Chico, hoje você partiu, mas deixou uma história bonita que precisa ser contada. Quando a morte chega, é à vida que devemos nos apegar. Dizer sim com todas as nossas forças é um ato de resistir. E você agiu assim. Desde que nasceu.
Lembro daquele menino muito magrinho que morava na Rua Santo Antônio, naquelas casinhas à frente do lago, antes da ponte (quando tinha ainda a ponte de madeira). Nas invernadas, sua casa costumava ser tomada pela enchente e você, seu irmão e sua mãe precisavam buscar abrigo em outro canto do bairro. A nossa Vila Santa, a vila pobre da cidade. Não era esse bairro de hoje com uma classe média. Havia pobreza. Você sabe muito bem. Você e seu irmão decidiram que era preciso ajudar a mãe. E logo resolveram arrumar um trabalho.
Com a coragem que só os homens honrados têm, vocês assumiram o sustento de casa vendendo picolés na feira. Lembro bem de você com a caixinha de isopor pendurada no ombro subindo a Rua São Raimundo gritando “Olha o picolé!”. Estratégia de sobrevivência! Sim. Ma era já a certeza de que a Dona Pobreza precisava ser driblada. Aquilo era tão digno, tão forte, tão você!
Dois verbos que você aprendeu a conjugar muito bem: TRABALHAR e ESTUDAR. Eu sei que você vem de uma família de pessoas inventivas. Os Paula não vieram ao mundo para baixar a cabeça a qualquer adversidade. E a saída você tinha clareza, apesar da pouca idade. Era estudar. Parece algo tão clichê dizer que a saída é o estudo. Mas num país de forte desigualdade social, estudar é a única forma de vencer esse abismo social. A sua dedicação aos estudos, mesmo numa escola pública precária, mostrava que você queria mais.
Eu fui seu professor de língua portuguesa no Ensino Médio do Antônio Carlos Martins Jorge, e sei como você mostrava sua liderança sem precisar de nada. Era um líder nato. As pessoas iam até você em busca de entendimento. Depois tinha a Igreja. Os laços afetivos com a vida da comunidade se intensificavam ali, na matriz de São José, nossa casa de acolhida, nosso lugar de oração, mas também de partilha, de namoros, de leituras da bíblia com um olhar mais voltado para compreender o mundo de desigualdade que precisava ser denunciado. Não era assim que a gente lia a bíblia? Sempre trazendo para os dias de hoje os problemas? Ver, julgar, agir e celebrar. Esse era o método que você seguia muito bem.
Lembro de você sendo acólito, o presidente do grupo, a forma como acolhia as crianças recém-chegadas, logo após a primeira eucaristia, a organização do futebol entre os coroinhas, a participação do grupo nos encontros da paróquia… tudo isso mostrava seu respeito pelo coletivo. “Vou jogar no time de Cristo./ e eu quero jogar bem/ a torcida pode gostar/ mas terá que jogar também… Vou jogar no time de Cristo e as barreiras todas vencer/ Será o maior time do mundo/ e um dos que jogam pode ser você”. Lembra desse canto? E aquilo tudo era um ensaio para sua vida adulta de migrante. Ou de retirante, uma “vida severina”.
As aves de arribação no sertão ou a Asa-Branca cantada na voz do nosso Gonzagão, sabem o que é migrar à procura de um lugar, mesmo temporário, onde possam encontrar água e comida abundante. Os sertanejos fazemos assim. Você fez assim! Como cantou Belchior, você também cantou “Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no bolso e vindo do interior..”.
Decidiu ir embora, mesmo amando sua cidade. Não conheço mesmo nenhum lagopedrense que mais amou o Lago do que você.
Aquela ladeira da Rua São Raimundo, onde antes você subia vendendo picolé, viu você subir para pegar o ônibus na rodoviária. Destino: Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa, como sempre foi vendida nas propagandas e nas novelas da TV. O Cristo Redentor abre os braços para todos naquela cidade mas, no seu silêncio, diz que é preciso ter cuidado com os flagelos sociais. E você sabe bem disso, porque foi morar ao pé da favela, ali pela Tijuca. Subir e descer ladeiras não era um sacrifício para você e para os seus primos que te acolheram.
