Sabemos que no chão do desejo pela democratização do acesso ao livro e à leitura nascem as bibliotecas comunitárias. Espaços multifacetados, alguns em condições adversas, nutridos de utopia, solidariedade e muitas leituras. Essas bibliotecas são centros de referência sociocultural, onde se articulam conexões com outros espaços, protagonismos e prestação de serviços comunitários. Local de afeto, de troca de experiências, lazer, interação e formação de leitoras e leitores.
Na trajetória desses espaços, um ciclo formativo desenvolvido coletivamente desde 2006 com o apoio do “Programa Prazer em Ler”, do Instituto C&A, norteou reflexões sobre melhorias dos espaços, aquisição e organização de acervo, mediação de leitura, enraizamento comunitário, gestão compartilhada, comunicação, articulação, incidência política e mobilização de recursos que mudaram a visão e a prática de atuação das bibliotecas.
A partir deste ciclo, foi tecida a construção de redes de bibliotecas locais em estados de quatro regiões do Brasil, que, desde 2015, formam a RNBC (Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias). Com o propósito de expansão e fortalecimento da rede foi organizada a edição do “XII Seminário Prazer em Ler: Bibliotecas Comunitárias na promoção do Direito Humano à Leitura”, nos dias 16 e 17 de agosto de 2018.
Mais de uma centena de pessoas integrantes da Rede Nacional, convidados e parceiros, como o Instituto C&A e a Fundação Itaú Social, se encontraram no Sesc Santana em São Paulo para discutir, apresentar dados de pesquisa e compartilhar informações sobre Literatura como Direito Humano.
Já na abertura, fomos presenteados com a exposição Ocupação Antonio Candido, no Instituto Itaú Cultural. A expografia cuidadosamente trabalhada para traduzir os sentimentos, o perfil e a lógica deste autor brasileiro, sociólogo e crítico literário que defendia a literatura como direito inalienável, se configurou em aporte teórico indispensável ao embasamento das nossas ambições político-literárias.
Amparado em Antonio Candido, o Seminário debateu a importância de termos consciência da necessidade de leis que garantam esse direito e esse acesso a todos. José Castilho, palestrante, especialista em políticas públicas do livro, leitura, literatura e bibliotecas, mentor intelectual da lei 13.696/2018, que instituiu a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), de autoria da senadora Fátima Bezerra, falou sobre as determinações da nova lei que deve ser referência para a feitura dos Planos Municipais e Estaduais do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (PMLLLB/PELLLB) .
Bibliotecas Comunitárias do Brasil
Entre as diretrizes da Lei, está o reconhecimento da leitura e da escrita como direitos e o fortalecimento do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP). Orienta ainda, que os planos deverão contar com metas e objetivos claros a serem alcançados em dez anos, afinados com o Plano Nacional de Educação, o Plano Nacional de Cultura e o Plano Plurianual da União. O Estado tem a obrigação de assegurar o cumprimento desse direito por meio de recursos e orçamentos previstos pelo poder público federal.
As 143 bibliotecas comunitárias, distribuídas em 45 municípios, que compõe a base da pesquisa “Bibliotecas Comunitárias do Brasil: impactos na formação de leitores”, apresentada no seminário, são de acesso público. Os dados apresentados mostram que 86,7% estão nas zonas periféricas de áreas urbanas, lugares estes desassistidos pelo Estado, o que as respalda por lei federal a receber tais incentivos. Entendimento apoiado pela bibliotecária Cida Fernandez, uma das organizadoras da pesquisa.
Para ela, o direito à leitura é estruturante do acesso a outros direitos negados pelo Estado e que mantém o povo numa imobilidade social. Por isso, representante dos setores criativo, produtivo e mediador do livro e da leitura no Brasil devem se empenhar para implantar os PMLLLBs. O encontro oportunizou a construção de um plano de fortalecimento de uma rede latino-americana de bibliotecas comunitárias e populares.
Para pensar esse projeto se encontraram: a RNBC, a rede de bibliotecas populares de Antioquia, Medellin, Colômbia (REBIPOA) e a CONABIP (Comissão Nacional de Bibliotecas Populares, da Argentina). Já sonhamos por isso, com tessituras literárias em uma plataforma de redes que se entrelaçam em prol de uma América Latina leitora. Pois ler é fazer um deslocamento de uma perspectiva para outra, de territórios, gêneros discursivos, autores, e de um lugar para outro, alargando nossa visão de mundo.
Minha primeira impressão sobre o Seminário se relaciona ao cuidado ofertado aos que chegavam para o encontro. Tudo foi pensado para dar conforto e bem-estar, não poderia ser diferente. Os ativistas da leitura lidam com o cuidado e é preciso entendê-lo como o dispositivo fundamental para lidar com o mundo contemporâneo, como nos sugere o filósofo Martin Heidegger.
Entender seu valor é entender o que é autenticamente importante, pois ocupa um espaço de abertura para possibilidades de um mundo melhor, desde que, compromissado com a diversidade de ideias, crenças, gêneros e etnias, cidadania e desenvolvimento pessoal e coletivo. Quem convive no cotidiano das bibliotecas comunitárias sabe dos desafios que nos remete à sua magnitude.
Cuidado e literatura são importantes entrelaçamentos existenciais que têm poder de desvelar e transformar a realidade de qualquer território. A leitura é uma jazida de ouro que precisa ser garimpada com muitos e diferentes livros como quem procura enxergar o outro através de si e enxerga a si através do outro para oportunizar o brilho da transformação social. Ainda na pesquisa sobre as bibliotecas comunitárias ficou evidenciado o cuidado das bibliotecas com o livro, com a integração da equipe e com a comunidade do entorno.
Há cuidado com a escolha de acervo (47%6 tem até 3.000 livros com 100% de literatura), com a qualificação e perfil dos mediadores (dos 349 pesquisados, 90,8% têm do ensino médio até pós-graduação e 57% são moradores do lugar onde se localiza a biblioteca), com as condições de infraestrutura (88,1% dispõem de banheiro aberto ao público, 87,4% têm ambiente arejado com janelas e 85,3% possuem computador), mecanismo de gestão (81,1% adotam gestão participativa).
Sobre o cenário da mediação, a pesquisa aponta que 90,2% realizam mediação de leitura, usando como estratégia, leitura de livros (90,9%), contação de história com livros (90,2%), empréstimos de livros,(90,2%), leitura fora da biblioteca (73,4%), recitais e saraus poéticos (60,8%).
Observamos também nos dois dias do Seminário o protagonismo dos jovens e das mulheres! Elas e eles instigaram os participantes através de debates, apresentação artística e posicionamentos filosóficos. Aplausos ao grupo musical Clarianas, ao cortejo literário dos jovens Escritureiros, à Dj Bia Sankofa, ao Slam Letra Preta , ao Sarau do Binho e ao espetáculo teatral “Davis, a voz da liberdade”, que promoveram o empoderamento das mulheres presentes.
A gente faz história e a história faz a gente. O evento entrelaçou pessoas e histórias em um voo comunitário marcado por grandes significados. Obrigada a todos que ajudaram a escrever esta página no livro de nossa história.
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