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A utopia prossegue, mesmo nesses tempos de tantos vazios

Elevado Presidente João Goulart, São Paulo-SP. Foto: Ricardo Queiroz

Faz uns seis meses que vejo em todo intervalo noturno, e em todos os finais de semana, o imenso vazio do Elevado João Goulart[1]. Um vazio falso, um vazio de muitas marcas, o vazio de uma pandemia que nos condena a esperar passivamente a mais esvaziada das sensações: impotência, medo.

Pode soar banal lamentar o vazio desse composto de concreto e ferro alçado num grande pedaço de São Paulo, mas não, ele prenuncia um tipo macabro de preenchimento, ele dá espaço para um tipo de marcação que tinge em seu vácuo nomes, histórias, dramas e desfechos.

É como o meu olhar enxerga o vazio imenso do Elevado: um vácuo de 100 mil nomes, 100 mil histórias, 100 mil pessoas que hoje se ausentam de tantos outros que os amam e que compõem um quadro de milhões de tristes e desesperançados pela ausência.

Toda as noites, toda manhã de domingo nos últimos seis meses, o Elevado vazio e os números de ausências que aumentam exponencialmente, quando juntados, não me deixam esquecer as descobertas, as decepções e as tristezas que a pandemia me ensinou.

O que angustia, o que expulsa qualquer possibilidade de alento, é o efeito banal que esse vazio suscita em alguns poderes e algumas pessoas.

Quem são?

Elevado Presidente João Goulart, São Paulo-SP. Foto: Ricardo Queiroz

Aqueles que querem reabrir, aqueles que querem vender a farsa do “novo normal”, aqueles que ignoram todas as razões e as fragilidades do outro, aqueles que querem usar os vulneráveis, os que são obrigados a se expor nos transportes públicos, nos locais de trabalhos inóspitos e infectos, como o escudo de sua moral hipócrita cegada pela ganância e pelos projetos de poder, são os que de fato não se importam.

Então, o vazio do Elevado se preenche não apenas de lamentos e cantos de luto, mas de revolta, de repúdio, de decepção, de asco sobre aqueles que banalizam o mal, que não se sensibilizam, tanto os monstros explícitos, quanto os dissimulados que sorriem e fingem um humanismo e empatia que se dissolve nos próprios atos e decisões.

Está mais triste e vazio o Elevado desse domingo, 9 de agosto de 2020, que marca 100 mil mortos pela Covid19. Não há esperança exequível para que esse vazios cheio de cantos macabros e ruídos indesejáveis cessem sem luta e sem muito mais perdas. O que espero de verdade, ingênuo talvez, é que os insensíveis e os sórdidos acordem, saiam do seu torpor por si mesmo e atentem para o pouco de vida que ainda lhes resta.

A utopia prossegue, mesmo nesses tempos de tantos vazios.

[1] O Elevado Presidente João Goulart, nomeado anteriormente Elevado Presidente Costa e Silva, e popularmente conhecido como Minhocão, é uma via expressa elevada da cidade de São Paulo, Brasil, que liga a região da Praça Roosevelt, no centro da cidade, ao Largo Padre Péricles, na Barra Funda.

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