Paulina Chiziane canta o canto dos escravizados e seus descendentes. No livro de poemas “O canto dos escravizados” saúda as heranças, fala da travessia, do que se supera, de África e de América, de dor e de superação, de separação e de reencontro. Fala muito de Deus (esse mesmo) e de pátria.
No poema Desespero:
“Do escravo foi tirada a terra, o nome, a família
Foi tirada a pátria, a casa, a existência
Tiraram-lhe o corpo e ficou de alma nua
Até da saudade o escravo foi privado
Saudade de quê, se não tem nada nem ninguém?
Por isso rogamos: Deus, faz então o teu milagre
E cura a angústia dos africanos nascidos na América”
Paulina tem uma poesia sonora, com versos e estrofes bem divididas que me lembram os “clássicos”. Fala de passado e de futuro. Ler uma literatura africana causa estranheza, assim como filmes europeus ou música asiática, num primeiro contato. Não temos referências, não temos o hábito “dessa” leitura: essa forma, estilo, referências culturais ou geográficas.
Do poema Deixo-te a maior missão: a reconstrução de África)
“Aqui houve grandeza destruída pela bárbara invasão
Aqui reside o útero da vida e o umbigo do mundo
Aqui é o berço da História
Do Cabo ao Cairo o vento geme como quem ri e chora”
A diferença é que Paulina fala de nós, nosso povo. Os negros da América somos nós, e a maioria de vocês que me lê.
Onde estão eles?
“A vida lhes levou por mil caminhos
Pelos carreiros cheios de espinhos
Levam consigo a vontade de viver e de vencer
Arrastam o estigma colocado sobre uma raça
(…)
“São as vítimas preferidas da polícia
São a maioria da população das prisões
Habitam as favelas mais sombrias
Nas periferias de todas as Américas”
Vários livros nos trazem incômodos, porque nos tiram do nosso lugar de conforto. Esse é um deles. Às vezes, incomodam tanto que ficamos na dúvida se gostamos ou não. Se você foi criada para encarar a leitura literária apenas como lazer, como eu, esse incômodo se multiplica. O que é ótimo. E, apesar do incômodo, fico com vontade de que todo mundo que eu conheço leia. Nem tudo se resume a gostar. Algumas leituras são importantes para além do gosto.
No poema Deixo-te como herança a coragem, Chiziane provoca:
“Não queres lutar? Tens medo de morrer?
Como um morto, tu és tratado mesmo que respires”
O livro é dividido em livros, tal qual a Bíblia. Digo tal qual, porque é possível notar nesse livro a influência cristã da autora, mas também porque é possível confirmar essa informação em entrevistas e matérias sobre essa relação que Paulina estabelece entre seus poemas e a Bíblia.
Os “livros” ou capítulos são: Livro I – Testamento, livro II – Canto de dor e desespero (este livro tem duas partes: Eu, escravizado, canto e Canto de dor e saudade; livro III – Canto de resistência; livro IV – Transcendência; livro V – Canto de liberdade; livro VI – À volta da fogueira; VII – Canto de esperança.
Os títulos dessas partes soam pertinentes, após a leitura. E o jogo de queda e ascendência acompanha a sequência estabelecida. Os primeiros textos parecem históricos, distantes. Depois vão ficando intensos, dolorosos, reais, atuais. Em seguida há uma esperança, uma força, uma potência, versos de luta e resistência.
É a partir de “O canto de liberdade” que Paulina Chiziane mostra toda sua potência e a força de sua poética. Essa parte final do livro, sozinha, faria o livro inteiro valer a pena. É um canto de resistência, de possibilidades. É, enfim, o canto de liberdade.
Afirma-te
“Quantas vezes não vacilamos por causa das falas do mundo?
Quando sentires medo, respira fundo e recobra a coragem
Desce para dentro de ti e procura as razões da tua luta
Deixa a liberdade guiar o teu espírito até o coração do infinito”
Os últimos textos são extremamente atuais. Falam da dinâmica contemporânea, das novas formas de dominação, da incoerência dos tempos modernos.
Há textos muito amadurecidos, bem compostos e elaborados. Outros extremamente simples, diretos, talvez um pouco pueris. Textos capazes de atingir todo tipo de público, de todas as idades.
Tem uma variedade de aspectos poéticos: vários tipos de rima, das mais previsíveis às mais imprevisíveis; jogos de palavras, orações (religiosas mesmo), recados simplórios e outros duros e diretos. Sutis chamados à revolução. E aulas inteiras de histórias.
Em Deixo-te o orgulho de existir:
“Berço universal que gerou a pródiga humanidade
Na tua luz e sombra repousam sabedorias antigas
És o celeiro dos invasores e a sobrevivência do mundo”
Paulina Chiziane mistura cotidiano e história de uma tal maneira que é quase impossível não refletir sobre o que nos rodeia e como historicamente chegamos até aqui. Após lê-la, é muito improvável que passemos distraídas pelas injustiças que nos rodeiam diariamente. E isso, também é uma forma de liberdade.
Ficha técnica:
Autora: Paulina Chiziane
Editora: Nandayala
Edição: 1ª
Ano: 2018
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