É difícil encontrar alguém que não conheça e não tenha sorrido ou refletido ao menos uma vez na vida por causa dessa personagem tagarela e inteligente: Mafalda. Nesse fatídico setembro de 2020, seu criador, o cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino, faleceu de complicações advindas de um acidente vascular cerebral.
Menos de 24 horas depois, choviam cartuns e depoimentos em homenagem ao artista, ao amigo, ao criador de personagens tão marcantes para a história das histórias em quadrinhos e da arte gráfica. Maurício de Souza, contemporâneo de Quino, lembrou que as duas personagens infantis mais emblemáticas da América Latina nasceram praticamente juntas. Em nota divulgada ao Correio Braziliense, com o título “Quino vive”, disse:
“O amigo Quino está agora desenhando pelo universo com aqueles traços lindos e com um humor certeiro como sempre fez. Criou sua Mafalda, hoje de todos nós, no mesmo ano em que eu criei a Mônica, em 1963 (ano em que a personagem de Quino nasceu para uma campanha publicitária, apesar de ter estreado mesmo em 1964, data que ele preferia usar). Por isso, nos tornamos irmãos latino-americanos para desbravar o mundo dos quadrinhos. (…) Uma pessoa dócil e um dos maiores desenhistas de humor de todos os tempos. Quino vive agora mais forte dentro de nós”.
Nessa imagem, criada por Maurício de Souza, Mônica e Mafalda estão sentadas num banco branco com lágrimas nos olhos e mãos dadas, ao lado de um globo terrestre coberto com um pano azul e um lápis entre Mafalda e o globo. As homenagens renderam uma exposição virtual no G1 (clique aqui para ver) e a Folha de S.Paulo fez um web stories, que pode ser vista clicando aqui.
Quino faleceu aos 88 anos um dia após Mafalda completar 56. No dia 30/09/2020 o editor do artista, Daniel Divinsky, confirmou a informação do falecimento através das redes sociais e foi amplamente replicado por diversos canais de comunicação. Várias reportagens foram publicadas em homenagem ao cartunista e muitos artistas prestam reverências e reconheceram sua influência em seus trabalhos.
A BBC publicou 6 curiosidades sobre a personagem mais emblemática de Quino. O Correio Braziliense postou vários depoimentos de colegas, amigos e artistas que o admirava. O El País Brasil publicou no mesmo dia pelo menos dois textos relembrando a trajetória e reportando a influência e homenagens ao artista e sua obra e a Fórum relembrou uma das declarações mais polêmicas e impactantes de seu criador sobre a Mafalda: a de que ela não cresceu “porque ela seria uma desaparecida” política da ditadura.
A Biblioo lembrou a relação da Mafalda com os livros e as bibliotecas. Diversas teses, dissertações, artigos e estudos das mais diversas áreas se debruçaram sobre a obra de Quino e acredito que continuarão ainda por muitos anos, tamanha era a complexidade do seu trabalho artístico. Em 2018 o Site da USP postou uma homenagem à primeira tira da Mafalda: confira aqui para ver.
Vida! Arte!
Quino nasceu em 17 de julho de 1932 na cidade de Mendonza, na Argentina. Apesar do receio expresso de Quino, conforme entrevistas, de se fazer uma única coisa a vida toda, Mafalda foi seu personagem mais marcante. Estima-se que Quino tenha publicado cerca de 2 mil tiras. Seus desenhos tinham caráter político, filosófico, humorístico. Quino publicou incontáveis obras e muitas outras foram criadas a partir de seu trabalho. Não teve filhos, mas seus personagens fizeram muitos amigos pelo mundo, de todas as idades e foi até premiado pelo Príncipe das Astúrias.
Mafalda era muito questionadora, por vezes debochada. A personagem foi tão bem construída que muitos de seus leitores imaginavam o que ela faria ou diria sobre certas situações. Ela era fã dos Beatles, tinha posturas feministas e progressivas, não defendia partidos, mas defendia justiça social, gostava de panqueca e era impaciente
“Mesmo que adotasse a defesa de ideais progressistas, Mafalda nunca assumiu posições político-partidárias explícitas e muitas de suas tirinhas são silenciosas, sem uma única palavra, com mensagens que se podem deduzir a partir do próprio desenho, uma das marcas do trabalho de Quino.” Ouça no podcast do programa Noite Ilustrada, da UFMG.
Em 1963 uma agência publicitária encarregou Quino de criar uma tira cômica que deveria funcionar como publicidade “disfarçada” para eletrodomésticos. Os protagonistas deveriam ser uma família de classe média e o nome de um dos personagens precisava se relacionar com o nome da empresa, que começava com as letras M e A, motivo pelo qual foi dado o nome Mafalda. O cliente da agência recusou o plano de campanha e Quino arquivou as tiras. (Toda Mafalda, ed. Martins Fontes, 2010).
A primeira edição da Mafalda foi publicada em setembro de 1964, na revista “Primeira plana”, um dos mais importantes semanários da Argentina, na época (idem). As tiras de Mafalda falam sobre o meio ambiente, cotidiano, filosofia, política, conflitos internacionais, entretenimento e nos fazem refletir sobre diversas questões que poderiam passar despercebidas.
