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No mês da mulher, por que as poetas negras foram esquecidas?

Poetas negras Conceição Evaristo, Paulina Chiziane e Geni Guimarães. Imagem: montagem Biblioo

Dia 21 de março foi o Dia Mundial da Poesia. Foi também o Dia Internacional da Discriminação Racial. Apesar disso, todas as homenagens que vi sobre o Dia da Poesia eram de autores brancos. A sua maioria homem, mesmo no mês em que homenageamos mulheres em seu “Dia Internacional” (08). Nessas muitas homenagens havia, às vezes, uma ou duas mulheres, sempre brancas.

Então, ao invés de uma resenha de livro este mês, falarei de poetas mulheres. Não porque eu ache que todas as homenagens eram necessariamente machistas, mas porque a cultura é. Logo o mercado editorial, a difusão de poesia, o que é considerado clássico, importante, belo e/ou melhor também são.

E nunca é a poesia feita por mulheres que é exaltada. Especialmente se essa poesia não for sobre flores, amores, filhos, família e outros assuntos atribuídos ao “feminino”. Não há aqui uma condenação a esses temas, mas um chamado à reflexão de que esses não são os únicos temas que interessam a muitas mulheres que escrevem.

Existem poetas maravilhosas por aí. Sim, poetas. A palavra poetisa é descartada pela maioria das poetas contemporâneas, já falei sobre isso ano passado, no Medium. Por quê? Oras, a pergunta deveria ser ‘Por que diferenciar’, não é mesmo? A poesia não é atemporal, indistinta, artística? Não é tão valorizada a sensibilidade dos poetas, característica sempre tão atribuída à mulher e ao feminino?

Por que será que as características femininas são tão bem vistas em homens específicos, em especial os da elite e das artes, mas as características masculinas nunca são bem vistas nas mulheres, em nenhum contexto?

Voltando às poetas, pensei que pode haver alguma dificuldade de lembrar delas, lembrar seus nomes. Afinal, o que é sempre dito e lembrado são os mesmos nomes, os mesmos homens, as mesmas poesias, não é mesmo?

O momento político e social, no Brasil e no mundo pode parecer não estar para poesia. Mas é a poesia que pode nos salvar justamente nesse momento.

Pergunto-me porque nem as pessoas que estudam poesia feita por mulheres, feministas, militantes de diversas áreas fizeram um post com as maravilhosas poetas para este dia. As mulheres continuam sendo apagadas da história: por isso esse texto.

Conceição Evaristo! Não é possível que vocês não tenham ouvido esse nome ainda. Gostaria que não fosse possível. Pois bem, escolham qualquer texto, porque mesmo a prosa desta escritora é bastante poética.

Conceição é mineira, professora aposentada e doutora em Literatura Comparada. É uma das escritoras mais generosas que tive a honra de conhecer. Conceição tem dois romances publicados, três livros de contos, participa de diversas coletâneas e tem muitos textos publicados no Cadernos Negros, coletânea tradicional e resistente que inspira autorxs negrxs desde 1978.

De seu único livro de poemas, Poemas da recordação e outros movimentos (2017), trago um dos meus favoritos para vocês:

Recordar é preciso (Conceição Evaristo)

O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos.

A memória bravia lança o leme:

Recordar é preciso.

O movimento de vaivém nas águas-lembranças

dos meus marejados olhos transborda-me a vida,

salgando-me o rosto e o gosto. Sou eternamente náufraga.

Mas os fundos oceanos não me amedrontam nem me imobilizam.

Uma paixão profunda é a boia que me emerge.

Sei que o mistério subsiste além das águas.

Paulina Chiziane

Desta autora eu já falei pra vocês, tem até artigo aqui na Biblioo. Ela é moçambicana e muito religiosa. São tantos os seus livros publicados que não me arrisco a dizer quantos sem uma minuciosa pesquisa, o que não farei agora.

No entanto, são todos livros bem recomendados e sua poesia tem algo único, difícil de explicar. Deixo aqui um trecho que possa instigar sua curiosidade de saber mais:

Escravatura abolida (Paulina Chiziane)

 Escravatura abolida. Gritos de euforia

Letras mortas nas cartas de alforria

Fim do assalto ao continente africano

Morte da dor e ressurreição dos fantasmas

 

Quem vai cultivar as plantações de cana-de-açúcar?

Quem vai lavar a loiça (sic) depois da pantagruélica refeição?

Quem pagará o salário ao batalhão de escravos libertos?

Quem? O antigo patrão ou as suas ociosas senhoras?

 

Morreu a escravatura ostensiva, oficial, legal

Os traficantes de gente organizam-se novamente

E a escravatura ressurge silenciosa, sutil, invisível

Nos cantos mais sombrios do mundo

 

Agora é a escravatura sexual que atormenta as mulheres

Escravatura do vício, do crime organizado, dizimando jovens

Esposas e filhas escravizadas na cozinha da casa

E todo o planeta terra escravizado nas malhas da globalização

Escravatura abolida?

Escravatura antiga com nova face

Vestido novo em corpo velho!

Geni Guimarães

A Geni Guimarães é paulista, foi professora, e assim como a Conceição Evaristo, tem uma prosa poética linda. Já falei de um livro dela aqui na Biblioo. Deixo aqui uma de suas poesias, para compor esse conjunto de homenagens poéticas.

Integridade (Geni Guimarães)

ser negra,

na integridade

calma e morna dos dias.

ser negra,

de carapinhas,

de dorso brilhante,

de pés soltos nos caminhos.

ser negra,

de negras mãos,

de negras mamas,

de negra alma.

ser negra,

nos traços,

nos passos,

na sensibilidade negra.

ser negra,

do verso e reverso,

do choro e riso,

de verdades e mentiras,

como todos os seres que habitam a terra.

negra

puro afro sangue negro,

saindo aos jorros

por todos os poros.

Tem outra seleção minha de poemas aqui. E para quem tem interesse, vale a pena olhar o site do Literafro: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras

Outros nomes que vale a pena procurar:

Alzira Rufino, Ana Cruz, Beatriz Nascimento, Bianca Gonçalves, Cidinha da Silva, Cristiane Sobral, Elaine Marcelina, Elisa Lucinda, Elizandra Souza, Érica Peçanha do Nascimento, Esmeralda Ribeiro, Jarid Arraes, Letícia Brito, Lia Vieira, Lubi Prates, Luz Ribeiro, Mel Duarte, Miriam Alves, Roberta Estrela D’alva, Ryane Leão, Tatiana Nascimento Dos Santos, Angélica Freitas, Ana Cristina César, Pagu, Adélia Prado, Cora Coralina, Hilda Hilst. Procurem também o Slam das Minas: é pura potência.

Que as poesias de março fechem o seu verão com com inspiração e reflexão.

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