritos de um bom número de usuários “revoltosos”, o governo recuou, ainda que parcialmente. Portanto, equipamentos culturais de qualidade tendem a formar clientes leais. Mas isso não basta. Além da política alentada em nossos salões de leitura, precisamos ocupar outros espaços.
E isso só pode ser feito de forma adequada se deixarmos de incorrer no engano de que o principal desafio da biblioteca brasileira é de natureza financeira. A precariedade orçamentária enfrentada pela maioria dos colegas é mero desdobramento de um quadro político desfavorável aos nossos equipamentos. O mesmo prefeito que tece louvores à biblioteca no dia 12 de março é o que corta, sem ruborizar, dinheiro e pessoal. Por que isso? Simples: o gestor público nem sempre é capaz de compreender o impacto deste equipamento na vida dos habitantes do município.
Ele não é um biblioclasta, mas, ao sopesar o custo do livro, o preço da estante, o vencimento do bibliotecário, opta pelo “cantinho da leitura”, mantido com livros doados e gerido pela professora readaptada. O que fazer diante disso? “Ocupar” os plenários, corredores e gabinetes onde as políticas públicas são erigidas. É desse espaço de narrativas que nascem as identidades, e das identidades, o orçamento. Em outros termos, são nesses lugares, tantas vezes demonizados pela opinião pública, que se decide o que merece investimento ou, simplesmente, o abandono institucional. No frigir dos ovos, o desafio é comprovar o potencial da biblioteca em gerar mobilidade social, e, portanto, reconhecimento político para os agentes que a defendem.
Quais as principais pautas da atuação política do bibliotecário? Acesso à leitura, direitos dos profissionais, bibliotecas públicas de qualidade…?
As bibliotecas são equipamentos culturais a serviço dos cidadãos, e não dos bibliotecários. Portanto, as pautas que efetivam ou ameaçam direitos e garantias fundamentais são prioritárias para todos os profissionais da biblioteconomia. Um ótimo ambiente para mapearmos essas pautas é o Legislativo. Afinal de contas, o que ocorre por lá vai sendo construído a partir dos episódios nacionais e regionais, incluindo boa parte do que é contemplado pelo Poder Executivo.
A atual legislatura promete: isenção tributária para quem construir e manter bibliotecas públicas;[8] investimento de recursos para a compra de acervos para as bibliotecas escolares;[9] incorporação de certos títulos ao acervo das bibliotecas públicas.[10] Há outros projetos de lei que, embora não vinculados diretamente ao tema “biblioteca”, respingarão em nossas salas de leitura: o projeto de lei que institui o programa “Escola Sem Mordaça”[11] é um deles, rival do projeto chamado “Escola Sem partido”.
É um enorme desafio tratarmos dessa pauta sem incorrermos na lógica binarista que nos tem sido apresentada. Outra proposição pertinente a todos nós: o emprego de 40% dos recursos Fundo Nacional de Cultura em projetos vinculados à cultura e à arte dos povos negros e indígenas do Brasil.[12]
É provável que, em consonância com a linha discursiva em defesa de uma moral bastante específica, verbetes, gêneros e títulos literários sejam promovidos e outros expurgados. Já tramitam algumas proposições a esse respeito: foi protocolado um projeto de lei que eleva a Bíblia ao status de Patrimônio Nacional, Cultural e Imaterial do Brasil e da Humanidade (sic).[13] Outro impede o uso da palabra “Bíblia” fora do círculo religioso.[14]
Vale ressaltar que o nosso Código de Ética repudia qualquer prática de censura e de ingerência política. É importante acompanharmos com atenção o andamento das decisões nas três esferas do Poder para adotarmos as medidas adequadas na proporção correta. E a condição para evitarmos equívocos continua sendo esta: conhecer, em minúcias, o Estado, esse Leviatã que, apesar de certa ferocidade, continua mantendo, com seus tentáculos, a maioria de nossas biliotecas.
[1] DAVIS, K. Human society. New York: MacMillan, 1948. p. 3, tradução nossa.
[2] FOUCAULT, M. Inutile de se soulever? In: ______. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. v. III, p. 791, tradução nossa.
[3] CONSELHO FEDERAL DE BIBLIOTECONOMIA. Resolução nº 207, de 2018. Aprova o Código de Ética e Deontologia do Bibliotecário brasileiro, que fixa as normas orientadoras de conduta no exercício de suas atividades profissionais. Disponível em: <http://www.cfb.org.br/wp-content/uploads/2018/11/Resolu%C3%A7%C3%A3o-207-C%C3%B3digo-de-%C3%89tica-e-Deontologia-do-CFB-1.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2019.
[4] NASH, L. L. Ética nas empresas: guia prático para soluções de problemas éticos nas empresas. 5. ed. São
Paulo: Makron Books, 2001.
[5] APATIA. In: Bobbio et ali. Dicionário de política. 4. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1992. v.1, p. 56.
[6] FOUCAULT, M. Ditos e escritos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. v. IV, p. 233.
[7] BRAYNER, C. O poder. In:______. A biblioteca de Foucault: reflexões sobre ética, poder e informação. São Paulo: É Realizações, 2018.
[8] BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 386, de 2019. Altera a Lei nº 10.753, de 30 de outubro de 2003, para incluir, na Política Nacional do Livro, medidas de estímulo à criação, manutenção e atualização de bibliotecas públicas e escolares. Disponível em:
< https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191053>. Acesso em: 18 fev. 2019.
[9] BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 391, de 2019. Altera o art. 23 e o art. 24 da Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009, que “Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica; altera as Leis nos 10.880, de 9 de junho de 2004, 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, 11.507, de 20 de julho de 2007; revoga dispositivos da Medida Provisória no 2.178-36, de 24 de agosto de 2001, e a Lei no 8.913, de 12 de julho de 1994; e dá outras providências”, para estabelecer a obrigatoriedade da destinação de, no mínimo, 3% (três por cento) dos recursos do Programa Dinheiro Direto na Escola para a compra de livros para as bibliotecas escolares. Disponível em:
< https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191058>. Acesso em: 18 fev. 2019.
[10] BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 112, de 2019. Torna obrigatória a manutenção de ao menos 1 (um) exemplar da Lei Maria da Penha em escolas e bibliotecas públicas, unidades de saúde e delegacias de polícia. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2190574>. Acesso em: 18 fev. 2019.
[11] BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 502, de 2019. Institui o programa “Escola Sem Mordaça” em todo o território nacional. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191271>. Acesso em: 18 fev. 2019.
[12] BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 765, de 2019. Acrescenta § 9º ao art. 4º da Lei nº 8313, de 23 de dezembro de 1991, para dispor que pelo menos 40% (quarenta por cento) dos recursos Fundo Nacional de Cultura deverão ser empregados em projetos vinculados à cultura e à arte dos povos negros e indígenas do Brasil. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191951>. Acesso em: 18 fev. 2019.
[13] BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 1, de 2019. Declara a Bíblia Sagrada como Patrimônio Nacional, Cultural e Imaterial do Brasil e da Humanidade. Disponível em:
< https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2190407>. Acesso em: 18 fev. 2019.
[14] BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 2, de 2019. Proíbe o uso o nome e/ou título BÍBLIA ou BÍBLIA SAGRADA em qualquer publicação impressa e/ou eletrônica com conteúdo (livros, capítulos e versículos) diferente do já consagrado há milênios pelas diversas religiões Cristãs (Católicas, Evangélicas e outras que se orientam por este Livro – Bíblia). Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1706762&filename=PL+2/2019>. Acesso em: 18 fev. 2019.
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