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“Não permitas que alguém te negue o direito de expressar-te, que é quase um dever”

A afirmação que serve te título a este artigo é do poeta americano Walt Withman e está no poema “Carpe diem/Aproveite o dia”, popularizado na voz do ator Robin Willians no filme “A sociedade dos poetas mortos”, onde este interpreta um professor nada convencional em uma escola que é pura rigidez e conservadorismo. Seu objetivo era que seus estudantes (sim, eram todos do sexo masculino) pensassem por si próprios, com uma visão crítica da sociedade e capazes de expressar seus sentimentos. #ficaadica para assitir, até porque segue sendo um tema extremamente atual.

Aprendemos a nos expressar por meio das múltiplas experiências sociais que vivemos, dentre as quais está, obviamente, a nossa imersão na cultura escrita. Uma tecnologia desenvolvida há cerca de 6 mil anos pelos sumérios para registrar transações comerciais. Como sabemos, alguns mais e muito mais gente muito menos ou quase nada, a escrita representa um dos grandes saltos evolutivos da nossa espécie, que proporcionou uma ampliação exponencial da  memória acerca da aventura humana na Terra – e nas últimas décadas em outros planetas também.

Tudo o que sabemos e boa parte do que não sabemos – porque há o que  ainda não sabemos que não sabemos -, nossas perguntas, muitas respostas, sonhos, medos, fatos, ficção, balanço financeiro, ciências, poesias e muito mais que não me vêm à memória agora pode ser conhecido porque está e seguirá sendo registrado pela escrita. Logo, como você pode constatar, ter acesso à cultura escrita não é uma opção em nossa sociedade, é condição sine qua non para viver em sociedade sabendo plenamente como se expressar, da forma como preconizava  o professor interpretado por Robin Willians, certo? Se alguém duvida disso por favor levante a mão.

Estando nós na mesma página sobre a importância da cultura escrita, vamos juntes pensar o que anda ocorrendo para a gente seguir enxugando gelo por aqui e ter apenas 12% da população brasileira plenamente letrada[1], como nos mostra o INAF 2018. Eu tenho algumas ideias a respeito. Por um lado há a sentença de que não se “gosta” muito de ler por aqui, como se ler fosse um ato natural como respirar, o que não é e a ciência já demonstrou que nosso cérebro não está naturalmente programado para ler, sem oferecer de fato e sistematicamente os meios objetivos para aprender a ler e “gostar” de ler.

Aliás, como se não saber ler fosse uma opção e não uma condição. Por outro lado há um certo maravilhamento, quase uma espera que se operem transformações mágicas porque se lê, como fosse a cultura escrita o avião invisível da mulher maravilha que nos leva para Shangrilá  sem escalas e sem considerar as condições objetivas da vida de cada qual: históricas, afetivas, sociais, emocionais, econômicas, culturais  etc. Aliás, escravagistas liam e leem, nazistas liam e leem… Em resumo, ler não é panacéia de todos os males, mas sem dúvida é meio objetivo para lutar contra o obscurantismo, o reacionarismo, os retrocessos, mas, e tem sempre um mas, o que se lê, como se lê, para que se lê, o que faz com o que lê pesa muito.

“Nosso cérebro de leitor se constrói com a ajuda de instruções genéticas idênticas àquelas que, há dezenas de milhares de anos, permitiam a nossos ancestrais, caçadores-coletores, subsistirem: nós partilhamos as emoções de Nabokov e a teoria de Einstein com um cérebro de primata, concebido para a sobrevivência numa savana africana”, Stanisla Dehaene.

A experiência de vida e de leitura de cada qual é apenas isso: uma experiência individual que não dá para ser “A” referência para todas as gentes. Há uma certa ingenuidade em teletransportar nossa experiência, ou nossa percepção sobre a nossa experiência, para outras, outros, outres.

Vivemos numa sociedade que superficializa o conhecimento e torna a educação a instrumentalização para a inclusão  no mercado de trabalho como objetivo de vida, com ajustamento acrítico aos padrões socioeconômicos e culturais vigentes. E é mais do que visível que precisamos encontrar soluções contra o racismo, o negacionismo, os preconceitos de todas as ordens, o ódio, um modelo de desenvolvimento que gera altíssima concentração de renda, prolifera a pobreza e as desigualdades, consome o planeta com extraordinária voracidade…

E isso não virá sem muito esforço, sem uma educação pautada na formação do ser humano integral, sem leituras plurais, singulares, que não negue a humanidade de ninguém. Uma jornada que nos prepare a fazer boas escolhas de leitura, inclusive, que é resultado objetivo de experiências leitoras de qualidade e melhores serão na medida em que essas experiências forem significativas, que ofereçam a oportunidade de viver a diversidade, que sejam representativas, que convoquem a indagar a vida e buscar meios para efetivar uma sociedade plural e democrática. “Aprender a ler e escrever na escola deve, portanto, ser muito mais que saber uma norma ou desenvolver o domínio de uma tecnologia para usá-la nas situações em que ela se manifesta: aprender a ler e escrever significa dispor do conhecimento elaborado e poder usá-lo para participar e intervir na sociedade”, defende Percival Leme Britto.

É impossível desvincular o pleno ingresso na cultura escrita da responsabilidade da família, da escola, de professores e, destaco, das universidades que formam professores. A pergunta é: o que as universidades estão fazendo para oferecer disciplina obrigatória na formação de professores? Deve haver uma cobrança séria, sistemática, porque sem uma resposta séria e sistemática para a formação de professores seguiremos tirando retratos frustrantes sobre o cenário de leituras e leitores.

