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Elredo, o santo que amava os homens e os livros

Inglaterra, inverno de 1134. Um nobre de 24 anos bate à porta do Mosteiro de Rievaulx. Sob o uivo da brisa gelada, esperou, pacientemente, até que o sino ecoasse por entre os arcos do claustro, convocando o irmão porteiro. Os ferrolhos barulhentos se moveram. Seu corpo fremia. De súbito, a pergunta do salmista lhe toma, inteiramente: “Senhor, quem habitará no teu santuário?” (Salmo 15,1). Tendo os lábios beijados castamente, estende os pés por sobre a bacia de barro. Relembra, sob o toque do bico da jarra, as experiências da juventude: “Uma nuvem de cobiça emerge da concupiscência lamacenta da carne e do derramamento da puberdade”.[1] A medida que a água clara deslizava, suavemente, por entre seus dedos, a alma se anelava: “Aquele que tem as mãos limpas e o coração puro.” (Salmo 24,4). As feições delicadas do rosto voltam a dar o ar da graça e o coração se dilata de doçura. Seria monge por toda a vida.

Elredo, cujo nome procede do alemão “adal” (nobre) e “rad” (conselho), nasceu no início de 1110, em Hexham, norte da Inglaterra, muito próximo da fronteira com a Escócia. Contudo, foi em Durham, distante há cerca de 60 quilômetros, que sua família fincou raízes. Banhada pelo Rio Wear, Durham era um importante centro de peregrinação. Em sua catedral, repousava o corpo incorrupto de São Cuteberto, popular entre ricos e pobres por operar milagres, sendo chamado de “trabalhador maravilha da Inglaterra”.[2] Era da competência do padre Alfred, bisavô de Elredo, a importante tarefa de manter no caixão de carvalho o corpo do santo bispo, trocando seus paramentos e aparando os cabelos e as unhas. O ofício lhe garantia fama e uma boa renda. À época, a admissão às ordens sacras era franqueada aos homens casados, sendo costume que um dos filhos recebesse como herança paterna o título clerical. Assim, Eilaf, avô de Elredo, se torna padre, assumindo o presbiterato num período marcado pela turbulência política.

Com a invasão dos normandos, em 1066, William, o Conquistador, é coroado rei da Inglaterra, o que resultou em profundas transformações na região, desde a proibição do bigode, considerado excessivamente inglês, à redistribuição das terras cultiváveis. Movimentos insurgentes pipocaram após a criação de novos tributos, obrigando o rei a deixar York rumo ao norte, preparando sua investida contra os rebeldes. O bispo de Durham, amedrontado com a presença do rei em sua região, foge, levando consigo as relíquias de São Cuteberto, juntamente com o seu clero, incluindo o avô de Elredo. Após um tempo de penúria, retorna para Durham, acreditando na estabilidade do quadro político. Contudo, o rei William, ainda colérico, o mata, designando Walquer para o seu posto.

O novo bispo, normando de sólida formação em literatura sacra e profana, iniciou o seu ministério motivado a reformar o clero inglês, composto, majoritariamente, por homens casados. Para isso, instala mosteiros ao redor da catedral, esperando que essas comunidades influenciassem moralmente o clero diocesano. Assassinado, Walker não viu o seu projeto florescer. Foi seu sucessor, William de São Carilefo, que conseguiu, com a ajuda dos monges, fundar uma comunidade de clérigos célibes, dando origem ao priorado de Durham. Entretanto, o avô de Elredo, recusando-se largar sua esposa, abandona o confortável posto de tesoureiro da catedral de Durham, assumindo uma pobre paróquia em Hexham, onde permaneceu até a morte, deixando como herança para Eilaf, pai de Elredo, o título de padre.

Quando Elredo nasce, o quadro político era mais estável, o que o permitiu crescer num ambiente de paz, ajudando o seu pai nas atividades da paróquia. É sabido que recebeu uma formação intelectual antes de ingressar no mosteiro, algo raro para as duas milhões de almas que habitavam a Inglaterra, a maior parte analfabetas. São palavras do próprio Elredo: “Quando eu era apenas um garoto na escola.” É possível que tenha se mudado para Durham, a segunda cidade mais importante do Norte da Inglaterra, onde sua família tinha amigos. Ali estudou música e aritmética, e aprendeu latim, inglês e a língua do conquistador, o francês. Foi nesta mesma época que teve acesso, no apogeu da literatura medieval, aos escritos de Ovídio e de Horácio. Cícero, em especial, o “príncipe da eloquência”, o afetaria para sempre.

