Fiquei tentada em realizar uma publicação com relatos de não leitoras(es) sobre porque não leem e/ou porque não gostam de ler. Não quero adivinhar suas respostas. Nem as(os) induzir à culpa, porque, afinal, deveriam gostar de ler. Nunca encontrei uma publicação assim. Até porque ou aceitamos a sentença dos dados de que não gostam de ler ou porque estamos envolvidas(os) até o pescoço em propagar dados e reflexões e fatos sobre a importância/inexorabilidade de …. ler! E gostar de ler.
Certamente tende a ser uma mesmice, já que o que não faltam são pesquisas com dados implacáveis com respostas espontâneas/implacáveis: “não gosto de ler”. E ano após ano páginas impressas e digitais e mídias televisivas idem espalham por aí o já sabido. Especialistas ou diletantes escrevem artigos, pipocam depoimentos sobre “minha vida de leitor(a)”, renovam-se as piadas sempre que surge o reflexo dos dados nas redações do vestibular, seminários são realizados, obras para “neo leitores” são preconizadas ou publicadas (conheci há alguns anos uma ou outra proposta e todas tinham em comum a ideia simplista de adaptar obras, tendo como eixos do projeto editorial páginas arejadas, generosas entrelinhas, fontes de letras bem grandes como se o problema fosse de baixa visão de quem não lê): a economia gerada pelo baixo letramento ganha novo fôlego e se justifica.
Os dados que anunciam que há muita gente mesmo(!) que não gosta de ler gera gente indignada de um lado (gente indignada do tipo “constatação”, que acredita estar fazendo tudo e de tudo só que “o inferno são os outros” até gente indignada que mobiliza conhecimento e energia para que tudo não fique como está e, como sempre, entre um extremo e outro dessa régua há de tudo um pouco) e gente conformada de outro (gente conformada do tipo satisfeita em saber que o que pensava sobre “os que não gostam de ler” estava certo e “é o que temos pra hoje” e gente conformada que aproveita o fato para deixar tudo como está para ver como é que fica e, como sempre, entre um extremo e outro dessa régua há de tudo um pouco). E vida que segue.
Uma publicação com relatos de não leitoras(es) que escrevessem de próprio punho porque não leem e/ou por que não gostam de ler pode ser um desserviço à causa de defender o direito inalienável à cultura escrita? Ou talvez quem sabe uma escuta mais afiada e afinada poderia trazer dados silenciados por trás do simples “não gosto de ler”. Aliás, gosto é um “trem” que depende de oferta e apuro, como praticamente tudo. Nem tudo o que fazemos é por gosto. Fazemos mesmo assim não por gosto, mas por responsabilidade ou necessidade ou pressão ou …. Por que o verbo gostar precisa ser verbo para a ação? Pense na enquete: “você gosta de tomar vacina?”. O que se faz, e o Brasil tem sido exemplo no mundo, é promover pesquisa séria e campanhas idem de vacinação. Quando recentemente claudicamos neste território não seria absurdo dizer que em boa medida é porque naufragamos exatamente no oceano de baixo letramento, que fortalece a proliferação de crenças obscurantistas de falsas(os) profetas e mitos que igualmente sofrem do mesmo mal. Sem redes neurais bem constituídas e comportamento ajustado para pesquisar incansavelmente por escritos de fontes seguras aceita-se recortes cuidadosamente feitos para falsear os fatos, propagando pelas redes digitais o contrário do que é, meio mundo cai e a Nação cai junto. O vírus digital ganha escalada monumental. E, literalmente, mata. Ciência e cultura tornam-se vilãs e distopias assumem o protagonismo no comezinho dos dias.
Não é exagero afirmar que ler de forma competente, crítica e sensível é antídoto poderoso tanto contra o que não vemos, como os vírus, o que significa que letramento pleno é também uma questão de saúde pública, tanto quanto o que vemos, como a violência, a injustiça, a degradação ambiental, e é uma questão humanitária e civilizatória. Pode ser também antídoto para a tragédia de superexposição e audiência para a implosão de submersíveis enquanto o naufrágio de barcos com centenas de imigrantes é um detalhe invisível na luta constante pela sobrevivência em um planeta dragado por mesquinharias.
E outra: não gostam de ler o que? Livros, que livros? twitter, artigos, diários, WhatsApp, receitas etc? Gostar de ler um livro único é gostar de ler? Se é, é por quê? O que esperar de uma multidão de leitoras(es) que leem um livro só?
Quem gosta de ler faz o que com o que lê? O que fazem com o que leem as(os) 12% de leitoras(es) proficientes que habitam o Brasil (percentual estagnado há uma década)[1]?
O que precisamos ler, por direito e por responsabilidade, para entender e romper com as iniquidades? Aliás, outro dado que me intriga é que nenhuma ou raríssimas pessoas se abismam com o fato de que pesquisa após pesquisa aparecem sempre os mesmos livros nos top 10 e, mesmo assim, diante da precariedade da bibliodiversidade, que resulta em precariedade na capacidade de pensar de forma crítica, sensível e autônoma, pouco ou nada vejo de espanto estampado em artigos, seminários, reportagens, debates.
Precisamos nadar de braçada na cultura escrita para dar conta do mundo objetivo e subjetivo, para atender às demandas objetivas e da subjetividade, para sermos incansáveis na missão que é também arte de nos apropriar de quem somos e do que somos capazes e, antes de sentenciar, antes de fazer da vida um assunto de polícia, aproximar a escuta para entender melhor os males e as violências que nos cercam, como a violência manifesta nas escolas.
