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Herança africana: um patrimônio cultural da humanidade no Brasil

Desenterrado em 2011 durante obras do Porto Maravilha, Cais do Valongo é reconhecido Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Foto: Bruno Bartholini

O último mês foi marcado pela valorização da cultura negra no Rio de Janeiro. No dia 09 de julho, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) incluiu o Cais do Valongo como um dos Patrimônios Culturais da Humanidade. “É o mais importante vestígio físico da chegada dos escravos africanos ao continente americano”, disse a entidade em nota.

Segundo o site Porto Maravilha, o Cais do Valongo teve duração de um século, de 1811 a 1911, quando houve o aterramento na região. Durante este período desembarcaram milhares de africanos, principalmente vindos do Congo e de Angola, Centro-Oeste africano.

Neste um século de existência, o Cais passou por algumas transformações, sendo a primeira em 1843 com a chegada da noiva de Dom Pedro II, a Imperatriz Teresa Cristina Maria de Bourbon. O local ganhou um obelisco e passou a ser chamado Cais da Imperatriz.

Talvez a “redescoberta” do Cais do Valongo seja a maior herança deixada pelas Olimpíadas de 2014 no Rio de Janeiro, trazendo à tona a história da cidade que estava aterrada. Com as obras para o evento esportivo na região do Porto, no Centro do Rio de Janeiro, arqueólogos do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) encontraram muitos registros fósseis durante as escavações.

Acervo do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos. Foto divulgação

A partir daí, uma parte da história pôde ser resgatada e valorada, embora seja uma história terrível, pois trata-se da escravidão africana no Brasil. O Cais do Valongo é  um dos 14 sítios culturais no país e a 21ª atração brasileira com o status de Patrimônio Cultural da Humanidade dado pela Unesco.

Para quem não conhece a região, vale a pena conhecer o  Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), conhecido também como o Cemitério dos Pretos Novos (que funcionou entre os anos de 1769 a 1830) ou Memorial dos Pretos Novos. O Instituto é um centro cultural com um sítio arqueológico criado em 1996 e é composto de ossadas, geralmente de jovens do sexo masculino, além de pontas de lança, argolas, colares, contas de vidro, artefatos de barro, porcelanas, conchas, vestígios de fogueira indígena e louças portuguesas.

O IPN está localizado na Rua Pedro Ernesto, números 32 e 34, no bairro da Gamboa (RJ) e tem como objetivo fazer uma reflexão sobre a escravidão no Brasil, preservar a memória dos Pretos Novos e desenvolver pesquisas sobre esta temática. Mais informações sobre o IPN, assistam ao documentário Memorial Pretos Novos – Bloco 1 da TV ALERJ, clicando aqui.

Outra instituição referência para o estudo do tema do tráfico atlântico, do comércio de escravos e da escravidão é acervo do Arquivo Nacional. Assim como tem a custódia de fontes sobre região do Cais do Valongo, como o Registro de ordens e Ofícios expedidos da Polícia aos ministros criminais dos bairros: “Nos fundos da rua nova de São Joaquim e fundos das casas novamente edificadas nos cajueiros há um pântano que além de nocivo a saúde pública ainda de mais a mais é cemitério de cadáveres de negros novos, pela ambição dos homens de valongo que para ali os lançam a fim de se forrarem a despesa de pagar cemitério” (Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1815. Polícia da Corte, códice 329, vol. 03. Fonte: Facebook do Arquivo Nacional).

O Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos fica localizado na região do Porto no Rio. Foto: divulgação.

No final do mês (26 a 30 jul.), a 15ª Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP 2017) homenageou o escritor negro Lima Barreto (1881- 1922). Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro e era filho de escrava liberta e professora, Amália Augusta, e do tipógrafo, João Henrique.

Tanto por parte de mãe quanto de pai, Lima Barreto possuía descendência negra. Jornalista e escritor, Lima Barreto publicou romances, sátiras, contos, crônicas, principalmente no Jornal da Manhã, e em revistas como a Fon-Fon e Revista da Época, utilizando-se de pseudônimo onde fazia críticas à política e à sociedade  da cidade e do país, no início do século XX . Entre suas principais obras estão O homem que sabia javanês (1911), O triste fim de Policarpo Quaresma (1915) e Clara dos Anjos (1922).

Segundo a curadora da Flip 2017, Joselia Aguiar, “por muito tempo Lima Barreto ficou na ‘aba’ de literatura social, e sua obra e trajetória possibilitaram muitos debates sobre a sociedade brasileira. O que eu gostaria, mesmo, é que a Flip contribuísse para revelar o grande autor que ele é. Para além das questões importantíssimas sobre o país que ajuda a levantar, tem uma expressão literária inventiva e interessante, à frente de sua época em termos formais, capaz de inspirar toda uma linhagem da literatura em língua portuguesa”.

Um dos grandes momentos da Flip 2017 foi quando o ator Lázaro Ramos leu o texto de Lima Barreto A República no Brasil é o regime da corrupção na mesa Lima Barreto: triste visionário. Parte do trecho foi:

“A República no Brasil é o regime da corrupção. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém admite que se divirja deles e, para que não haja divergências, há a ‘verba secreta’, os reservados deste ou daquele Ministério e os empreguinhos que os medíocres não sabem conquistar por si e com independência […] Ninguém quer discutir; ninguém quer agitar idéias; ninguém quer dar a emoção íntima que tem da vida e das coisas. Todos querem ‘comer’. ‘Comem’ os juristas, ‘comem’ os filósofos, ‘comem’ os médicos, ‘comem’ os advogados, ‘comem’ os poetas, ‘comem’ os romancistas, ‘comem’ os engenheiros, ‘comem’ os jornalistas: o Brasil é uma vasta ‘comilança’.” (Lima Barreto, 1918).

Objetos do acervo do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos. Foto: divulgação.

Assim como Lima Barreto fazia críticas à sociedade e a política da época, durante a 15ª FLIP, houve vários momentos onde foram feitas críticas ao Brasil atual, como na mesa “Território Flip/Flipinha: a pele que habito” que uniu o ator Lázaro Ramos e a jornalista Joana Gorjão Henriques para discutir o tema racismo, ocasião na qual a professora aposentada, Diva Guimarães (77 anos), deu um excelente e emocionante depoimento sobre o racismo e a importância da valorização da educação e da cultura na sua vida  e em nosso país.

Segundo o site O Globo, tal depoimento foi visto 5 milhões de vezes na Internet, emocionando a todos, inclusive o próprio Lázaro Ramos que chorou durante a fala de Diva. De acordo com a organização da FLIP 2017, 30% dos escritores convidados eram negros, 20 mil pessoas estiveram em Paraty e os temas racismo, preconceito e questões de gênero foram pautas do evento.

Triste saber que enquanto ocorre a valorização da presença e da cultura negra no país, as comunidades quilombolas estão correndo perigo. O decreto 4887/2003, que regulamenta a titulação das terras dos quilombos, está sendo questionado pelo Partido Democratas (DEM), que entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2004.

O julgamento será retomado no próximo dia 16 de agosto de 2017. Corre-se o risco de todos os títulos de quilombos no país possam ser anulados e novas titulações não serão possíveis, porém mais de 6 mil comunidades ainda aguardam o reconhecimento de seu direito. Por isso, está em pauta a petição “O Brasil é quilombola! Nenhum quilombo a menos!”, que pede ao STF a não aceitação da demanda do DEM.

 Finalizo com uma mensagem de Martin Luther King (1929-1968): “Eu tenho um sonho, que os negros e os brancos andassem em irmandade e sentassem-se na mesma mesa em paz” (1963).

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