De sua mãe nada se sabe. Os irmãos se chamavam Samuel e Ethelwold, e sua única irmã, de nome desconhecido, abraçou a vida eremítica, o que não impediu que cultivassem, por meio de cartas, uma profunda amizade. Pelas circunstâncias familiares, a criança estava predestinada para a vida religiosa. Consta que o subdiácono William, ao visitar o bebê Elredo, presenciou o rosto da criança brilhar tão intensamente que ao estender a mão sobre ele, sua palma irradiava luz.[3] É provável que, por sua piedade, teria sido o escolhido entre os irmãos para substituir seu pai como clérigo. Contudo, o papa Urbano II, no III Concílio de Melfi, determinou que filhos de padre somente poderiam receber as ordens sacras como monges ou cônegos. Além disso, o mesmo Concílio impôs o celibato aos clérigos, impondo às mulheres dos sacerdotes a pena da escravidão. De todo modo, a Providência Divina tinha planos para Elredo que em nada se confundia com os pactos e costumes da época.

Livre do legado paterno, o jovem Elredo vai cultivando a simpatia por onde passa. De fato, em seus 57 anos de existência, Elredo estabeleceu uma ampla rede de relacionamentos. Ainda menino, conheceu Thurstan, o poderoso arcebispo de York, vínculo que perdurou por toda a vida.  A figura de Godric, piedoso eremita que morava nas entranhas da floresta de Finchal protegendo os animais e compondo canções, o encantava. Afeiçoou-se, de modo particular, pelos cônegos agostinianos, apesar das queixas de seu pai, que não os tinha com igual apreço em virtude de os mesmos terem substituído sua família na rentosa tarefa de custodiar as relíquias. A estabilidade política de seu tempo, livre de guerras, permitiu ao adolescente Elredo ponderar e esboçar o seu futuro, sem sofrer em relação ao domínio normando já consolidado. Entretanto, não se pode dissociar o seu percurso de vida da sua rede de amizades.

Com apenas quatorze anos, abandona, para sempre, o lar paterno, passando a viver na corte de Davi I, filho da piedosa rainha Margarida, mais tarde elevada à honra dos altares. Embora não se saiba o que levou Elredo a se mudar para a Escócia, o mais provável é que tenha sido por influência do arcebispo de York, seu amigo, ou, ainda, por decisão direta do próprio monarca. O rei tinha dois filhos: Waldef, que mais tarde, tomaria o hábito religioso, e Henry de Huntingdon, a quem Elredo estava intimamente ligado a uma amizade antiga, como ele próprio afirmou: “Eu convivi com ele desde o berço. Eu cresci com ele, estivemos juntos desde meninos, e mesmo quando éramos adolescentes, eu convivi com ele.”[4] Acredita-se que Elredo, quatro anos mais velho que o filho de Davi I, tenha sido o seu tutor durante os estudos em Durham. Isso justificaria o convite feito, logo após a coroação de Davi, para que ficasse junto ao rei. Na corte, atraia a atenção por sua beleza e simpatia: “Ele era como o rei Davi, ligeiramente ruivo, com um rosto bonito e sedutor; desse modo, quem dirigiu os olhos para ele caiu sob o seu encanto.”[5]

Na companhia de Henry, “mais doce do que toda a doçura de sua vida”, Elredo mergulhou nas obras do pagão Cícero, reverenciado pelos Padres da Igreja como sinônimo de eloquência. O depravado Agostinho, mais tarde bispo, chega a creditar sua conversão final ao cristianismo à leitura da obra perdida “Hortêncio”.[6] É muito provável que o interesse de Elredo pelo orador romano estivesse associado ao florescimento dos seus diálogos filosóficos, movimento protagonizado por intelectuais da École de Chartres. Na Inglaterra, seu grande expoente foi João de Salisbury, que conheceu Elredo no ambiente palaciano, trocando, inclusive, impressões sobre o De Amicitia, o famoso tratado de Cícero sobre a amizade.