Precisamos nadar de braçada na cultura escrita para manter acesa nossa disposição para pesquisar e desconstruir teorias equivocadas sobre a aventura humana na Terra, que desautorizam e invisibilizam a genialidade cultural dos povos originários deste continente[2].
Precisamos nadar de braçada na cultura escrita para penetrar nas fendas da subjugação do feminino e expurgar de vez as desigualdades de gêneros.
Precisamos nadar de braçada na cultura escrita para arrancar as raízes do racismo estrutural.
Precisamos nadar de braçada na cultura escrita para parar de fagocitar o planeta fechando as bocas vorazes do antropoceno
Gostar de ler não é uma questão. Menos ainda “A” questão. Fico me perguntando se após perguntar se a pessoa gosta ou não de ler e a pessoa diz “Não!” se tem havido espaço para perguntar se ela tem interesse em ler ou se ela automaticamente torna-se estatística ruim, retroalimentando a roda descrita nos parágrafos iniciais deste texto.
O que uma Nação deveria fazer com o dado que atesta que quem não lê considera que a leitura traz conhecimento?
Na pesquisa Retratos da Leitura 4, 43% de quem se declara não leitor(a) respondeu que a leitura traz conhecimento. Na Retratos da Leitura 5 esse percentual salta para 47%. Daí penso: qual tratamento estamos oferecendo a estes dados cumulativos? O que se faz com estes dados enquanto Nação? O que uma Nação deveria fazer com o dado que atesta que quem não lê considera que a leitura traz conhecimento?
Voltemos a pensar nas vacinas. Caso houvesse uma enquete nacional revelando que a maioria das pessoas não gosta de vacinas, a Nação deveria fazer o que? Reduzir investimentos em pesquisa? Fechar laboratórios de pesquisa e as universidades? Deixar de adquirir vacinas? Interromper as Campanhas de Vacinação? Fechar postos de vacinação? Pior que estas indagações não são ficção científica e vivemos muito perto, muito muito perto mesmo de desmoronar o que promove a vida justamente e inclusive porque negamos sistematicamente o direito universal de inclusão na cultura da escrita pela porta da frente. Seguimos emudecendo crianças e jovens:
“a proporção de crianças de sete a nove anos de idade que não sabem ler nem escrever dobrou em quatro anos no Brasil, revelam os dados do relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)”.
Quando se quer acelerar o processo de cocção de um alimento que tem seu próprio tempo de preparo o que normalmente se faz é aumentar a temperatura. Esta estratégia normalmente resulta em alimento queimado por fora e cru por dentro. As perguntas que fazemos e o que fazemos com elas, bem como as conclusões apressadas, estão fortemente vinculadas à propagação de vírus igualmente letais aos microrganismos que não vemos a olho nu: o obscurantismo e as iniquidades.
Enquanto isso, por essas bandas, somam 62.490[3] as escolas públicas sem biblioteca ou sala de leitura, destas 38.130 são escolas rurais!!!!! Falando em porcentagens: 46% das escolas públicas brasileiras não têm biblioteca ou sala de leitura e neste universo percentual 61% das escolas sem bibliotecas ou salas de leitura são escolas rurais. Milhares de estudantes e toda a comunidade escolar de seu entorno sem acesso aos livros, leituras e práticas leitoras significativas, encontros entre leitoras e leitores permanecem sem a menor chance de gostar ou não gostar de ler. Ou seja, estamos fazendo, deliberadamente, poupança de estatística ruim e roubando a vida de milhares de crianças e jovens diariamente.
E vamos combinar: mesmo com bibliotecas, o apagão do pleno letramento também atinge em cheio as escolas privadas. Esse apagão, embora comprometa infinitamente mais as classes pobres, mantém crianças e jovens das classes médias de todos os níveis alheadas(os) das múltiplas possibilidades de ler o mundo ao invés de apossar-se dele com os privilégios à mão.
Se me perguntar se eu gosto de ler eu diria: eu preciso ler. Afinal, vivemos num tempo que nos vendem imagens. Um tempo no qual a obsessão é ter. Um tempo no qual somos tão mercadoria quanto os itens à venda nas prateleiras. Um tempo que nos convoca a consumir. E a ele nos adaptar. Não indagar. Passou da hora de olhar de frente e fundo e acima das ideias românticas e superficiais sobre o direito à cultura escrita e à leitura. Isto está nos custando vidas.
“Meu gosto de ler e escrever se dirige a uma certa utopia que envolve uma certa causa, um certo tipo de gente nossa. É um gosto que tem a ver com a criação de uma sociedade menos perversa, menos discriminatória, menos racista, menos machista que esta. Uma sociedade mais aberta, que sirva aos interesses das sempre desprotegidas e minimizadas classes populares e não aos interesses dos ricos, dos afortunados, dos chamados ´bem-nascidos´”, Paulo Freire, A educação na cidade
[1] Fonte: Indicador de Alfabetismo Funcional
[2] Spoiler: rochas moldáveis produzidas artificialmente com recursos do ambiente, a base de geopolímeros, ou como anunciam lendas locais, “rochas feitas com extratos de plantas capazes de amaciar a rocha”.
[3] Fonte: https://qedu.org.br/brasil/censo-escolar
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