“A cor da ternura” foi um livro que, entre começar e terminar, levei duas horas para ler. Sou uma leitora afoita, e isso me faz perder muitas coisas. Durante essas duas horas, esqueci totalmente da vida, de mim, de comer, do que me preocupa, do que me entristece, esqueci de tudo à minha volta, tamanho foi o envolvimento com a história e a personagem. Mas ser afoita me faz perder, também, muitas coisas no livro, minúcias.
Ler um livro rápido parece algo muito especial, mas na verdade pode ser bem inconveniente. Ler livros rapidamente traz uma errônea noção de otimização do tempo e de possibilidade de ler muitos livros em um pequeno intervalo de tempo. Um livro deve ser saboreado. Quando lemos um livro muito rápido, apesar da empolgação que é sempre algo interessante a se curtir, perdemos muitas coisas importantes. Detalhes, nuances.
Quando lemos um livro com calma, saboreamos entrelinhas, curtimos os momentos entre uma pausa e a retomada da leitura, preenchemos esse espaço com a nossa imaginação. Isso muda a experiência de leitura e também nos permite reter e absorver melhor a história, porque é uma relação mais permanente que traçamos com essa história. Por isso eu reli, para escrever esse texto, e foi uma experiência totalmente diferente e muito mais íntima.
Cheguei a esse livro assim: Conceição Evaristo[1] recomendou numa entrevista, eu fui correndo atrás, porque fiquei curiosa. Valeu muito a pena, como eu imaginava. Lembro que à primeira vista me pareceu um livro infanto-juvenil. Tem aquele formato dos livros que gente tem que ler na escola pra fazer trabalho de interpretação e essa não é uma boa primeira impressão, ao menos para mim. Notei também que ele é fininho e tem muitas ilustrações. E que ilustrações! Tão lindas…
Não tem nada de infanto-juvenil e, assim como tantos filmes de animação, só não percebe quem o olhar muito superficialmente. Não que seja um livro impróprio para o público infanto-juvenil. É que os personagens são complexos e os temas abordados são extremamente sérios, para além da compreensão do público mais jovem.
Ainda assim, talvez devesse ser incluído na lista de paradidáticos obrigatórios, salas de leituras, bibliotecas, rodas de leitura e todos os acervos possíveis porque, mesmo que a compreensão não seja completa, há muito o que aprender, discutir e instigar a reflexão crítica e a percepção social. Pode ser usado para abordar diversos temas e conversar sobre assuntos importantes, muitas vezes ignorados.
O livro é leve e a personagem principal é tão verdadeira, profunda, cheia de desejos e até de contradições, que me encantou. Fez-me repensar no modo de responder às crianças, no modo de julgá-las e educá-las. Sim, julgamos as crianças ao educá-las. Brigamos, repreendemos ou parabenizamos sem ter total dimensão do que se passa em suas férteis cabeças, cheias de ilusões e incompreensões, mas também de imaginação e um modo próprio de ver o mundo.
Sem sequer tentar entender o que pode estar passando por essas cabeças, tomamos decisões para educar. Às vezes necessárias, mas nem sempre. Nossa falta de sensibilidade enquanto adultos é algo a que nunca damos atenção, pois achamos que ser adultos é sermos “práticos” e que certos incômodos demonstrados é “coisa de criança”. No livro, a personagem principal ganha um irmão e, portanto, perde seus privilégios de caçula e muito da atenção que recebia.
Brincadeiras tidas como ingênuas pelos adultos que desconsideram o que pode estar sentindo uma criança são extremamente comuns, como nos mostra o livro. Não prestamos atenção às crianças o quanto deveríamos, foi a mensagem que recebi de alguns trechos do livro, como esse:
“Eu nem ligava pra elas. Ficava sentada num degrau da escada na porta da sala, indiferente. Mas elas tinham sempre alguma coisa para me dizer. ‘Chi!!! perdeu o colo’, diziam umas. ‘Vou levar ele pra mim’, diziam outras.
