Após ler este parágrafo, feche os olhos e tente imaginar, ou evocar lá dos rincões da memória de célula, a seguinte cena: há cerca de 10 mil anos, numa caverna aqui no Brasil, lá na Serra da Capivara(PI). Um nosso ancestral Homo Sapiens, vivendo na era do Paleolítico Tardio, época em que sobreviver era o verbo comum a todo mundo, decide ocupar seu tempo quase que integralmente para assegurar sua sobrevivência fazendo um desenho. Ela ou ele usa pigmentos naturais, talvez misturado com sangue, talvez apenas sangue, para representar na parede da caverna a cena de um beijo.
Imaginou? Viu? Não é incrível que um ser compelido pelas circunstâncias naturais a existir quase que exclusivamente para sobreviver ocupe seu tempo e gaste sua escassa energia para fazer um registro sobre o que está vivendo, pensando, temendo, sonhando? Ou seja, fazer ARTE?!!!
Aristóteles dizia que “a alma e o corpo dormem juntos no mesmo sono”. Ele está falando do território do onírico que habitamos durante o sonho; do inusitado, do encontro com nosso inconsciente, com o mergulho nas profundezas da alma humana, suas luzes e suas trevas. Tudo o que faz de nós humano, demasiadamente humano, evocando o filósofo Friedrich Nietzsche.
O poeta Bartolomeu de Campos Queirós dizia que “todo o real que nos envolve passou antes pela fantasia de alguém. Fantasiar é movimentar o mundo, é acrescentar, é desenvolver o universo”. Dá para errar pouco então ao afirmar que estar em contato com a arte é estar sonhando acordado, em profunda conexão com o que há de mais humano em nós. E seguindo os passos do nosso poeta, com ele certamente nos irmanamos ao afirmar que “a literatura tem como função impulsionar o leitor a realizar seu imaginário. Por desconhecer preconceitos, guiada pela beleza, o leitor literário se faz também um investidor. A escola deixará de ser apenas um espaço consumidor quando fizer da fantasia uma meta de trabalho”
Então, nestes tempos de isolamento social, pleno de incontáveis riscos, dúvidas e desafios, direciono minha prosa aqui diretamente para você, professora e professor. E quero começar com um assunto de conversa que já convencionamos nomear de “novo normal”, até porque o “normal anterior” no tocante à oferta de literatura não continha nada de positivamente demonstrável quando o assunto é formação leitora, gosto e competência. Bora pensar com carinho?
A proposta é eliminar a função avaliativa da leitura literária que, do Oiapoque ao Chuí, atormenta e promove experiências frustrantes para estudantes com o “propósito único” de “comprovar a conclusão da tarefa de ler”, e joga uma pá de cal sobre qualquer possível interesse pela leitura, o que dirá gosto e competência. Além do que, trata-se de uma estratégia que certamente já nem vale mais em tempos de internet, por onde trafegam resenhas/sínteses das obras convencionalmente preconizadas pelas escolas.
“O papel de um escritor não é dizer aquilo que todos somos capazes de dizer, mas sim aquilo que não somos capazes de dizer”, dizia a escritora Anaïs Nin. Penso que o melhor e talvez único caminho para a concepção desse “novo normal” passa indubitavelmente pela experiência, pelo mergulho profundo de professoras e professores no texto literário. Assim como ele é, texto, palavra escrita, que pode ser acessado solitariamente, no contato direto entre leitora e leitor com obras impressas ou digitais; ou por meio de leitura compartilhada.
E quero, aqui, enfatizar a LEITURA COMPARTILHADA entre professoras e professores, justamente para que experimentem as inúmeras visões possíveis a partir da leitura de um mesmo texto. Para romper as amarras à uma interpretação única que tem sido a visão “normal” recorrente há séculos para justificar o injustificável: as avaliações que sucedem “a leitura” de obras nas escolas.
Como dizia Bartolomeu, “é preciso fazer da literatura um lugar de encontro”.
Então minha proposta é marcar encontro em um Clube de Leitura Virtual, que é aparentemente simples. Digo aparentemente, porque sabemos que há muita gente sem acesso ou acesso restrito à internet. Mas bora tentar. A logística é bem simples: você, professora e professor, convida colegas para fazer parte de um Clube de Leitura Virtual – aqui virtual pode ser entendido no duplo sentido, o da tecnologia (à distância, graças à internet) e no sentido da origem da palavra, que deriva do latim medieval Virtuale ou Virtualis, cujo radical Virtus foi mantido e significa virtude, força ou potência.
