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Crônicas de uma andarilha pós-Idade Média – parte 11

Foto: Jetmag.com

Praça de alimentação de qualquer shopping. Horário de almoço.

Faça um teste. Um teste simples, possível de ser realizado com discrição. Sente em um lugar movimentado e apenas observe. Olhe com atenção para as pessoas e para o ambiente ao seu redor. Você certamente vai encontrar 90% dos presentes em total ausência física. Sentados com a refeição em frente, sequer prestam atenção às garfadas barulhentas e ao barulho da mastigação. Os olhos estão voltados para o celular. Os dedos estão passeando para cima e para baixo nas telas.

Há os que preferem ficar integralmente absortos. Para isso servem os fones de ouvido. Entre um bocado de feijão misturado com arroz e um pedaço de carne enfiado entre os dois, o celular está levantado pela outra mão livre. Whatsapp, Instagram e Facebook dominam completamente.

Rodando sem destino pelas ruelas virtuais – mesmo sem urgências ou nada para ser visto e respondido -, gastamos a maior parte do nosso tempo em um esforço inútil para manter ativa a nossa segunda vida – que não está necessariamente lá e que pode desaparecer com apenas um “delete”.

Jean-Michel Besnier, professor de Filosofia da Sorbonne, disse em entrevista que estamos com as vidas facilitadas pelo uso incessante da tecnologia. O resultado disso é a falta de conectividade com as atividades, distância do sentimento de iniciativa e uma prisão sem algemas, onde estamos nos comportando cada vez mais como máquinas.

Durante meados de Janeiro, quando as férias escolares estavam no seu maior pico de ebulição – e encontrar lugares vagos nas praças de alimentação de qualquer shopping center se tornou tarefa de rastreador -, inúmeras pessoas optaram por fazer suas refeições de meio dia (ou de três ou quatro da tarde) usufruindo de ambientes refrigerados. Em espaços fechados, obrigadas a dividir mesas com estranhos, não foi incomum ver que o aparelho celular era a grande companhia.

Em um desses “laboratórios” cotidianos, fiquei em uma mesa lotada. Ao todo, quase quinze pessoas dividiam o espaço da longa mesa. As outras vagas estavam ocupadas. De todos os presentes, considerando meus colegas de refeição e as pessoas localizadas em um raio de dois metros, apenas eu, um rapaz e uma senhora não sacamos o celular e ficamos mergulhados na tela. O rapaz permaneceu boa parte do tempo debruçado sobre a mesa, brincando com um pedacinho de papel entre os dedos ou acariciando o bigode. A senhora olhava para os lados, como alguém que espera e nada mais. Eu ocupava meu tempo livre antes do número do meu pedido ser chamado para “espiar” (sem olhadas tão invasivas, por favor) para o movimento à volta.

Estamos tão obcecados pela tecnologia e pela necessidade de onipresença que deixamos a vida real, essa de carne, osso e coração, ir acumulando poeira e obrigações todos os dias. Não conseguimos nos sustentar um minuto sequer em um ambiente no qual estejamos sem companhia. Precisamos urgentemente estar com alguém, mesmo que esse alguém seja apenas o reflexo estrategicamente construído de outra pessoa; pessoa essa com falhas, problemas, desilusões, tristezas, alegrias, conquistas e todo o pacote da humanidade.

As cabeças não andam mais levantadas; os olhares não estão distraídos com as belezas – ou feiuras – do caminho; os corações não escutam mais as falas silenciosas; as mentes não estão mais vendo o que acontece aqui e agora. É mais interessante espiar pela vitrine de desconhecidos – ou até mesmo de conhecidos – para se certificar de informações que não teremos tempo de processar.

Quando se trata de almoço, meus pais sempre chamaram a minha atenção e a de minha irmã para nos concentrarmos exclusivamente na refeição. Os conselhos eram dois: 1 – A hora da refeição é sagrada e 2 – Não faça nada enquanto estiver comendo. Só coma. Preste atenção ao que está ingerindo, delicie-se… Se comer fazendo outra atividade, pode ter um treco.

É evidente que o último conselho tinha o peso de uma dessas estórias infantis (Chapeuzinho Vermelho, por exemplo) ou das fábulas de Esopo (O cão e a sombra, só para citar), do tipo que “ou faz do modo que foi ensinado ou vai se dar mal”, mas a ideia central por trás dessas recomendações sempre foi: aprecie o momento.

Quando estiver com alguém, dê o máximo de atenção. Sei que o mundo anda muito complicado (Renato Russo e sua Legião já diziam isso nos anos 1990), mas fugir não deveria ser a primeira opção. Podemos tentar desenvolver um outro tipo de conexão. Melhor dizendo, uma reconexão. E a proposta é simples, mas exige treino. A tecnologia traz um benefício imenso para todos nós, mas, da forma como a estamos utilizando, quase não sobra nada.

Nem mesmo o sabor da nossa última refeição consegue ficar mais tempo em nosso paladar. Não lembramos do que acontece, não reconhecemos pessoas nas ruas e ganhar uma curtida nas redes sociais tem sido mais importante do que ouvir um elogio dito em tempo real, olho no olho.

Para 2019, um desejo: reconecte-se.

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