Sábado sim e sábado não, um senhor de boina na cabeça, calça de moletom e pulôver quadriculado vinha visitar seus familiares no prédio onde moro. Ele costumava se vestir da mesma maneira, variando apenas as cores. Sentado no banco que fica próximo à garagem do prédio, o vovô ficava observando o movimento da rua nos finais da tarde.
Vez ou outra, antes de sair, eu e o meu “professor Pardal” costumávamos passar certo tempo ali esperando o táxi chegar. Depois de várias repetições, o senhor começou a puxar assunto. Os diálogos eram mais ou menos os mesmos:
– Eu sou de Piedade – ele dizia – Bairro onde Euclides da Cunha perdeu a vida. Vocês conhecem Euclides da Cunha?
– Sim – movimentávamos a cabeça afirmativamente.
– Vocês já leram Os Sertões?
O Professor Pardal apontava para mim e ria. Antes que ele pudesse entregar qualquer coisa, eu o cutucava. Nos últimos tempos, eu tenho preferido ouvir a falar, escrever a falar, pensar a falar. Falar se tornou opressivamente cáustico. E o vovô da boina me fez entender o porquê. Mas, antes de chegar nessa erupção de consciência, descíamos mais cedo para escutar suas histórias sobre a “Piedade do tempo de Euclides”, “sobre o Rio de Janeiro dos anos dourados”, “sobre a certeza de que pouca gente lê Os Sertões da maneira correta e vocês leram o livro todo ou apenas o capítulo ‘A Luta’?”
Sem acrescentar qualquer coisa, eu pedi para o vovô falar. Eu queria ouvi-lo. Além de conhecer a narrativa euclidiana através de sua visão, fiquei sabendo que ele já lera o livro mais de dez vezes.
– Mas isso foram em outros tempos. Agora não tenho mais vontade de ler e nem de fazer nada. Antes, até 2014, eu costumava tomar o meu café da manhã, aquele café bem docinho, com quatro colheres cheias de açúcar, lendo o jornal. Depois eu mexia as pernas e ligava a televisão ou ouvia o rádio. Agora não quero mais saber de nada.
– Por que? – perguntamos.
– Como é que a pessoa vai ter vontade de alguma coisa com um governo repugnante como esse? Só tem notícia ruim. Olhem, meus filhos, já passei por tempos difíceis, Segunda Guerra e Ditadura Militar, mas havia um foco de esperança, uma guimba de luz. Agora está tudo seco, vazio.
Concordei em absoluto. O vovô tinha razão. É quase impossível acordar pela manhã e ter acesso às notícias do dia sem ter uma síncope. Tudo parece errado. Não há um pingo de discernimento ou bom senso. O gestor eleito para o maior cargo nacional usa a fala oficial como se estivesse em um boteco à beira da estrada, cuspindo no chão e jogando sinuca enquanto pôsteres pornográficos despencam em cima da privada sem tampa. Seus ministros e demais representantes agem como Oompa Loompas transformados em bestas pelo insano Dr. Moreau. Envolvendo familiares e filhos que mais parecem os braços de um espantalho, o governo vai escorrendo pelo ralo e arrastando o povo – que, lembrando, o elegeu.
– Não aguento mais fazer o ritual de uma vida inteira sabendo dessas desgraças. O que era para ser uma hora agradável, de discernimento, tornou-se uma tortura. Quando tenho acesso às notícias, acho que estou tomando café com nojo – o vovô da boina argumentava, antes de concluir, de forma enfática: – Esse presidente é como a bala que matou Euclides.
Após certo tempo usufruindo desses bons papos, acabei entendendo qual é o motivo de eu estar preferindo ouvir a falar. Não há quase nada a ser dito em um terreno baldio. Falas e argumentos não funcionam para ouvidos moucos. Em uma terra sem lei, onde uma bandeira suja e desbotada apenas treme, só tem me interessado saber o que meus interlocutores pensam e o que os levam a pensar como pensam. Aprender tem conexão direta com o ato de ouvir com atenção. E eu quero aprender mais e mais.
Desse modo, atravessamos alguns sábados aprendendo com alguém que viveu uma guerra e uma ditadura. Recentemente, nosso amigo vovô partiu. Pelo que ficamos sabendo em um momento posterior, deixou a vida dormindo depois assistir a um certo telejornal sobre o impacto da Reforma da Previdência para a economia doméstica. Parece ficção, mas não é.
Nos últimos dias, evitando ouvir ou ler notícias no começo da manhã, na hora do café, tenho pensado em que tipo de herança essa gente que está no poder atualmente vai deixar para a posteridade; como eles querem ser lembrados. Para mim, será como a náusea matinal, o tipo de comida estragada que nos faz passar mal durante a nossa primeira refeição do dia.
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