Quando Stephen King rabiscou as primeiras linhas de “Carrie”, ele trabalhava na lavanderia montada no pequeno trailer em que morava com a mulher e os dois filhos. Na época, a família King tinha pouquíssimo dinheiro e muitas necessidades. Stephen King economizava no uso do papel, já que não havia recurso para compra de folhas extras, e Tabitha, sua esposa, costumava pedir com gracejos sérios: “Depressa, pense em um monstro”, quando algum dos filhos do casal ficava doente e precisava de medicamentos ou consultas médicas.
Naquela época, as editoras rejeitavam continuamente as histórias de suspense enviadas por King, deixando-o frustrado e desanimado. Em 1972, amargurado com as negativas do mercado editorial, Stephen King joga fora os originais de ‘Carrie’, uma trama de causar arrepios sobre uma garota com poderes telecinéticos. Tabitha o convence a recuperar a obra descartada e tentar mais uma vez. Foi nesse golpe de sorte que King lançou para o mundo o que viria a se tornar um clássico do terror sobrenatural.
“Carrie, a estranha” surgiu da fusão de duas garotas que marcaram o passado do autor: esquecidas e taxadas como ‘estranhas, diferentes’, as meninas foram excluídas do convívio social escolar e tiveram fins trágicos: uma cometeu suicídio no porão de casa e a outra morreu vítima de uma convulsão. Essas mortes precoces desmascaram, de forma velada e depois direta, o poder maléfico do bullying, palavra desconhecida na época, mas que define a violência física e psicológica sofrida dia após dia por essas – e muitos outros – adolescentes.
Estamos na década de 1970, no coração morto de Chamberlain, pequena cidade norte-americana. A jovem Carrie White, de 17 anos, vive sofrendo zombarias e agressões dos colegas da escola e da própria mãe, uma fanática religiosa que inflige à filha todo tipo de violência física e psicológica. Presa dentro do próprio mundo, Carrie descobre que nasceu com dons telecinéticos, o que a torna capaz de movimentar objetos apenas com a força do pensamento.
Solitária e esquecida, a jovem passa por um dos maiores vexames de sua vida quando, no vestiário feminino, percebe que está sangrando e, sem saber que se trata da menstruação, entra em desespero. Nesse momento, ao pedir ajuda, Carrie é vítima do escárnio generalizado das colegas de turma e, por um segundo, consegue queimar uma das lâmpadas do banheiro ao entrar em choque. Amparada pela professora de educação física, a menina é enviada para casa. Chegando lá, Carrie é espancada pela mãe, que associa o período menstrual ao início da luxúria e depravação. Margaret White é uma mulher seriamente perturbada, viúva e completamente obcecada pela chegada do Apocalipse. Desde criança, Carrie sobrevive aos ataques de fúria e insanidade da mãe, fator decisivo para que a menina desperte precocemente seus poderes sobrenaturais – associados pela mãe à bruxaria e ao demônio.
Convidada por um garoto popular do colégio para ir ao baile de formatura, Carrie fica receosa, mas aceita. O garoto em questão é namorado de Sue Snell, uma das alunas que zombou de Carrie no vestuário, mas, arrependida, decidiu reverter a maldade que fez. Pediu ao então namorado que convidasse e acompanhasse a jovem tida como esquisita, levando-a ao baile em seu lugar. O rumo dos acontecimentos seguiria em perfeita e harmônica redenção se uma das alunas populares, totalmente enfurecida e odiosa em relação à Carrie, não elaborasse um plano maquiavélico para acabar com a alegria da “esquisita”.
Esse cenário de dor, mágoa e horror desperta em Carrie uma fúria destruidora que arrasa a cidade inteira, transformando-a em um verdadeiro cemitério. No thriller, King dá vida a uma garota devassada pelo ódio, alimentado anos a fio por tudo e todos ao seu redor, acrescido de uma dose altíssima de solidão. Com a narrativa intercalada por notícias, trechos de livros, conferências, depoimentos e laudos médicos, o livro “Carrie, a estranha” é considerado um dos clássicos do gênero, responsável por abrir as portas do reconhecimento a Stephen King. Além disso, a ficção discute, despretensiosamente, a “noção de normalidade e anormalidade” ao apresentar o dia a dia de uma garota ridicularizada pelos pares por se vestir diferente, ter rituais diferentes e se comportar de forma diferente. Dentro da ótica reflexiva, o livro de King reflete o peso da diferença em grupos que se julgam iguais, onde a carnificina da estigmatização é capaz de transformar seres humanos em poeira invisível, sem autonomia ou subjetividade.
Como figura metafórica, Carrie White é uma espécie de “bumerangue”, criado a partir da corrente de raiva, violência e discriminação de nossa sociedade, gerando um vai e volta infinito. O assédio em idade escolar é capaz de provocar tragédias inimagináveis, gerando indivíduos com extremo desejo de vingança, recorrentes pensamentos suicidas ou homicidas, com a autoestima destruída e profundo sentimento de solidão.