Aqui um despretensioso passo a passo:
– Pense nas pessoas que poderiam compor este Clube de Leitura, colegas de escola;
– Sobre quantidade de participantes: o ideal é um grupo pequeno, até 6/8 pessoas, uma vez que o propósito é que possam ler junto e comentar a leitura, parando nos trechos que quiserem parar por razão qualquer, seja porque trata-se de uma passagem que afetou alguém, porque causou estranhamento, porque encontrou afinidade, porque quer partilhar uma dúvida ou um achado etc.;
– É importante que você deixe bem claro que se trata apenas de leitura literária e de conversas sobre essa leitura, não é formação, é licença poética. E não precisa ler antes para preparar nada, pois o propósito é ler junto, em tempo real, mas tudo bem se quiser ler antes também;
– Item inegociável: apenas leitura de literatura, o que significa que não compõe a cesta de leituras nenhum outro gênero textual, como autoajuda, religião, bibliografias e afins. Pode ser a leitura de um livro, para o quê é necessário que todas e todos tenham o mesmo livro, que deve ser da mesma edição porque há diferenças de acordo com a editora, ano de publicação e tradução, quando for obra internacional. Podem ser contos e poemas.
Há muitas obras que podem ser acessados gratuitamente na internet, inclusive. É fundamental praticar diversidade, ou seja, obras clássicas e contemporâneas, de autoria de escritoras e escritores de diversas nacionalidades, literatura escrita por indígenas, literatura escrita por autoras (autores) negras(os). Importante: a boa literatura não tem censura etária, ou seja, existem obras que até uma criança recém alfabetizada pode ler e não literatura para criança, pois a boa literatura é para todo mundo e todas as idades;
– Importante definir dia e hora, buscando uma agenda comum entre as(os) leitoras(es), e tempo de duração – não menor do que 60 minutos, porque tempo de qualidade é fundamental para proporcionar experiências leitoras de qualidade. Importante: manter frequência de encontros, preferencialmente semanal, para que a dinâmica do Clube de Leitura não se perca – claro que tudo é negociável e podem eventualmente reagendar a pedido de alguém. Taí outra coisa bem bacana que pode brotar da experiência do Clube, empatia e abertura para acolher uma necessidade;
– Definir o local do encontro virtual: há diversos recursos disponíveis e vou citar alguns que tenho utilizado e sei que funcionam bem, como Skype, Zoom e Jitsi Meet, que podem ser baixados e acessados em notebook ou celular. Em todos os casos é possível compartilhar a imagem do texto, se estiver em PDF, tem chat para fazer registros por escrito ou compartilhar links que tenham a ver com a leitura em ação, e dá para gravar, ou seja, dá para rever. Em função da oscilação da internet no dia ou hora ou local pode ser que seja necessário desabilitar a câmera durante a leitura, o que não interfere na potência do encontro;
– Importantíssimo: na leitura literária não há o certo ou o errado, há leituras, no plural.
“A metáfora é muito interessante para o escritor. A metáfora é onde o escritor se esconde e põe asas no leitor. Pela metáfora, eu me escondo, mas ao mesmo tempo ponho asas no leitor. Vai aonde você quiser. Você está livre para romper com tudo. Acho que o leitor é tão criador quanto o escritor. O leitor cria muito. É o que o Umberto Eco fala — a estrutura ausente na obra. Você gosta de uma obra não pelo que está escrito, mas pelo lugar que ela o levou a pensar. Isso é muito interessante. Michel Foucault fala que o que lemos não é a frase que está escrita. Lemos o silêncio que existe entre as palavras. É ali que a literatura se faz”, Bartolomeu Campos de Queirós.
Professoras e professores e estudantes são viajantes de uma mesma jornada. Tenho plena convicção de que após submergir em diversas experiências de leitura literária, você, professora ou professor, retornarão com uma compreensão muito mais ampliada sobre as inúmeras potencialidades da leitura e poderão proporcionar para suas e seus estudantes experiências leitoras significativas, sem nunca mais outra vez dar a ela outra função que não seja ampliar a sensibilidade, a empatia, a alteridade, a visão de mundo, aguçar os sentidos, o gosto e a competência para ver e relacionar-se com a diversidade da vida com respeito, reverência e cuidado.
Para habitar um mundo em permanente mutação e tal qual experenciou nas leituras literárias, abrir-se para novas respostas para este velho mundo, para acolher toda a diversidade da vida. Afinal, como disse Barto: “todo o real que nos envolve passou antes pela fantasia de alguém. Fantasiar é movimentar o mundo, é acrescentar, é desenvolver o universo”. E para quem lhe disser que a literatura é um luxo imaterial, sobretudo nestes tempos, faça a pergunta: como a matéria pode ter criado algo tão imaterial quanto a consciência? E para que serve mesmo a consciência?
P.S.: aqui o link para assistir o documentário A PALAVRA CONTA, costurado com a narrativa do poeta Bartolomeu Campos de Queirós, muito, mas muito melhor do que eu para motivar você a iniciar hoje o seu Clube de Leitura Virtual.
Algumas sugestões de sites com acesso gratuito à leitura de literatura:
Criado pelo MEC, o site disponibiliza a obra completa do escritor – em pdf ou html – para leitura online. Estão lá crônicas, romances, contos, poesias, peças de teatro, críticas e traduções: http://machado.mec.gov.br/
Biblioteca virtual criada para divulgar clássicos da literatura mundial, oferece download gratuito de mais de 350 obras: https://bsp.org.br/2012/04/03/livros-para-baixar/
Em vinte narrativas, o autor Luiz Ruffato faz uma reflexão sobre o Brasil, as relações familiares e a memória: clique aqui.
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