Uma estátua da Mafalda, que mede 80 centímetros e habita um banco em San Telmo, Buenos Aires, é um dos pontos turísticos mais visitados da cidade, desde 2009 e revela a importância da personagem. Mafalda também estampou os mais diversos tipos de materiais, produtos, propagandas e campanhas. Quino também criou os personagens Susanita, Manolito, Felipe, Liberdade, Guille e Burocracia, além de tiras independentes.
Quino deixou um legado e influenciou muitos artistas.
Legado
A cartunista Laerte Coutinho publicou em seu twitter a charge-homenagem com os dizeres “Foi ela, Meritíssimo! – Que me levou a tudo isto!” e abaixo “Quino, mestre” revelando a profunda influência e admiração pelo trabalho de Quino.
Apesar do imenso sucesso após a recusa inicial, Quino nunca ficou rico por seu personagem, mas foi extremamente reconhecido pelo seu trabalho e conseguiu viver confortavelmente. Nem todos têm a mesma sorte e oportunidade.
Conversando com a pesquisadora Jaciara Azeredo, bibliotecária da Biblioteca Nacional, doutoranda da USP com projeto sobre gibiterapia e entusiasta de quadrinhos, charges e afins, como eu, ela me apontou – e eu concordo – que a morte de um grande artista nos faz “refletir sobre como é triste uma perda da qual estamos cientes, mas que existem outras perdas em vida que não sabemos porque a pessoa cansa e desiste e se deixa morrer como artistas. Tipo, não podemos trazer Quino a vida, mas podemos ao menos tentar não permitir a morte da arte daqueles que não tem a sorte que o Quino teve”.
A conversa começou porque, pensando em legado, eu desejei entrevistar alguns artistas vivos e trazer para vocês conhecerem. Depois dessa, não havia mais o que fazer, a não ser por mãos à obra!
Primeiramente lembrei da personagem Renata Tinta, a RêTinta, criação do Estevão Ribeiro. Fui correndo perguntar se ele acompanhava o trabalho do Quino e se alguém mais, além de mim, já fez essa comparação, já que a Retinta também é faladeira e politizada. Estevão me respondeu: “Sim, uma pessoa chamou Rê Tinta de ‘uma espécie de Mafalda preta’. Não acho ruim a comparação, adoro tanto Quino quanto a Mafalda”.
“Você sente alguma influência da Mafalda nas suas tiras, ou suas referências são outras?”, perguntei. Estevão: “Mafalda fez parte das minhas leituras, como Calvin & Haroldo e Garfield, por exemplo. Mas Rê Tinta tem muito mais da Mafalda do que de qualquer outro trabalho que eu tive contato.”
“Que outras referências vivas você gostaria de indicar pros leitores?”. Temos Valu, Marcelo D’Salete, PJ (Péricles Jr.) Anderson Awas. Mulheres temos a Júlia Nunes, Jessica Góes e Negapeta. Estevão também é responsável pela dupla “Os passarinhos”: Hector e Afonso e pode ser encontrado no instagram @estevao.ribeiro ou @renatatinta
Também perguntei ao Cau Luis, o @cartunsdocau no instagram, cujo trabalho acompanho de perto, a opinião dele sobre o Quino e a Mafalda.
Cau Luis respondeu: “Quino foi uma das primeiras referências ‘brancas’ de cartunista. Até por conta dos livros didáticos que tinham tirinhas dele e da Mafalda. Eu tinha até um pdf de ‘Isto Não É Tudo’, que usava como manual rs. Depois surgiram outras referências. Acho foda o trabalho dele, me fez interessar pelo humor gráfico, mas chegou um momento que eu precisava escurecer minhas referências… E quando comecei fazer isso, percebi que muitos artistas são superestimados.”
“Algum trabalho seu se inspira na Mafalda ou em outros personagens do Quino?”, questionei. Cau Luis: “A gente é muito condicionado sobre o que é arte e sobre determinados artistas. Educação não é sempre libertadora. Com o tempo questionei sobre minhas referências e percebi que não eram minhas na verdade. São dos livros didáticos, do Google… São homens, brancos, heteros, classe média… E isso fica implícito nas artes, mas que eu só consegui perceber com o tempo. As tirinhas mudas ou com poucos diálogos são inspiradas no Quino. Algo que acho muito foda passar o recado só com imagens. Foi algo que quando moleque me fascinou.”
“E que outras referências vivas você gostaria de indicar pros leitores?”. Cau Luis: “Eu atualmente curto muito os trabalhos dos cartunistas e quadrinistas Junião, Ribs, Allison Afonso, La Cruz, Laura Athayde, Bruna Bandeira (Imagine e Desenhe), Estêvão Ribeiro (Rê Tinta), Letícia Pusti, T. S. Carmo, Silvano Mello… Tem mais. Mas como estamos conversando sobre cartum e quadrinhos é isso.”
Perfis do Cau Luis @cauluis.art e @cartunsdocau
Não posso deixar de citar que há cerca de um mês a pesquisadora Natália Sierpinsk compartilhou, na plataforma “Mina de HQ”, uma lista de 120 artistas negras para conhecer.
Finalizo com a citação da minha amiga-pesquisadora-nerdtrekker Jaciara:
“Só precisamos estar abertos a conhecer artistas para além dos que nos chegam pelas divulgações de perfis mais hegemônicos que nos trazem ‘o que já deu certo’”. (Jaciara Azeredo, 2020).
É isso. Bora prestigiar artistas vivas e vivos também, sem deixar de reconhecer os legados deixados!
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