Além dos estudos, o devotamento aos interesses do rei fez com que Elredo fosse elevado, muito rapidamente, ao posto de Master of the Household, espécie de mordomo-geral do palácio. O projeto de David I era fazê-lo bispo. Entretanto, em 1134, durante viagem até York por ordem do monarca, conheceu a Abadia de Rievaulx, fundada três anos antes por Gualterio Spec, com a aprovação de Bernardo de Claraval. Impressionadíssimo pela piedade dos cistercienses, vivendo ainda em instalações precárias, ingressa, neste mesmo ano, como noviço. Mais tarde, derrama em palavras seu amor pelo príncipe e pelo rei: “Para servir a Cristo, eu o deixei quando ele abandonava as flores da juventude, como eu fiz com seu pai, a quem eu amava além de todos os mortais, naquele tempo sublime da flor da velhice. Eu os deixei fisicamente, mas nunca em minha mente ou em meu coração.” Jamais esqueceu Henry, a quem esteve intimamente ligado a uma amizade “mais doce do que toda a doçura de sua vida”.

De todo modo, estava decidido a tornar-se monge, “um só com Cristo”. São Bernardo, em sua “Apologia”[7], ressaltava que a busca de Deus implicava romper com modelos econômicos e sociais, abraçando uma vida visivelmente simples. E assim, o jovem Elredo se entregou, radicalmente, a toda a disciplina monástica: vigílias, jejuns, trabalhos manuais. Teria em mente, quem sabe, a negação do estilo relaxado do pai, avó e bisavô, todos padres, muito atarefados em defender os interesses econômicos próprios e da família. A pobreza do mosteiro, a salmodia na madrugada e, particularmente, a vida comunitária intensa, o atraíam. De fato, tudo lhe parecia genuinamente cristão, o que lhe enchia de gratidão por se encontrar ali, não se valendo jamais de sua formação intelectual ou de sua influência junto ao rei para mitigar seus deveres ou obter qualquer espécie de favores.

Contudo, as habilidades humanas e virtudes de Elredo não demoraram ser notadas por seus coirmãos cistercienses. Nomeado mestre dos noviços, exerceu a função com ternura e paciência. Em 1143, após o conde de Lincoln erigir uma abadia em suas propriedades, Elredo será escolhido, junto com outros doze monges, para assumir a nova fundação. Sua breve estadia em Revesby lhe permitiu conhecer São Gilberto de Sempringham, fundador da única ordem religiosa inglesa, notabilizada por reunir monges e monjas no mesmo mosteiro. Três anos depois, é eleito abade de Rievaulx, retornando para a sua comunidade de origem. A comunidade, formada por 150 monges de coro e 500 irmãos leigos, cresceu vertiginosamente sob o seu báculo, em virtude de sua reputação como um líder sábio e gentil.[8] Se a mansidão era marca de Elredo, isso não o impediu de ser um brilhante administrador. Angariou bens para o mosteiro, valendo-se da psique medieval, na qual a prática de dar presentes para os mosteiros era concebida como mecanismo valoroso para a garantia da salvação. De fato, os bens ofertados pelas mãos dos nobres lhes garantiam preces e outros benefícios espirituais. As cartas preservadas comprovam a habilidade de Elredo em ampliar as propriedades de sua comunidade monástica junto aos poderosos barões e mesmo, entre pessoas de menos posse.

O posto abacial o tornou primus inter pares (o primeiro entre os seus iguais), levando-o a chefiar todos os abades cistercienses na Inglaterra. Isso exigiu de sua parte diplomacia e enorme esforço físico para visitar os mosteiros de sua Ordem e sanar problemas de toda sorte. Além disso, Elredo influenciou poderosamente a política. É quase certo que ifoi ele que convenceu o rei Henrique II a se dirigir ao papa Alexandre III, em 1162, em Touci, com a pretensão de que fizesse as pazes com Luís VII da França. Também empreendeu uma missão de sucesso junto aos pictos, antigos habitantes da Escócia, o que levou o próprio chefe a pedir o hábito monástico após ouvir as exortações de Elredo.

