Manifeste-se aquele(a) que nunca ouviu falar em biblioteca!
Muito já se falou neste periódico, e em tantos outros, sobre a importância das bibliotecas em diversas áreas na vida social, na construção de relações interpessoais, dentre outras benesses. Neste texto que vos apresento, quero discutir de maneira embrionária a relevância das bibliotecas na consolidação da democracia e na elevação da participação popular nos espaços de poder onde se tomam decisão que atingem milhões de indivíduos ao mesmo tempo.
Sem chance de haver dúvidas, sabe-se que a instituição biblioteca remonta de tempos pretéritos. Destarte, é de conhecimento amplo as transformações que ocorreram ao longo dos tempos nessa instituição. De local em que se guardou o saber produzido no mundo antigo, e com uma gama de suportes informacionais, sobretudo dos reinos animal (pergaminho), vegetal (papiro) e mineral (tábuas de argila), passando por uma peculiaridade de ser um local que abrigava pessoas selecionadas (clérigos e nobres), chegando a ser um braço da divulgação da ciência (bibliotecas universitárias da Idade Média), as bibliotecas passaram a ser um espaço de promoção da cultura e do conhecimento no século XIX, visando consolidar regimes com maior participação popular, particularmente na Inglaterra e nos Estados Unidos da América.
Anuncio aos desavisados, que porventura me leem neste texto, que a biblioteca não é um lugar neutro! Com isso, a bem da verdade, não quero dizer que a biblioteca precisa reverberar as subjetividades pessoais de quem trabalha nela. É preciso ter uma normativa pré-estabelecida para viabilizar a dinâmica organizacional de uma biblioteca, superando, assim, as inclinações religiosas, filosóficas, identitárias etc. dos profissionais, o que chamamos comumente de política de formação e desenvolvimento de coleção, algo que já ficou exposto no meu último texto publicado aqui.
Subjetividades pessoais superadas, é assaz necessário entender a força que uma biblioteca exerce sobre os frequentadores, a comunidade em que ela se encerra, e toda a sociedade que, de forma direta ou indireta, é alcançada pela biblioteca. Essa força da biblioteca, por tudo aquilo que ela representa, foi entendida por agentes sociais da Inglaterra do século XIX, bem como por agentes sociais dos Estados Unidos da América no mesmo século. Não se afirma aqui que em outras sociedades espalhadas pelo mundo a biblioteca não teve igual ou maior força; optou-se por escolher esses dois países pela particularidade que a biblioteca teve em cada um, tendo como elos de ligação apenas o século e a instituição biblioteca.
A Inglaterra do século XIX é o local em que inúmeras transformações no tecido social foram idealizadas, e não apenas, muitas ideias foram de fato realizadas. A questão social se fazia presente nesta sociedade que conviveu com rápidas e intensas transformações, sobretudo no modo de produção que passou do manual para o industrial, alcançando cifras e mercados antes não conhecidos. Já em meados do século XVIII, por ocasião da criação do Museu Britânico, já se havia uma preocupação com a biblioteca do museu, que depois se separou e virou a Biblioteca Nacional Britânica.
Em um ambiente de profundas transformações sociais, milhões de ingleses estavam mergulhados na mais flagrante pobreza, diversos conflitos de classe deflagrados e uma clara ruína econômica, o movimento que visava à instalação de bibliotecas públicas na Inglaterra ganhou força e coro, uma vez que membros das elites progressistas britânica entendiam que a educação das camadas populares era de boa valia para o desenvolvimento social e econômico a reboque.
Projetos foram apresentados ao parlamento britânico, em vistas a fomentar representações nesta casa das camadas menos abastadas, o que foi recusado pela elite política conservadora daquele país. Todavia, expoentes do pensamento liberal, como Stuart Mill e outros, entendiam que a população instruída no que tange a educação, era o que depois seriam os indivíduos atuantes na sociedade e consumidores ávidos, contribuindo com a agenda da dinâmica capitalista tão difundida no país das “Duas Rosas”. Como se vê, a biblioteca na Inglaterra foi fator preponderante para uma maior participação social no regime econômico vigente até os dias de hoje.
Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, o país que tem na união entre os estados a sua força motriz, e que, da condição de colônia inglesa até fins do século XVIII, passa a ser uma potência mundial no primeiro quarto do século XX, às bibliotecas sempre tiveram um papel fundamental na organização social estadunidense, bem como na própria história desta nação.
Como até hoje a questão da democracia é algo muito caro para a sociedade dos Estados Unidos da América, a construção de uma consciência nacional coletiva, que contasse com pilares sólidos, visando à consolidação do regime em que imperasse a lei formulada na vontade da maioria, passou pela idealização de espalhar bibliotecas públicas por todos os estados que juntos formam o país.
Foi à biblioteca pública que mais ajudou a construir os cânones da democracia estadunidense, e até hoje ajuda na fomentação de políticas que visam o fortalecimento da democracia como regime balizador. É nos Estados Unidos da América que foi criada e fica a sede da American Library Association (ALA), uma das associações profissionais das mais atuantes da área de biblioteconomia, e que fomenta diretrizes para os profissionais com alcance global. As bibliotecas são tão importantes nos Estados Unidos da América, que todos os ex-presidentes, depois de dois mandatos, têm direito a ter uma biblioteca pública construída em sua homenagem.
Da mesma forma que na Inglaterra a biblioteca foi uma instituição primordial na promoção dos agentes sociais das camadas mais pobres junto ao sistema regulado pelo mercado, e nos Estados Unidos as bibliotecas ajudaram (ajudam) a consolidar o regime democrático, acredito que no Brasil não seria muito diferente, desde que houvesse um olhar mais preocupado com as questões necessárias para a consolidação de uma identidade nacional em que a educação tivesse papel preponderante.
No mês em que se celebra o dia do bibliotecário e da bibliotecária, quantos questionamentos nós não deveríamos fazer sobre nossa atuação social, enquanto agentes que lidam constantemente com demandas do campo informacional?! Conforme já citado neste texto, a biblioteca não é um ambiente neutro; nada na sociedade é neutro, principalmente em sociedades democráticas. Há disputas sendo travadas amiúde.
Para além de apenas mostrar o que se foi feito em outros lugares, é preciso que trabalhemos para que as bibliotecas tenham maior visibilidade em nossa nação e, sobretudo, atraiam frequentadores que saibam da sua importância enquanto aparelho que fomenta cultura, educação e conhecimento. Que nossas bibliotecas sejam verdadeiros faróis que emanam conhecimento, sabedoria, afabilidade… Por mais bibliotecas que auxiliem na manutenção da democracia brasileira, tão ameaçada nos últimos tempos, aqui estamos!
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