É impossível o pleno ingresso na cultura escrita com o barateamento do conhecimento. “Perplexo, confrontado com os enigmas, lê-se!”, escreve Graciela Montes. “Tem que haver um vazio que será preenchido lendo. Se o vazio não estiver alí, de nada adianta empurrar a leitura para dentro”. Desafios? Derrubar tanto o maravilhamento quanto a superficialidade. É preciso uma intervenção enfática, cooperada e sustentável para nos retirar do lugar de consumidores de informação para produtores e críticos do conhecimento.

Muita informação. Pouca compreensão.

O cérebro leitor é resultado de uma longa jornada para a constituição de toda uma circuitaria que viabilizará o processamento de leituras cada vez mais aprofundadas e com diversos níveis de dificuldade. É preciso tempo e frequência, sem pressa e sem pausa, para transformar o que lemos em conhecimento consolidado e consolidar as vias neurais que nos tornam leitoras(es) proficientes. Essa capacidade pode estar sendo subvertida, alertam especialistas, devido ao excesso de leituras superficiais, com constante deslocamento da atenção, que inviabilizam experiências de leituras profundas necessárias para o que eu chamo de “enraizamento do cérebro leitor”.

É como se estivéssemos desperdiçando potência ao invés de usá-la em prol de sua consolidação. É o que acontece com a prática do “multitasking”, que significa realizar múltiplas tarefas simultaneamente on line, que ao mesmo tempo em que promove a capacidade de lidar com diversos fluxos de atenção gera dependência de dopamina (recompensa o cérebro por buscar constantes estímulos) e desestimula a memória.

Imersos num mundo onde a informação trafega numa velocidade alucinante e onde literalmente qualquer pessoa em qualquer parte do mundo gera conteúdos (texto, video, audio, imagem) que são postados instantaneamente em diversas midias digitais, tão diferente dos tempos em que a informação estava organizada em enciclopédias, é muito fácil cair em armadilhas informacionais, as propaladas fake news.

É preciso “[…] buscar elevar os estudos para além do pragmático e do cotidiano. A investigação da linguagem humana supõe considerar as formas de expressão, as artes, os valores, os conceitos, assim como as teorias e modelos de análise, numa lógica de conhecimento em que não se admite a reprodução de fórmulas equivocadas nem preconceitos e juízos de valor camuflados de verdade […]”, escreveu Percival Leme Britto nos idos de 2007. Quando o conhecimento produzido não é matéria prima de políticas robustas e sustentáveis o que se descobre é um retrato tão frustrante quanto perigoso, como os que foram divulgados recentemente a partir da pesquisa realizada em 2018 pelo PISA, cuja manchete é: “nativos digitais não sabem buscar conhecimento na internet”.

Os dados foram coletados em momento anterior à pandemia, o que certamente pode significar que a desigualdade verificada entre estudantes que tiveram todos os recursos à sua disposição para ter êxito nos testes e aqueles que não têm se aprofundaram ainda mais. Foi avaliada a habilidade em navegar em diversas fontes e ser capaz de extrair informações relevantes tendo em vista a qualidade da fonte, sabendo discernir entre fato e opinião. Considerou-se como leitura bem sucedida ser capaz de envolver os seguintes processos cognitivos: 1) Localizar: informações para acessar e recuperar informações em um texto para pesquisar e selecionar textos relevantes; 2) Compreender: o significado literal das passagens e integrar diferentes partes do texto; 3) Avaliar e refletir: avaliar a qualidade e credibilidade das informações extraídas do texto, refletir sobre o conteúdo, formar opiniões, detectar e lidar com informações conflitantes de vários textos.

Na média dos países da OCDE, que totalizam 37 membros e são aqueles que apresentam maior índice de desenvolvimento, apenas 47% dos estudantes são capazes de discernir fatos de opinião, ou seja, menos da metade. No Brasil o índice é de 33%. As habilidades de navegação foram consideradas altamente eficientes para apenas 24% dos estudantes na média da OCDE, e para apenas 15% dos estudantes no Brasil.

Confira alguns dos achados do relatório:

Deixo você na ótima companhia dos versos de Walt Withman para ajudar a digerir os dados, refletir, resistir, sem jamais perder a crítica e ternura.

Aproveita o dia (Walt Whitman)

Aproveita o dia,
Não deixes que termine sem teres crescido um pouco.
Sem teres sido feliz, sem teres alimentado teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue o direito de expressar-te, que é quase um dever.
Não abandones tua ânsia de fazer de tua vida algo extraordinário.
Não deixes de crer que as palavras e as poesias sim podem mudar o mundo.
Porque passe o que passar, nossa essência continuará intacta.
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Nos derruba, nos lastima, nos ensina, nos converte em protagonistas de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua, tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar, porque só nos sonhos pode ser livre o homem.
Não caias no pior dos erros: o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso. Não te resignes, e nem fujas.
Valorize a beleza das coisas simples, se pode fazer poesia bela, sobre as pequenas coisas.
Não atraiçoes tuas crenças.
Todos necessitamos de aceitação, mas não podemos remar contra nós mesmos.
Isso transforma a vida em um inferno.
Desfruta o pânico que provoca ter a vida toda a diante.
Procures vivê-la intensamente sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro, e encara a tarefa com orgulho e sem medo.
Aprendes com quem pode ensinar-te as experiências daqueles que nos precederam.
Não permitas que a vida se passe sem teres vivido…

[1] “[…] habilidade de ler, compreender, tomar decisões e argumentar a partir da avaliação de diversas variáveis e bases textuais […]”

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