Todo jogo tem suas regras, que devem ser conhecidas e acatadas pelos jogadores. É certo. A literatura é um jogo. Suas leis, as regras, porém, não são imutáveis. Flexíveis, moldam-se com o tempo e o espaço em que atuam. Mas é preciso que o leitor aceite que aquilo tudo faz parte do jogo de representação.
Desde a Grécia antiga, representar significava ver o mundo criado como uma representação. Veja bem, você sabe que no mundo da ficção tudo é mentira (ou melhor, invenção). Mas essa invenção precisa parecer verdade, deve convencer. Ficção vem de ficcione, ou seja, fingir. Você mergulha de cabeça na história, e sofre a dor das pessoas de papel e tinta, e chora suas mágoas, e alegra-se com suas vitórias. Mas, no fundo, sabe que todo esse feixe de sensações é consequência da sua aceitação do jogo.
De todos os gêneros literários, o romance é o que mais permite alterar as normas. Desde Cervantes com seu Dom Quixote a narrativa ficcional muda de roupa e de máscara. O romance é transgressor por excelência, não se acomoda com as mesmas formas de narrar. Vive se reinventando. E, vez por outra, diz que não aceita que o tratemos como mero espelho de nossas vidas. Se é arte, quer de nós um olhar mais apurado para as estratégias de composição, que o validam como objeto estético.
O romance diz: “Leia-me, mergulhe no que tenho a lhe dizer, mas perceba como eu o disse. Observe que não estou apenas entretendo-o com meras histórias. O tecido tem tanta importância quanto a cor que o tingimos, ou melhor, as estratégias narrativas valem tanto quanto o tema”.
A ficção moderna propõe uma ruptura com o “aparente realismo”. Não é bom o romance porque parece que expõe um fato crível. É bom porque foi elaborado com engenho e arte. Alguns escritores fazem questão de mostrar isso na própria obra. Construída com base no estranhamento, a narrativa solicita ao leitor outra perspectiva de leitura.
É o caso da ficção do argentino César Aira. O livro Como me tornei freira é um exemplo dessa subversão ao mundo da aparência que a literatura construiu para si. Vejamos alguns desses deslocamentos.
Duas novelas compõem o livro. Na primeira (e é só dela que trato aqui), César Aira é o narrador-personagem que conta os sucessivos fatos dolorosos que marcam sua vida aos seis anos de idade. Bem, mas é o narrador ou o autor do livro quem é protagonista? Seria uma autobiografia? Apenas no último dos dez capítulos sabemos que não se trata de autobiografia porque o menino Aira não está mais nesse plano. O que sobrou foi o Aira autor.
Depois, desde os primeiros momentos do texto observamos que quem narra se refere a si mesmo como uma garota, mas os outros o sabem menino. Estamos diante de uma confusão de gênero? Um menino que se vê menina e sofre diante da incompreensão do pai, da mãe, da professora? Um transgênero, onde a identidade de gênero não corresponde a que lhe foi atribuída no nascimento? Isso também não se resolve ao final do texto. Que regra é essa que o autor quer que nos apeguemos?
O menino César Aira é um exímio contador de histórias, ou melhor, expert em simular e dissimular fatos, alguns elaborados no seu inconsciente, por meio de sonhos. De tal modo há um emaranhado de episódios na novela que ficamos na dúvida: esse menino viveu, sonhou ou inventou tudo isso?
Sofremos do início ao fim com a vidinha martirizada do César (da César). A relação pai-filho não parece muito tranquila, mas se agrava quando o pai decide mostrar algo que Aira certamente amará: tomar sorvete. O pai compra um sorvete de morango e o menino põe a primeira colherada na boca e odeia o sabor, mas é obrigado a comer tudo. Só depois o pai percebe que o sorvete estava estragado e vai tomar satisfação com o atendente da sorveteria, matando-o no balde do sorvete contaminado com cianureto. Enquanto o pai é condenado a oito anos de prisão, o filho passa alguns meses num hospital, lutando pela vida.
E assim vemos um narrador que aprende a dissimular fatos, que engana mãe, enfermeira, professora, pai, o único colega da escola, seu vizinho que se veste estranhamente como um adulto. Os relatos são tão marcantes e detalhados, que logo imaginamos como será o futuro dessa criança. Supomos, então, que o presente da narrativa é o protagonista já adulto tentando, pela palavra, a cura para tanta incompreensão. Mas não é bem isso que ocorre ao fim da narrativa.
Resultado: o autor nos pregou uma peça. Como se dissesse: “bobo, você não sabe que nesse jogo ficcional não precisa descrer de tudo, mas também não é bom crer piamente no narrado? Não aprendeu as estratégias de como entrar e sair da verossimilhança? Quem narra um fato, nunca estará ressuscitando o evento, mas apenas reconstruindo-o com o poder do discurso? Sentiu-se traído? Traição não é uma das regras? É preciso aceitar que tudo isso seja invenção e por isso as aproximações com a vida humana são máscaras de que se serve a literatura para simular e dissimular a vida.
Como o César Aira (não o autor, mas o menino/menina que conta suas desventuras), a literatura quer que prestemos atenção às suas leis internas. Tudo vale ali, porque não é um mundo físico e concreto. Ele só se concretiza no plano de nossa imaginação, quando aceitamos que tudo aquilo pode existir, ou mesmo existe porque o ajudamos a acomodar todos esses relatos em imagens que elaboramos.
Ah, e um deslocamento final: por favor, preciso que me digam onde entra o título da novela na trama. Qual a relação? Seria mais uma dessas estratégias de desconstrução da aparência real do mundo narrativo? No fundo, é preciso ler César Aira para se pensar na ideia de que a regra é não seguir definitivamente a regra. No jogo da leitura, da escrita, da literatura, vale tudo, menos a ideia de que não vale ser enganado.
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