Um caminho hermenêutico para compreender a fertilidade da vida de Elredo é o conjunto dos seus escritos. Neles identificamos as diversas facetas que compõem sua personalidade. A política é, certamente uma delas, sempre estreitamente associada ao discurso religioso. Em 1153, viaja para a Escócia, onde se encontra, pela última vez, com Davi I, seu rei amado. O monarca morreria logo depois, levando o abade de Rievaulx a escrever uma bela lamentação em que Davi é descrito como um piedoso monarca, fundador e mantenedor de igrejas e mosteiros, dedicado, em seus últimos anos de vida, à oração e à penitência. Publica Genealogiae regum Anglorum, em que, se dirigindo ao rei Henrique, apresenta seus ancestrais reais anglo-saxões, exortando-o a imitá-los na prática das virtudes cristãs como meio de alcançar um reinado de paz e prosperidade. Sete anos depois, na obra Vita sancti Edwardi, regis et confessoris,[9] volta a escrever para o rei Henrique; enaltecendo a santidade do recém canonizado rei Eduardo, comprovada pelo casamento casto e por seu poder miraculoso, e declarando ser Henrique o herdeiro escolhido de do santo rei, profecia anunciada em seu leito de morte, Elredo consolida a linhagem real anglo-saxã.

Elredo também deixou uma considerável coleção de sermões e escritos poéticos, cuja notável eloquência lhe valeu o título de “São Bernardo inglês”. Suas obras se caracterizam pela fusão da tradição literária antiga, particularmente Cícero, e de uma espiritualidade profundamente marcada pela sensibilidade pessoal, em que a amizade humana conduz, naturalmente, a Deus. Sua influência no monasticismo do século XII foi enorme. O texto destinado à sua irmã, intitulado “A vida reclusa”,[10] inspirou um movimento espiritual de mulheres leigas, recolhidas em pequenas celas, e que se estendeu por toda a Europa, em particular na França, Grã-Bretanha, a Bélgica e os Países Baixos.

Entretanto, foi na vida entre os irmãos, seus iguais, protegidos pelos muros do mosteiro, que a singularidade de seu pensamento ganha corpo. De fato, é nas dependências do claustro que sua humanidade e santidade se manifestaram de forma fulgurante. De 1147 a 1167, Elredo governou a comunidade de Rievaulx, o que fez com firmeza e gentileza. Em duas décadas, jamais dispensou qualquer candidato que batesse à porta do mosteiro. Segundo um biógrafo de seu tempo, “ele não os tratou com a imbecilidade pedante habitual em alguns abades tolos que, diante de um monge que toca a mão de um irmão sozinho ou diz algo de que não gosta, exige seu capuz, arranca e o expulsa do mosteiro.”

A pedido de São Bernardo de Claraval, escreveu, no período em que era mestre dos noviços, o Speculum caritatis,[11] uma espécie de guia de formação para os candidatos à vida monástica. A obra está dividida em três capítulos: o primeiro trata da natureza da caridade, o segundo, da cupidez, seu antônimo; o último apresenta como ambas se manifestam. É nesse tratado que Elredo abre seu coração, confidenciando sua relação com o jovem monge Simon. Ambos nutriram uma amizade íntima e profunda, interrompida pela morte prematura de Simon. Ferido pela perda, Elredo se entrega ao lamento literário, incluindo-o na conclusão do primeiro livro do Speculum:

Eu choro ao meu querido amigo, com quem tive um só coração, e eu estou feliz que ele tenha sido transladado para os tabernáculos eternos. O afeto procura a sua doce presença, com a qual ele deliciosamente apascentava, mas a razão não se conforma com que aquela alma, tão querida por mim, já libertada da carne, devo retornar às misérias desta vida. […] Por que você me deixou, modelo da minha vida, regra dos meus hábitos? Por que saiu, por que foi embora? O que farei agora? Para onde irei? Quem eu tentarei imitar agora? Por que se arrancou dos meus braços, afastando-se dos meus olhos e se arredando dos meus olhos?[12]

Eu choro ao meu querido amigo, com quem tive um só coração, e eu estou feliz que ele tenha sido transladado para os tabernáculos eternos. O afeto procura a sua doce presença, com a qual ele deliciosamente apascentava, mas a razão não se conforma com que aquela alma, tão querida por mim, já libertada da carne, devo retornar às misérias desta vida. […] Por que você me deixou, modelo da minha vida, regra dos meus hábitos? Por que saiu, por que foi embora? O que farei agora? Para onde irei? Quem eu tentarei imitar agora? Por que se arrancou dos meus braços, afastando-se dos meus olhos e se arredando dos meus olhos?[12]