Os “anjos maus”
Entre os anos de 2013 a 2016, o número de casos de bullying cresceu consideravelmente no Brasil. Segundo pesquisa do IBGE divulgada em 2016, 2 em cada 10 estudantes já praticou bullying no país. De acordo com os dados, a aparência física e a intolerância com as diferenças são os principais motivos de exclusão e violência. A questão já é tratada no país como caso de saúde pública, necessitando de ação e conscientização por parte de familiares, educadores, governo e toda a sociedade.
Resgatando algumas memórias pessoais, lembro de ter sido vítima de bullying – quando o nome ainda não era associado ao ato – nos primeiros anos de idade escolar, ainda na alfabetização. Por ter notas altas, falar pouco e ser tímida, algumas colegas de sala não sentavam perto de mim ou conversavam comigo, alegando que eu era “chata e diferente, que eu só queria aparecer”. Mesmo professoras, sabendo que eu não me relacionava bem com dois outros colegas de sala – por serem meninos extremamente agressivos e com problemas de relacionamento – me colocavam para sentar perto deles por eu me recusar a sentar próximo das minhas agressoras, o que acabava gerando uma crise de choro. No ensino fundamental, continuei carregando a “cruz do bullying” ao ser caricaturizada por colegas de sala em uma cadeira, com o rosto tomado por espinhas, dois chifres, asas e segurando um tridente na mão, com os dizeres: “C.D.F, santinha do pau oco!” Apenas na quinta série do ensino fundamental, já em outro colégio e com uma nova mentalidade, consegui me livrar do fantasma da “maldade em idade escolar”.
Assim como eu, muitas outras pessoas têm depoimentos dolorosos – e muito mais chocantes – sobre as agressões físicas e verbais que sofreram. É o caso de Domenico*, hoje com 34 anos, que diz ter sido “jogado por colegas na piscina da escola. Depois, colocaram lama na minha mochila e me esbofetearam na cara. Foi um período bem difícil”, relata. *Janaína e *Suellen, hoje casadas e com 29 e 30 anos, respectivamente, eram namoradas desde o ensino médio e também sofreram violência física e verbal: “Chamavam a gente de sapatão, cuspiam… Mais de uma vez, derramaram suco de uva em nossos livros e cadernos, e até mesmo empurravam e batiam na gente na fila do lanche… Nossa, nem vale mais a pena lembrar”, relatam, emocionadas.
Os depoimentos são inúmeros e retratam um problema antigo que precisa, antes de tudo, de atenção e diálogo. “As reflexões, os diálogos abertos e a participação da família e da sociedade são elementos chave na luta contra o bullying”, destaca a psicóloga Rafaela Torres, especialista em Terapia Familiar. Segundo ela, é essencial que o estudante vítima de agressão tenha o suporte da família e de pessoas queridas, além do espaço para conversar com a confiança de que terá o apoio e a compreensão necessários para poder compartilhar seus sentimentos. “Também é preciso ter força e estímulo para enfrentar a situação, que não é fácil. É importante ter em mente que esses passos são realizados aos poucos, em um processo de conscientização geral, pois não é logo no começo que essas marcas e os traumas se apagam da mente de quem sofre esse tipo de violência”, declara.
O estranho poder da mente
Além da violência verbal e física, “Carrie, a estranha” traz à tona a capacidade de desenvolver poderes telecinéticos, que consiste em mover objetos apenas com o poder da mente. O fato ainda não foi comprovado pela comunidade científica, que continua estudando – com recursos limitados – a possibilidade da existência de tal fenômeno. Para escrever o romance, Stephen King se baseou em um artigo que leu na revista Life, sobre um caso de atividade poltergeist em uma casa de uma pequena cidade suburbana. Na época, a situação foi desvendada e atribuída à menina que morava na residência, já que os objetos só voavam quando ela estava no local.
No entanto, um caso curioso de psicocinese é atribuído à Nina Kulagina, uma dona de casa russa que, dizem, conseguia levantar objetos à distância, utilizando o poder da mente, além de ter acesso ao poder da clarividência e levitação. Durante vinte anos, Nina foi submetida a um batalhão de pesquisas encabeçadas pelos cientistas da antiga URSS, e acabou morrendo de ataque cardíaco.
Stephen King não faz menção ao caso de Nina ou a qualquer estudo do gênero. Resta ao leitor e sua mente – lógica ou imaginativa – decidir se acredita na existência de “Carries” ou declinar o convite, preferindo assistir ao filme de 1976, estrelado por Sissy Spacek, Piper Laurie, Amy Irving, William Katt, Nancy Allen e John Travolta nos papéis principais. Sem dúvida, a melhor versão cinematográfica para a obra.
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