Quando bati o olho nessa capa, fiquei encantada. Lembro que estava tomando um café numa livraria e fui passear pelos expositores e mesas. Aquela silhueta, já tão conhecida minha, sob as letras meio douradas, me atraiu. Depois que me apaixonei pela trajetória dessa mulher e escritora incrível, sua silhueta e referências são facilmente reconhecidas por mim, num passar de olhos. Estavam lá duas paixões combinadas: Carolina Maria de Jesus e os quadrinhos!
Sirlene Barbosa é responsável pela pesquisa e pelo argumento. O quadrinista João Pinheiro tem um traço interessante, simples, mas fluido que nos conduz de um quadro a outro junto com o movimento dos personagens, mesmo quando há cortes. A narrativa, quase fílmica, do roteiro nos faz caminhar tristemente com Carolina.
Nessa caminhada, porém, uma questão me surgiu: o enfoque dramático do roteiro foi intencional ou o lado triste e sofrido de Carolina foi o que ficou evidente, durante a pesquisa, para Sirlene e João?
Porque, para esta que lhes escreve agora, a alegria de Carolina e sua garra são as características mais marcantes de que me lembro. É como ela lida com as dificuldades que me interessa, como combate o racismo e as injustiças e como sempre encontra uma forma de sorrir, um pequeno motivo para ter esperança e tentar ser feliz. Porém, mais que sua história de vida, é sua literatura que me inspira.
Carolina Maria, além de escrever poesia com tão poucos recursos (escreveu a maior parte de seus textos em cadernos recolhidos no lixo, onde também garimpava livros), escreveu também romances, diários, peças de teatro, músicas, contos, crônicas, provérbios e, segundo Rafaella Fernandez, estudiosa de Carolina e autora do prefácio desta obra, também “narrativas híbridas corrosivas e corroídas que confrontam os ditames das teorizações sobre a escrita e o lugar da literatura”.
Todos os textos de Carolina Maria possuem um apelo dramático e qualidade literária. As imagens criadas por ela, entre metáforas e outros recursos literários, são complexas e sofisticadas do ponto de vista da criação. É lamentável que tantos teóricos tentem reduzir a importância da escrita de Carolina à sua condição de favelada e catadora de papel. A realidade conta e pesa, mas não define a qualidade dos textos dela. Eles são incríveis, para além da vida de Carolina.
“Quando estou na cidade, tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo, almofadas de sitim. E quando estou na favela, tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.”
Os desvios das normas gramaticais e ortográficas são irrelevantes para o conjunto da obra. Viludo ou veludo, não importa, a mensagem é dada e a gente entende. O preciosismo com a língua é mesmo necessário? Carolina Maria de Jesus nos prova, com sua obra, que não.
“Sou poetisa, mas não tenho preguiça. Sabe, acho que os poetas que têm essa fama de vida boa são os brancos, mas eu sou preta e trabalho muito.”
Sirlene e João começam o enredo pelo fim, com Carolina refletindo sobre sua própria história, e segue o curso como lembranças nubladas de uma vida intensa. Passa por relatos de “Quarto de despejo”, seu livro mais famoso, com fortes imagens da favela do Canindé, em São Paulo, onde viveu por mais de 20 anos e escreveu boa parte de suas mais importantes obras.
“Estou escrevendo um diário para dizer tudo que sinto e presencio aqui na favela. Procuro registrar as maldades que os outros praticam. Se a pessoa é boa, eu escrevo, se é malvada, eu escrevo. Falo dos excluídos que vivem no porão da sociedade, das crianças com fome e velhos sem esperança.”
Depois da primeira parte, na qual se destacam os relatos do próprio livro, os autores continuam o roteiro dessa biografia em quadrinhos contando um pouco da realidade de Carolina Maria, do seu cotidiano, dos desdobramentos da divulgação do diário e da possível publicação de “Quarto de Despejo”, da reação dos moradores da favela que se sentiram ofendidos ou orgulhosos, das publicações no jornal a respeito de seu livro, das dificuldades, apesar da fama e do sucesso, até novamente o esquecimento.
O final, bem poético, estende o resgate da memória de Carolina até a infância e uma projeção do futuro como escritora.
Sirlene teve uma grande sacada em publicar parte da biografia de Carolina Maria no formato quadrinhos. Como professora, ela gostaria que seus alunos e muitos outros pudessem conhecer o trabalho, a escrita e a história de vida da escritora. A obra foi produzida com recursos do edital PROAC (SP) de 2014, indicada ao Jabuti em 2017 e contemplada no Plano Nacional do Livro Didático Literário (PNLD Literário) em 2018.
Para além da história de Carolina, o livro (quadrinho ou graphic novel) é riquíssimo na abordagem de temas sociais complexos e necessários: exclusão social, fome, alcoolismo, violência doméstica, violências variadas contra as mulheres, machismo, racismo, oportunismo, sobrevivência.
É um prato cheio para o debate, ao mesmo tempo que é um lamento que se discuta tão mais a vida de uma autora do que sua vasta, complexa e variada obra literária. Carolina Maria lançou um disco com músicas de sua autoria em 1961, além de cerca de quatro livros, em vida.
Entretanto, há mais de duas mil páginas com seus manuscritos, possibilitando a publicação de muitos livros após sua morte, tanto sobre sua obra como sobre sua vida. Há ainda uma variedade de textos inéditos a serem revelados. No entanto, é notória a dificuldade de aceitação, pelas editoras e grande parte dos intelectuais da elite, da inegável qualidade literária de uma mulher, negra e pobre.
É um trabalho belo e interessante para apresentar a biografia da Carolina Maria de Jesus a quem não a conhece e, talvez, para os interessados em quadrinhos biográficos. Para os apaixonados por um ou por outro, é sempre um deleite ler e reler.
Autores: Sirlene Barbosa e João Pinheiro
Editora: Veneta
ISBN: 978-85-63137-58-6
Ano: 2016
Páginas: 128
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