Enquanto Agostinho encara o afeto como o indicador por excelência da natureza humana decaída (affectus animi), passível de se deixar enredar pelas paixões mais baixas, Elredo o concebe como poderoso instrumento de salvação, destinado a ativar as vontades (affectus voluntatis). Para ele, a integração espiritual envolvia, necessariamente, o afeto e a vontade racional. Trata-se de uma perspectiva ligada a conhecida “meditação afetiva”. Iniciada na Idade Média, era uma prática espiritual que gravitava em torno da visualização mental das cenas da vida de Cristo. Sons vocais e movimentos corpóreos refletiriam a compaixão em torno dos sofrimentos infligidos a Jesus e à Virgem Maria.[13] Esperava-se, de fato, que por meio da concentração em desenhos ou pinturas cristãs, bem como em músicas ou em textos literários retratando a experiência de Jesus e da Virgem Maria, a empatia do meditador resultasse em emoções variadas, desde lágrimas a movimentos corporais. O abade de Rievaulx revela sua maestria na tradição da piedade afetiva ao instruir os seus monges nos seguintes termos:

Siga-a [a Virgem Maria] enquanto ela vai a Belém, e se afastando da estalagem com ela, ajude-a e a acalente durante o parto; e quando a criancinha for depositada na manjedoura, exploda palavras de exultação, clamando com Isaías: “Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado […].” Abrace aquela doce manjedoura, deixe o amor vencer a timidez, e que a emoção expulse o medo para que você mantenha seus lábios nos pés mais sagrados e reitere os beijos.

Para Elredo, a amizade espiritual pressupõe um estado de união permanente e indivisível, firmado tanto no nível espiritual, quanto corporal: “Ele é seu e você é dele em corpo e espírito.” Em razão disso, alguns acreditam que Elredo tinha em mente alguma modalidade de casamento entre amigos, ainda que sem a prática sexual.[14] Contudo, é sabido que esses elementos estão presentes nos romances de cavalaria, famosos à sua época. Portanto, é possível afirmar que esse gênero literário, marcado pelo afeto mútuo entre os cavaleiros ou entre um cavaleiro e seu senhor, influenciou Elredo na produção de seu “Tratado”. Isso justifica a importância atribuída aos monges cistercienses à faculdade humana de amar, não, apenas, no sentido até então atribuído, enquanto amor universal (caritas), mas enquanto modalidade afetiva dirigida a alguém em particular. A distinção entre amor universal e amor particular é feita por Elredo com os seguintes termos: “Pode haver amor sem amizade, mas a amizade sem amor é impossível.” Portanto, a caridade cristã não poderia ser confundida com a amizade. O que esta envolveria? Uma relação espiritual, livre de qualquer interesse, exceto a fruição da própria amizade. Essa postura desprovida de outro fim senão o próprio objeto era compartilhada por Bernardo de Claraval, seu contemporâneo e irmão de hábito: “Eu amo porque amo. Amo para amar.” Para Elredo, a amizade genuína é caracterizada por quatro elementos:

Amor e afeição, segurança e felicidade. O amor implica a prestação de serviços com benevolência, afeto, um prazer interior que se manifesta exteriormente; segurança, uma revelação de todos os conselhos e confidências sem medo e suspeita; felicidade, uma partilha agradável e amigável de todos os eventos que ocorrem, sejam alegres ou tristes, de todos os pensamentos.

Elredo de Rievaulx criou uma doutrina sobre o affectus pautada na ideia de caridade concebida como prática intimista. Para Elredo, o amor pressupõe um rosto, não se confundindo, portanto, com um sentimento genérico dirigido ao próximo. Essa relação só se daria entre indivíduos que compartilhassem o mesmo estilo de vida. Trata-se, portanto, de um amor entre iguais. É nesse sentido que esse tipo particular de amor se manifestaria, em todo o seu esplendor, no mosteiro. Os monges, ao experimentarem a doçura do claustro, se veem naturalmente inclinados para firmarem relações íntimas. Elredo aplicou, com ousadia, suas ideias. Além de estabelecer uma relação de profunda docilidade para com os seus monges, comparando-a com o amor entre Jesus e o efebo João, o discípulo amado, o abade de Rievaulx permitiu que os monges expressassem seu carinho. Assim, no Mosteiro de Elredo, os monges não eram apenas aconselhados a cultivarem uma relação de amizade entre os dois, mas a manifestar publicamente essa intimidade. Desse modo, Elredo encoraja os seus monges a entrelaçarem as mãos no claustro e em outro espaços comuns da abadia, visibilizando para toda a comunidade monástica o seu pacto de amor. Para o abade de Rievaulx, a amizade entre os homens é o último degrau que conduz a união do amor com Deus.[15]

