Biblioo

Aprendizados e experiências em uma rede de biblioteca escolar

Cena final do filme 8 ½ (1962), do cineasta italiano Federico Fellini.

Fecho e compartilho com colegas bibliotecários e bibliotecárias, educadores e agentes de cultura, um ciclo profissional relevante vivenciado por quase oito anos, em um espaço pensado e reelaborado para existir biblioteca enquanto campo de superação de expectativas, estímulos, experimentações multi-inter-transdisciplinares – além das aplicações, de praxe, propostas pela C&T da Biblioteconomia.

De sucessos a dissabores, o fato é que esta experiência acabou se convertendo  naturalmente em um projeto de referência, do “tipo exportação”  para essa grande rede interna de bibliotecas, e também já de algum alcance e visibilidade externa.

Contudo, a ideia desta despedida, como desculpa de marco temporal, é abrir ponte para futuras e novas reflexões éticas, estéticas, metodológicas e motivacionais acerca do “Incrível e estranho mundo das bibliotecas”.

Neste propósito, aqui, trago fiapos de registros e ternuras. As des(ternuras) diluo em minha existência como experiência de troca e insumo para novas vivências, “observanças” e registros. É fundamental que bibliotecários e bibliotecárias, especialmente em tempos de saturação informacional,  tenham em seu âmago de formação básica, o anseio por uma investigação contínua e crítica do ambiente, das relações, das técnicas, ainda que embasada e retroalimentada pela experiência de mercado. A célebre “leitura do mundo”, nos dada de presente pelo pensador e educador Paulo Freire, talvez continue sendo uma das competências mais salutares do/para o mundo contemporâneo, pós-moderno.

Há quase 08 anos, no “Dia da Mentira”, desvinculei-me da rede de bibliotecas do SESC-MG para iniciar um novo desafio no SESI-MG, em uma escola com quase 60 anos de história, localizada na região limite entre as cidades de Belo Horizonte e Contagem – trecho onde se inicia a sequência de indústrias e a concentração de outras unidades do SESI e SENAI-MG.

Após várias etapas, finalmente fui selecionada pela gerência (diretora) da época, que assumiu essa unidade até o início de 2020, quando se sucedeu a partir daí a pandemia, levando à suspensão de todas as bibliotecas da rede SESI-SENAI. A missão inicial foi (re) fundar a Biblioteca a partir de abril de 2014. Esta, que mais tarde foi reconhecida como lugar de referência da rede por colegas de profissão, comunidade acadêmica e visitantes enquanto modelo de projeto estético, cultural e literário. Inicialmente, houve um plano de reestruturação realizado junto com alunas e alunos, do fundamental II e ensino médio, que apontava para uma missão de construção de um espaço que fomentasse e pudesse fazer elo da leitura, da literatura, do conhecimento, da sala de aula com as artes e a cultura. A autonomia e a confiança fomentada aos docentes, enquanto integrantes do corpo gestor da biblioteca foram combustíveis para o fogo. Inúmeros projetos criativos nasceram desta parceria.

Talvez o primeiro Conselho de Alunos de Biblioteca foi criado neste lugar, em 2014, que vigorou como braço direito da Biblioteca ao longo dos anos. Todo o processo de estruturação do espaço, layout, desenvolvimento de acervo, projetos culturais e decisões partiram do meu encontro com alunos ávidos e curiosos por uma nova ocupação cultural e social da escola. Dessa junção, implantou-se ali também o maior projeto e acervo de mangás da Rede SESI-SENAI de bibliotecas, antes mesmo da eufórica moda atual entre o público infanto-juvenil. Só os trabalhos desenvolvidos junto ao núcleo discente poderiam gerar inúmeras páginas de ensaios e tratados, devido à riqueza de nuances e experiências.

Uma das motivações foi também a proposta de ocupação do espaço, para além do incentivo e suporte aos saberes e projetos pedagógicos. A Biblioteca, enquanto território de apropriação de  “espaço público”, ainda que de âmbito privado, que pode e deseja ser ocupado para pretensões e despretensões; que desafia o status quo; que motive permanentemente o exercício da criatividade e o senso crítico.  

Se fez também ali um laboratório de experiências para integrar C&T de Design a projetos de layout, estudos da cor e ergonomia informacional de modo a impulsionar e facilitar o acesso aos livros, tornando a mobilidade do espaço mais interessante e atrativa para os leitores e usuários. Houve a oportunidade de expandir a ideia, quando fui convidada a assessorar o (re)planejamento de layout em outras bibliotecas da Rede SESI-SENAI. 

Outro tema, a princípio, que faz parte do celeiro comum de ações e atividades de bibliotecas do país, foi a produção de festivais culturais e literários, que nasceram junto com a oficialização da Semana do Livro e da Biblioteca pela Coordenação de Bibliotecas da Rede SESI-FIEMG. Data comemorativa que se tornou a sequência de temáticas artísticas mais esperada nos outubros da escola. Esses eventos tiveram visibilidade e impacto positivo em toda rede, por algumas razões a seguir. diferencial na curadoria temática; parcerias significativas com a cadeia produtiva e artística do livro, das artes e do conhecimento (intelectuais, escritores, editores, livreiros, feirantes, artistas da poesia e literatura, da música, das artes cênicas, do cinema/audiovisual); parcerias com setores internos; formação de ampla rede de contatos; uso sustentável de recursos; formação e potencialização contínua de talentos, reduto de culminância organizada e estratégica de projetos e ações, entre sala de aula e biblioteca, ao longo do período letivo.

Não é singular pensar que a escola em si é um reduto rico em diversidade e vontades, e que biblioteca é um aparato orgânico sociocultural e de expansiva potência sustentável em si pelas possibilidades que a cercam. Classificaria esta visão conceitual como “bibliotecas antropofágicas”. Uma importação e homenagem à manifestação artística e estética cultural liderada por Oswald de Andrade do modernismo brasileiro, que neste ano faz cem anos.

Ao contrário, por qualquer motivo que seja, nos deparamos com o que eu chamaria de “bibliotecas-ilha”, sem conexão e tentáculos com o meio, portanto, fadadas em si mesmas.

As experiências acima motivaram um aumento exponencial do contato com os livros, com a leitura espontânea, refletida nas estatísticas de empréstimos, consultas e visitas à biblioteca, compactuando consequentemente com os bons resultados e rankings da escola.

Satisfeita por um passado-presente de decisões e caminhos que me conduziram ao objetivo de proporcionar o encontro do livro com o leitor. Pretensiosamente, desejei que todos ao meu redor entendessem o mundo através da leitura e da leitura do mundo em si. Isto é a magia da libertação cognitiva, de todos os sentidos, para um sentido real de formação humana e cidadã. A missão de eliminar a ignorância, o analfabetismo funcional, a desumanidade e a desigualdade social deveria ser prioridade de todos aqueles que trabalham por pessoas. Só assim teremos avanço, desenvolvimento científico e tecnológico (sustentável) à altura do nosso grande lar, planeta Terra.

Deixei e levo comigo vivências inestimáveis. Sigo.

Agradecimentos àqueles que se sentem tocados e agraciados,

Aquele abraço. 

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Com licença poética 

Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou tão feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

(Adélia Prado, integrou o “Projeto Autor do Ano” 2021 – Rede SESI SENAI – MG) 

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