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Etnografia de uma cidade que tem nome de Fortaleza

Tenho muito pouco tempo para escrever este texto porque meu tempo neste momento se resume em limpar casa, sair para comprar móveis que só vão chegar daqui a um mês, cuidar de coisas que nunca tinham me preocupado antes, como furar paredes, prender cortinas, lavar louça, roupa, pensar na comida, fazê-la… Depois, só depois, vêm as leituras, a preparação para as aulas no novo trabalho. Estou mais pra dona de casa do que pra professor adjunto de literatura. E é isso. Mudei-me do Rio a Fortaleza para assumir vaga na Universidade Federal do Ceará. Mas, primeiro tenho que tomar posse dessa cidade (estou usando o “dessa” e não “desta” para mostrar que ainda um certo distanciamento). Não é fácil. Quem disse que seria? Percebo que preciso abocanhá-la aos poucos e com cuidado para que ela não me engula. Mas do que morar em Fortaleza é preciso ser fortaleza.

 Uma bela cidade, um clima agradabilíssimo, mas de um fosso escandaloso. Sem mobilidade alguma. Como não há transporte público eficiente (ônibus com trajetos esquisitos e metrô que há uma década está em obras, embora já tenha sido inaugurado o buraco), as pessoas precisam ter carro. É uma necessidade. É como ter pés. E, então, adeus paz no trânsito. Suspeito que Fortaleza tem mais carro do que gente. E daqui a pouco terá mais um, o meu, que nunca quis dirigir e, prisioneiro e refém do transporte público, preciso me libertar. Mas eu falava sobre o fosso. Todos sabemos que Fortaleza é um dos destinos mais procurados atualmente por brasileiros e estrangeiros. Aqui se encontra de tudo: praias paradisíacas, boa comida, artesanato, gente bonita e… muita prostituição. Mas não desejo falar disso, porque o que enche de temor é o nível alto de vida, quase escandaloso quanto vender o próprio corpo.

A cidade cresceu demais horizontalmente e, na década de 90, começou a crescer verticalmente. O que se vê são construções de arranha-céus por toda a cidade. Construções espetaculosas. Cadê o Nordeste raiz? Não vejo nessas construções. Ah, mas a cidade precisa se abrir para o mundo, se cosmopolitizar. Ah, bom… A orla não tem mais espaço para construção. E é claro que os preços dos imóveis estão disparando vertiginosamente. Não sou xenófobo, acho mesmo que o Brasil tem vocação para mestiçagem (aprendeu na dor); mas creio que esta cidade virou uma fortaleza para estrangeiros que, fugindo da crise europeia, abocanham os melhores nacos do corpo-cidade e se fecham. Eita paisinho que não se cansa de ser colônia de exploração!

Hotéis luxuosíssimos, condomínios de tirar o folego, muros que me lembram os castelos medievais (estou falando, é claro, do bairro onde moro, Aldeota, que é uma aldeia no sentido de lugar isolado). Se Fortaleza nasceu de fortitudine, que significa força, coragem, como está na bandeira desta cidade, é também verdade que nasceu e cresceu a partir de um forte. O problema é quando a cidade se fecha em si mesma, e cada prédio, cada condomínio, cada lugar é fortificado. Medo dos seus pobres inimigos, Fortaleza? Medo da violência que você mesma insiste em construir? Medo de mais o quê? De ver a face mais autêntica de um povo pobre e à margem? A cidade é tão mesquinha com seu povo que os arquitetos, ao invés de pensar em plantar árvores que dão sombra (o sol é de lascar), plantam palmeiras imperiais e pinheiros, apenas para decoração. E o sol é pra todos. Filtro solar, minha gente; ou câncer de pele. Olhar os pontos de ônibus sem nenhuma proteção onde as pessoas esperam mais de meia hora por uma condução e não se indignar é o que se pode chamar pecado. Mas parece que não existe pecado cá embaixo da linha do Equador, não é?

É como se funcionasse assim: eu me fecho na minha redoma de ouro e não quero saber do mundo lá fora, a não ser do mar, ah o mar… “verdes mares, serenai, verdes mares…” assim cantou o autor de Iracema. Iracema, anagrama de América, fugiu da aldeia, desobedeceu a seu velho pai, profanou sua cultura quando se uniu em corpo e alma ao jovem estrangeiro e teve Moacir. Mas ela morreu. Morreu de amor. Morreu por amar quem não foi digno do seu amor. Seu filho, Moacir, quer dizer “filho da dor”. Muitos são os filhos da dor desta cidade alencarina. Os Moacir estão por aqui, aos montes, impossibilitados de usufruir dignamente de sua terra. Suspeito que esse riso debochado dos alencarinos é uma forma de espantar a realidade nua crua; suspeito que é com riso que se denuncia esse fosso, abismo e desfaçatez. Suspeito que o riso debochado dessa gente é remédio para o que não está remediado: de carnavalização se faz uma gente. Suspeito que o riso espanta o cansaço do trabalho e prepara o corpo pra outros enfrentamentos. Suspeito que… ah, não quero suspeitar mais nada. Só sei que é tão bom olhar o mar e virar a bunda pra cidade. Só sei que é tão bom olhar as jangadas e barcos e virar as costas pra certas aberrações. País rico é país sem miséria. Ah, bom!

Esta crônica nasceu de um susto. Noite dessas, eu tomava café com umas bolachas quando vi gravado nelas o nome FORTALEZA. Eu comia, sem querer, a cidade. Sim, porque comer o nome é deglutir metaforicamente o lugar. É preciso comer a cidade. É preciso tomar posse dela. É preciso dizer que ela só existe porque nós, os cidadãos, existimos. É preciso dizer quem manda, enfim.

Mas eu sou fortaleza. E o que tem me salvado até agora é o vento gostoso, as noites agradáveis, os livros… Esta é uma cidade de leitores. Para provar isso, basta ver as inúmeras livrarias e sebos espalhados pela cidade. Das bibliotecas públicas ainda não sei. Então, devoro Fortaleza, devoro livros e me preparo para a sesta de “bucho cheio”.

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