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Museu Nacional: notas do dia primeiro, depois do fim

Parte dos fundos do Museu Nacional após o incêndio. Foto: Chico de Paula / Agência Biblioo

Em sua nota nas redes sociais, Marcelo Crivella afirma que a reconstrução do “palácio” é “dever nacional”, pois este é a “lembrança da família imperial”. Em entrevista ao repórter, chama D. Pedro II de “o brasileiro mais conspícuo”. Palavra ensaiadas, repetidas à exaustão: é possível conferir o prefeito falando as mesmas tolices em diversas vídeos na internet.

Em momento algum, no entanto, o prefeito toca no assunto do acervo. Sequer menciona a palavra. Além de evidenciar a perversidade de querer esquivar-se do assunto, Crivella mostra com isto que sequer entende a dimensão da perda. O objetivo do Estado, segundo nosso representante, deve ser o de preservar a única parte da perda que talvez uma fotografia fosse o suficiente: a casa do monarca.

Mas o Brasil não precisa de memórias da monarquia, porque os delírios monárquicos estão suficientemente vivos no Brasil: as classes dominantes de nosso pretenso estado democrático de direito agem como se não tivessem compromisso algum, exceto com sua própria voracidade.

As aspirações monárquicas estão ainda difundidas no imaginário popular: ao criminoso que fornecia comida de má qualidade superfaturada ao governo do estado do RJ na gestão do Garotinho, deu-se a alcunha de “rei das quentinhas”; não menos orgulhoso de seu reinado (ainda que consideravelmente mais breve), de tempos em tempos a imprensa nos presenteia com um “rei do pó”; em campos menos arriscados (mas não menos polêmicos), temos o “rei do futebol” e o da música, que é simplesmente “o rei”; em proporções mais modestas, há sempre um “rei dos colchões” ou “rei das empadas”, normalmente regional e autodenominado. Isto para não falar das rainhas, príncipes e princesas…

Fachada do Museu Nacional no dia seguinte ao incêndio. Foto: Chico de Paula / Agência Biblioo

O Brasil não precisa, desta forma, de memórias da monarquia. Não fosse por nenhuma constatação popular, o Museu Imperial já seria recordação mais que o suficiente: memória romantizada, que apresenta a família imperial como uma família boa, culta, sem a qual o Brasil não existiria.

Crivella insiste na restauração do prédio do Museu Nacional, porém, porque este é o único modo de desviar o assunto de sua verdadeira gravidade: não é possível para o Brasil – e para o mundo – reparar a perda do próprio passado. Não será possível jamais resgatar a diversidade linguística ali preservada, assim como não será possível jamais resgatar os fósseis, a coleção egípcia, a coleção etrusca, as pesquisas em andamento. Agora: cinzas.

Estas cinzas são produto da política que trata a cultura e a educação como acessório da economia, de quem faz obra de fachada como quem engraxa o sapato ou encera o chão (como é encerado o chão do nosso Museu Imperial, por exemplo). É certo que o repasse de verbas do governo golpista para o Museu Nacional foi exíguo? Sim. É certo que o governo golpista trabalha arduamente no sucateamento das universidades públicas? Sim. É certo que o governo golpista (e seus apoiadores na sociedade) carrega consigo uma certa nostalgia pelos tempos onde os pobres eram carvão para queimar na indústria e não tinham aspirações como universidade ou direitos? Sem dúvida.

Mas o problema da cultura e da educação é algo mais estrutural e sistemático em nosso país: mesmo o crescimento do investimento na área durante os oito anos de governo Lula é residual se comparado às áreas capazes de gerar capital. Mostra mais evidente da profundidade do problema é quando vemos pessoas das áreas de letras, artes, música, filosofia ou história convictas de que a tal da “ciência” tem mais valor do que a sua área.

“Ter mais valor” aqui é ser mais capaz de converter sua pesquisa em dinheiro. É a universidade atirando no próprio pé. Nada surpreendente para uma sociedade que está acostumada a medir-se por critérios como PIB, produção de soja, balança de exportação, risco Brasil e outros signos duvidosos do duvidoso progresso.

Foi lamentável, desta forma, ver que enquanto o espetáculo pirotécnico do fim ainda estava em andamento, pessoas estavam nas redes sociais creditando a derrota a esta ou aquela figura pública. “A tragédia é perfeitamente fulanizável”, li de algum colega. E isto mostra o quanto estamos cegos para o fato de que o apagamento do passado é uma marca sistemática da história do Brasil.

Uma viga retorcida fica visível no meio do prédio destruído. Foto: Chico de Paula / Agência Biblioo

O que fazemos disto é uma não-história sobre um país sem povo. No aniversário de 200 anos do Museu Nacional, seu presente foi ser imolado com transmissão ao vivo, num macabro ritual do capitalismo tardio, onde o que ficou evidente é que o fim do passado é um triunfo da economia. Quantas fogueiras mais precisarão ser acesas para que comecemos a enxergar algo?

Da mesma forma, a restauração do “palácio” é uma forma de contribuir com este apagamento. O Museu Nacional não era a casa do monarca. A casa do monarca não faz a menor diferença agora. Diferença fazia o acervo. Restaurar o palácio é proceder com a série de apagamentos da história do Brasil e assumir que é possível reconstruir o Museu Nacional. Mas não é.

O museu acabou. Porque o que fazia do Museu, museu, era a memória que ali estava guardada. E esta não existe mais: virou as cinzas que o vento soprou e agora se dispersam pelas redondezas da Quinta da Boa Vista, numa irônica forma de difusão do saber: deverão parar em apartamentos, sobre as pessoas em situação de rua, no lago, na Aldeia Maracanã…

A UFRJ, instituição da qual o Museu fazia parte (e que passou por um considerável número de incêndios nos últimos dez anos), deveria se posicionar contra a restauração da casa do imperador. A melhor homenagem ao Museu é deixar o que sobrou de pé, só com o meteorito (talvez o único item do acervo que tenha resistido ao incêndio) dentro: um local de memória e resistência que atente sempre para nossa fragilidade enquanto povo. Reconstruir será estetizar a barbárie e, mais uma vez, repetir a história por recusar aceitar a tragédia.

Tanto quanto o valor histórico, porém, me acossam e me derrotam as questões da existência (acerca das quais Eliane Brum escreveu um texto emocionante): o que fazer no Dia Primeiro, o dia em que o ontem cessou de existir? Darcy Ribeiro propôs fundar o Brasil numa “ninguendade”, um grande exercício de criatividade, descolonização e emancipação. Mas que país é possível de ser fundado sobre o nada? O que Darcy Ribeiro – entre outros tantos – fa(la)ria numa hora dessas? Lembro também da Macondo de Cem Anos de Solidão, que sempre li como a grande epopeia da América Latina (onde Gabriel García Marquez é o nosso cigano Melquíades).

Meu sentimento é de que o brasileiro fica mais próximo de tornar-se um destes povos míticos onde o erro, o devaneio e o delírio é a única memória possível e o desterro, o não-lugar, a utopia, a única terra. Mas desta vez, qual será a utopia do Brasil? Não tenho a resposta, mas sei que qualquer que seja, será menos alegre que ontem. Porque até ontem ainda tínhamos ontem.

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