Era bonito ver você, Osvaldina, sua companheira desde a adolescência, que você convidou para ir morar com você no Rio e amenizar a saudade da terra das palmeiras. Era bonito ver como vocês acolhiam todo mundo, mas principalmente os maranhenses, na sua casa. Aliás, bastava ser nordestino, esse destino tão errante de nós todos. Os almoços e festas na casa de vocês eram sempre cheios. Fartura de comida, bebida e de gente. A fartura era também de alegria. Como era bonito ver a vontade de abraçar a todos. Cada abraço que vocês davam na gente vinha com a certeza do acolhimento numa cidade tão bonita, mas tão hostil como o Rio de Janeiro. O Cristo no morro abraça a todos, mas o abraço de vocês era a encarnação da esperança e da resistência.
Lembro de você contando como precisava ganhar dinheiro e foi trabalhar como porteiro em prédios de classe média do bairro. Como fazer para continuar revisando o estudo enquanto trabalhava? Porque estava decidido que você tentaria o vestibular. E era assim que funcionava: você pegava os livros didáticos e enciclopédias que os moradores jogavam no lixo. Depois, você levava esse material para o balcão da portaria e passava as horas do trabalho com um olho no portão e outro no estudo. Como você aprendia assim?
De repente, os filhos dos moradores começaram a perceber que você era estudioso e vinham tomar lições com você. Você ganhava uns trocados para dar aulas a eles. Eu ria muito de você contando como, no final do ano, você foi aprovado para uma universidade federal (Uni-Rio) e muitos daqueles meninos não. E os parabéns dos pais desses garotos para você nunca vieram. Porque é assim: “Como é possível que um porteiro seja aprovado para uma universidade federal e meu filho não?”.Esse país é assim: lugar de pobre é servindo ou recebendo gorjeta. Bem que o filme “Que horas ela volta” podia ter sido inspirado na sua vida, não é?!
Cara, você ainda fez outra faculdade. Direito na UERJ. Sabe o que é isso! E um mestrado! E um doutorado.
Cara, e você reuniu em torno de si muita gente boa para criar uma revista acadêmica e fomentar a leitura e a pesquisa no campo da BIBLIOTECONOMIA, o seu primeiro curso. Sabe o que é isso!
Cara, e você foi aprovado para servidor público de uma das melhores e mais conceituadas universidade da América Latina, a nossa UFRJ, justamente para trabalhar no setor do livro, das bibliotecas da instituição!
Você simplesmente foi um pensador brilhante! E um articulador da cultura do livro! Bravo!
Lago da Pedra sempre esteve no teu coração. Era um amor imenso que parecia não caber em você. Sempre falando da terra, sempre querendo retornar. Sempre lembrando da luta: “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá/ as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”. Eita sabiá de canto bonito foi você, Chico!
Não falemos de doença aqui. Falemos de você muito corajoso recebendo a notícia que não queria. Falemos de você muito certo do problema e tendo que ser forte para encorajar sua esposa, sua filha, seu irmão, sua mãe e seus amigos.
Enquanto nós todos ficávamos com raiva, você apascentava nosso choro dizendo que estava decidido a partir e que respeitássemos sua decisão de acolher com serenidade a Irmã Morte.
Agora a irmã Terra vai te acolher, abraço de terra-mãe, , útero sagrado, casa primeira e última, amorosamente quente e úmida. Mas o legado que você deixa precisa permanecer nas bocas de quem teve a honra de dividir um pouco da vida com a tua vida. Eu conto essa história, que é apenas um ponto de vista, para mostrar como você venceu, meu amigo! Como é importante que Lago da Pedra saiba a história de um filho que foi luta do começo ao fim.
O poeta João Cabral de Melo Neto poetizou tão bem nossa vida nordestina:
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
Lago da Pedra: a leveza da água e brutalidade da pedra. Eita nome que congrega uma verdade, viu! Quanto mais dureza, responda com mais leveza. E você, Chico fez isso tão bem. Por isso, é preciso te deixar partir, porque é certo que somos todos retirantes na terra.
Era uma vez um menino que subia e descia uma ladeira vendendo picolé. Era uma vez um rapaz que subiu uma ladeira para ir embora. Era uma vez um homem que subia e descia ladeiras de favela para buscar sustento. Era uma vez um homem que subiu as ladeiras do ensino e se tronou um brilhante ativista do mundo da leitura. Ladeiras!
Abençoada seja a tua história! Abençoada seja tua passagem! Obrigado, amigo!
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