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Censura à biblioteca

Passados 50 anos do “Golpe Militar” no Brasil (1964-2014) em que o discurso de combate a corrupção e ao comunismo (como se essas duas facetas fossem necessariamente complementares) e a aplicação da censura e tortura, em especial, nos âmbitos político, ideológico e artístico, posso considerar que as bibliotecas foram das instituições mais penalizadas nesse processo. Aliás, é possível considerar que no Brasil as bibliotecas possuem um histórico secular de censura, desde o Período Colonial com a censura das bibliotecas religiosas.

A censura às bibliotecas, entendida aqui como um conjunto (político) de ações de cunho governamental, organizacional, individual e/ou coletivo de privar alguém do acesso a um determinado serviço ou produto, incide sobre algumas tipologias fundamentais: governamentais, de organizações públicas, de organizações privadas, censura individual (censura da comunidade de usuários), censura coletiva (no âmbito de grupos institucionalizados ou movimentos sociais) e autocensura (censura de bibliotecários e profissionais ligados a bibliotecas que inviabilizam o acesso à informação).

A censura governamental costuma ser a mais ampla em virtude de afetar política e ideologicamente uma comunidade ou sociedade e comumente ocorre através da falta de bibliotecas nos municípios, em especial, pública e/ou escolar, falta de profissionais especializados (bibliotecários), falta de materiais ou suportes documentais diversos que ocorre no âmbito de uma política concebida por simples interesses econômicos ou políticos junto às companhias editorais (o governo busca satisfazer as editoras comprando livros ou documentos sem uma política pautada nas necessidades dos usuários) ou infraestrutura física adequada.

A censura das organizações públicas é semelhante à censura governamental. Algumas vezes é até extensiva às práticas arbitrárias de governo municipal, estadual ou federal. É, no entanto, mais específica, uma vez que incide comumente sobre a atuação das bibliotecas restritas a um público interno (profissionais usuários que trabalham na própria instituição).

A censura das organizações privadas ocorre no sentido de que as bibliotecas devem atuar mais pautadas no crescimento institucional/organizacional do que humano, ou seja, seus usuários são produtores de informação focalizados no crescimento da organização. Essa realidade ocorre de forma intensa em bancos, indústrias, empresas de comunicação, entre outras. Inclusive em bibliotecas universitárias e escolares privadas é comum a conduta das bibliotecas pautadas na valorização da organização, como, por exemplo, aquelas que possuem vínculos religiosos (católicos ou evangélicos).

Já a censura individual ocorre quando o próprio usuário ou o usuário em potencial, por falta de conhecimento ou menosprezo a biblioteca (este menosprezo pode acontecer em face das deficiências da biblioteca ou mesmo por considerar outras fontes mais efetivas para acesso à informação), não utiliza seus serviços e potencialidades.

Já a censura coletiva talvez seja a mais carregada em termos de concepção ideológica, pois ocorre quando um grupo de usuários convencionalmente movidos por questões ideológicas (partidárias, gênero, religiosidade, credos, raças) não utilizam a biblioteca por não concordar com sua postura. Poderíamos, em alguns casos, chamar também de metacensura, pois é uma censura (no sentido de protesto ou resistência) contra outra censura já imposta.

A censura híbrida pode ser considerada a mais complexa, já que envolve a conciliação entre a postura do bibliotecário, o viés da instituição/organização em que atua e as necessidades dos usuários. Esta censura é muito comum em virtude de que pode ser: uma imposição da própria organização deliberando como deve se desenvolver a política de coleções tornando o bibliotecário apenas mero reprodutor/executor dos interesses institucionais; uma imposição do bibliotecário que, por seguir determinada ideologia, determina (sem consultar a comunidade de usuários) os materiais e serviços a serem desenvolvidos; usuários que, individual ou coletivamente, não se sentem a vontade com a postura adotada pela biblioteca. O resultado desta última censura é o desinteresse, o desrespeito ou até mesmo o menosprezo à relevância do papel da biblioteca por parte da comunidade de usuários. Logo a condição do usuário se torna mais uma prática de resistência de encontrar outros meios para o acesso à informação do que uma censura propriamente dita.

O fato é que todos esses tipos de censura em bibliotecas se apresentam na história do Brasil como realidades latentes, principalmente pelo tripé condutivo política-cultura-educação calcado na arbitrariedade e na hierarquização dos valores intelectuais, profissionais, credo, cor, entre outros.

No período colonial, a censura se deu por caráter de extrema imposição religiosa uma vez que a Igreja era vista como única instituição educadora e tinha como intuito a preparação de seus membros religiosos para catequização. Já nos séculos XIX e XX, o Brasil viveu um conflito político deliberado pelas noções de Império, Ditadura e Democracia. Para que tenhamos uma noção, este (1985 a 2014) é o período mais longo de democracia até então vivenciado no Brasil.

Provavelmente as bibliotecas brasileiras (em sua maioria) seguiram o mesmo caminho político-ideológico da conduta governamental do país e não conseguiram se constituir como centro democrático de acesso à informação. Ideologicamente as bibliotecas brasileiras costumam ser subservientes aos interesses ideológicos do Estado e da grande propriedade privada. Quando há alternativas como o desenvolvimento de bibliotecas populares/comunitárias ou ações de resistência de bibliotecas públicas, escolares ou universitárias, estas são censuradas pela falta de uma política efetiva com recursos (financeiros, humanos e estruturais) para avançar em suas perspectivas.

Logo, o título deste texto quando menciona “entre tipologias e ideologias” quer demonstrar que as tipologias censuradoras são consequências das ideologias e práticas nefastas dos governos e grandes propriedades privadas no Brasil (bancos, indústrias, empresas e mídia).

A postura de uma biblioteca não deve confundir seleção com censura. Embora esta linha seja muito tênue, é preciso considerar que a censura é comumente imposta de cima para baixo sem considerar as necessidades de informação dos usuários (do governo para a população ou da instituição para o profissional ou da instituição para o usuário ou ainda do profissional para o usuário), pois não pensa uma política de coleções de forma democrática e interacionista.

Na própria Biblioteconomia quando ouvimos termos do tipo “usuários da informação”, “estudo de usuários” ou “comunidade de usuários” esquecemos que a maior parte da população não possui acesso a biblioteca implicando dizer que historicamente a Biblioteconomia (sem generalismos) tem atuado fortemente na preservação dos interesses da base mais elitista relegando a um plano inferior aqueles que mais precisam de acesso à informação.

Em síntese, os tipos de censura nas bibliotecas nada mais são do que mensurações categorizadas das posturas político-ideológicas de governos, propriedades privadas e até mesmo alguns grupos intelectuais ligados à cultura e educação que apropriam os espaços das bibliotecas como sendo de restrito acesso.

Portanto, após 29 anos do fim da Ditadura Militar podemos comemorar um vislumbre mais democrático nas bibliotecas, mas ainda temos de lamentar e lutar para que consigamos superar no Brasil censuras macro do tipo: falta de uma política pública integrada de bibliotecas; aumento dos recursos para educação; falta de bibliotecas públicas, escolares e populares; falta de profissionais especializados nas bibliotecas. Essas censuras macro determinam outros tipos de censura micro como: atuações deficitárias das bibliotecas; desinteresse da sociedade em participar na atuação da biblioteca; visibilidade da biblioteca apenas como lugar de depósito de livros (amontoado de livros), entre outras censuras.

Por uma nova ideologia democrática de biblioteca que supre as diversas ideologias censuradoras do Estado e da propriedade privada!!!

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