Embora constantemente sofrendo de pedras nos rins, Aelred visitou muitas outras abadias, estendendo sua influência ao longo do monaquismo ocidental. Nos últimos quatro anos de sua vida, a doença o confinou a uma cela anexa à abadia, onde pequenos grupos de monges procuravam diariamente seus conselhos. Ao longo de seus últimos anos, sob uma sucessão de enfermidades, Elredo deu um exemplo extraordinário de paciência. Ele era, além disso, tão abstêmio que é descrito como “mais parecido com um fantasma do que com um homem”. Supõe-se que a sua morte tenha ocorrido em 12 de janeiro de 1166, embora haja razões para pensar que o ano verdadeiro pode ser 1167. Convalescendo, o abade gay, considerando assim por pesquisadores contemporâneos – o atrativo homoerótico foi elemento balizador na vida e obra deste santo abade, particularmente o seu tratado “Sobre a amizade espiritual –, recebia em seus aposentos pequenos grupos de monges que, sentados em sua cama, “conversavam com ele”, como “uma criancinha tagarela com a mãe”. E assim morreu, sereno e cercado por amigos, vindo a se unir ao belo e jovem Simon, seu bem-amado, a quem Elredo preferia ser chamado, simplesmente, de amigo.

Bibliografia

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ZEIKOWITZ, R. E. Homoeroticism and chivalry: discourses of male same-sex desire in the 14th century. New York: Palgrave Macmillan, 2003.


[1] RIEVAULX, Elredo de. De institutione inclusarum: two English versions. London: Oxford University Press for the Early English Text Society, 1984. n. 32.

[2] GHEZZI, Bert. Voices of the saints: a year of readings. New York: Image Books, 2002.

[3] DANIEL, Walter. The life of Aelred of Rievaulx. Kalamazoo, Mich.: Cistercian Publications, 1994.

[4] ELREDO, DE RIEVAULX. Genealogia regum anglorum. In: MIGNE, Jacques Paul (Dir.). Patrologiae cursus completus: sive biblioteca universalis,integra uniformis, commoda, oeconomica … Parisiis: J.-P. Migne, 1855. col. 736-737, tradução nossa.

[5] WALTER, Daniel. La vie d’Aelred, abbé de Rievaulx. Oka (Québec): Abbaye Notre-Dame-du-Lac, 2003. p. 74, tradução nossa.

[6] AGOSTINHO, DE HIPONA, Santo. Le confessioni di Santo Aurelio Agostino. Torino: Società editrice internazionale, 1927. III, 4, 7.

[7] BERNARDO, DE CLARAVAL, Santo. Apologie de S. Bernard au vénérable abbé Guillaume. Cologne: Chez Michel Le Grand, 1677.

[8] GHEZZI, Bert. Voices of the saints: a year of readings. New York: Image Books, 2002.

[9] ELREDO, DE RIEVAULX. Aelredi Rievallensis Vita Sancti Aedwardi regis et confessoris: anonymi Vita Sancti Aedwardi versifice. Turnhout : Brepols Publishers, 2017.

[10] ELREDO, DE RIEVAULX. De institutione inclusarum: two English versions. London: Oxford University Press, 1984.

[11] ELREDO, DE RIEVAULX. The mirror of charity: the speculum caritatis of St. Aelred of Rievaulx. London: Mowbray, [1983].

[12] ELREDO, DE RIEVAULX. Le miroir de la charité. Bégrolles-en-Mauges: Abbaye de Bellefontaine, 2001.

[13] MCNAMER, S. Affective meditation and the invention of medieval compassion. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2010.

[14] MCGUIRE, B. P. Brother and lover: Aelred of Rievaulx. New York: Crossroad Press, 1994.

[15] AELRED, DE RIEVAULX, Saint. Amitié spirituelle. Bégrolles-en-Mauges: Abbaye de Bellefontaine, 1994. II, § 20, p. 42.

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