‘Que enfie no…’ pensava eu. Logo me arrependia e fazia o sinal-da-cruz.” (p.22)”
A folha de rosto informa que o livro recebeu um Prêmio Jabuti de Autorrevelação em 1990 e Menção Especial UBE-RJ em 1991, mas o que me me chamou mesmo atenção foi a imagem de capa, assim como as ilustrações internas, tão sensíveis e delicadas da Saritah Barboza. Um livro cuja primeira edição data de 1987 ser ainda tão atual é incrível e triste ao mesmo tempo.
“A cor da ternura” é o nome certo pra esse livro. Os pensamentos ternos dessa criança, mesmo em momentos de raiva ou tristeza só pode nos causar ternura.
“Lombriga coisa nenhuma. Eu tinha era saudade. Saudade dos meus detalhes perdidos. Do meu colo, da minha comida servida na boca. Do meu espaço para perguntar besteiras como diziam eles. Dos olhares carinhosos.
Da minha mãe dizendo ‘Descasca uma laranja pra menina, Deixa que eu penteio o cabelo dela, Mais coberta pra menina não passar frio’…” (p.24)
A encantadora ternura da ingenuidade infantil transformou um bicho de pé em companhia.
“Foi exatamente nessa época que peguei um bicho-de-pé. Fiquei imensamente feiz. A única coisa que atrapalhava é que não podia contar para ninguém, nem pra minha mãe, porque quando ela descobria que qualquer um de nós conseguia um, pegava logo uma agulha, queimava a pontinha na labareda da lamparina e cutucava até arrancar o querido bicho do dedo da gente.
Mas eu já não estava só. Como meu bicho-de-pé mantive diálogos longos.” (p.37)
Cada capítulo pode ser lido separadamente, como se fosse um conto. As histórias são independentes, mas muito bem costuradas em sua narrativa e linha do tempo. Lembra em muito as práticas de contação de histórias. O estilo da autora nos faz viajar com essa criança que nos conta seus dias, deixando-nos em dúvida se quem conta é a própria criança ou sua versão adulta narrando memórias.
Viaja em seu balanço, recita poesia, conversa com os bichos, desenvolve novas formas de se expressar, já que a língua dos homens não lhe atende. Mistura imaginação, desejo e realidade em suas histórias.
“Eu esperava minha vez. Não tinha tanta pressa, nem me magoava se ficasse por último. É que eu brincava de outra coisa. No balançar, eu ia para lugares que elas nem podiam imaginar que existiam e poderiam conhecer. Quantas e quantas vezes fui para São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Minas etc. Mas eu ia e voltava logo, dentro do limite das balançadas propostas.” (p.42)
Tudo isso sem deixar passar importantes práticas, dores e resistência ao racismo de pessoas próximas, certa revolta, negação e uma inconformidade com a submissão ao racismo que sua mãe espera dela. As diversas faces do racismo se mostram no cotidiano da menina, em diversos momentos.
“- Quando eu vou pra escola?
– O nome a gente dá agora, mas só entra mesmo no ano que vem. (…)
– E se, no caminho, o Flávio me xingar de negrinha?
– Não quero saber de encrenca, pelo amor de Deus! Você pega e faz de conta que não escutou nada.
Calei-me.
Quem era eu para dizer-lhe que já estava cansada de fazer de conta?”
Geni é uma personagem tão ingênua quanto perspicaz, inteligente e com grande percepção de seu entorno/realidade e das incapacidades dos adultos à sua volta. Interessante reviravolta no fim. “A cor da ternura”, de Geni Guimarães, é, sem dúvida, o livro mais terno que já li.
Autora: Geni Guimarães
Editora: FTD
ISBN: 85-322-0125-3
Ano: 1998
Páginas: 93
[1] Conceição Evaristo é uma autora contemporânea brasileira famosa por sua prosa poética, bem como por suas falas e escritas em defesa da literatura negra e construção de personagens negros relevantes. É amplamente conhecida, atualmente, tanto pelo seu premiado livro no Jabuti de 2015, “Olhos d’água”, como por sua recente candidatura em 2018 a uma cadeira da ABL (ver aqui, aqui e aqui).
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