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William Okubo: uma entrevista com o diretor de comunicação da ABRINFO

RIO – Paradoxal ver um jovem bibliotecário com tanta experiência. Tendo passado por enumeras instituições desde os tempos de estágio, William Okubo atuou como bibliotecário na famosa Biblioteca Mário de Andrade, na capital paulista, a qual acaba de deixar para se dedicar a um novo projeto. Aliás, projetos para se dedicar é o que não falta a Okubo que nesse momento também participa da Associação de Profissionais da Informação (ABRINFO), da qual participou da fundação e onde ocupa o cargo de diretor de comunicação: “Muita gente vê os movimentos atuais e está ‘pagando para ver o que acontece’ ao invés de ajudar a fazer acontecer.”

Emília Sandrinelli: Como foi sua trajetória na área de Biblioteconomia?

William Okubo: Tudo começou no Departamento de Biblioteconomia da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e posso dizer que se trata de uma trajetória quase que totalmente construída nas bibliotecas públicas da cidade de São Paulo. Entretanto, os estágios nas bibliotecas especializadas do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo e na Coordenadoria de Executiva de Cooperação Universitária e de Atividades Especiais da Universidade de São Paulo, foram muito importantes para a aquisição, em serviço, de conhecimentos e habilidades ligadas à Tecnologia da Informação (TI). Foram nestes locais onde efetivamente trabalhei com bancos de dados (Microisis, Access e até o pouco conhecido Folio Views), também utilizei a Internet a trabalho pela primeira vez e pude conviver com vários outros profissionais não bibliotecários, principalmente da área de tecnologia da informação. Essa experiência em TI foi muito importante, pois depois de formado, fui trabalhar nas bibliotecas públicas de São Paulo no final de 2001, época em que praticamente não existiam computadores nas bibliotecas e o conhecimento adquirido na área de TI foi muito importante em várias situações adiante. Por isso posso dizer que é preciso aproveitar cada momento de nossa jornada profissional, pois não sabemos o que pode cair em nosso colo depois, mesmo que, como aconteceu no meu caso, fui trabalhar em área totalmente diversa daquela onde realizei os estágios.
Parêntesis inicial feito, não tenho dúvida alguma em dizer que trabalhar em bibliotecas públicas é incrível, mesmo em um país onde historicamente, tirando alguns momentos específicos ocorridos aqui e ali, essas instituições tão importantes para a sociedade, seja do ponto de vista cultural, educacional ou informacional, foram e são geridas com extremo descaso e desleixo, seja pelos governantes de plantão e até mesmo pelo profissional que deveria defendê-la com unhas e dentes: o bibliotecário.
Na cidade de São Paulo, o primeiro desafio foi ser bibliotecário de referência nos Ônibus-Bibliotecas, ônibus que por sinal em meados de 2001 estavam todos quebrados e que só foram consertados no final de 2002. Naqueles primeiros meses o que funcionava era uma Kombi (também caindo aos pedaços e que algumas vezes foi substituído por veículo da bibliotecária responsável pelo serviço) que nos levava aos bairros da periferia com três caixas de livros infantojuvenis, adultos e didáticos/paradidáticos, estes últimos sempre com alguns títulos solicitados na visita ao roteiro na semana anterior. Em ambiente tão precário, o serviço só não foi interrompido pela dedicação da equipe que durante vários anos trabalhou em tal situação, pois o trabalho em si era muito estimulante, ainda mais para um profissional como eu que havia nascido na periferia (Brasilândia, zona norte) e crescido em uma cidade dormitório (Barueri) da região metropolitana de São Paulo e sabia que o acesso à cultura e informação nessas regiões era muito precário. Nesse trabalho vi na prática pela primeira vez a tal função social do bibliotecário.
Pouco tempo depois, tive que me transferir para a diretoria da Biblioteca Infantojuvenil Monteiro Lobato. E mais uma vez a precariedade nos desafiava, apesar de ser uma instituição na época com quase 70 anos. No caso, o problema ia para além dos equipamentos. O problema era e continua sendo a falta de pessoal suficiente para todas as atividades possíveis de serem realizadas em uma biblioteca voltada para crianças, adolescentes e jovens e principalmente a falta de estímulo para a maior parte da equipe, além da falta de recursos geridos diretamente pela própria biblioteca e não concentrado na direção geral do Sistema Municipal de Bibliotecas.
Durante minha passagem pela diretoria conseguimos alguns pactos internos para estimular a equipe, algo que infelizmente não durou muito tempo, pois havia questões estruturais que não puderam ser atacadas antes do término da minha presença ali. Outra experiência interessante foi poder administrar por praticamente três anos parte do orçamento da Biblioteca (mérito da diretora anterior, a Silvana Mattiazzo Casella). Nesses anos foi possível desenvolver atividades totalmente voltadas para a comunidade e usuários da instituição, além de realizar as atividades organizadas pelo Sistema de Bibliotecas e isso fez muita diferença, seja no ânimo da equipe, que passou a ter mais autonomia e a se sentir ouvida, como para o próprio gestor pensar em planejamento. Foi nessa época que foi possível montar uma sala para exibição de filmes com equipamentos integrados (rack com hometheater, DVD player, um projetor multimídia, tela retrátil e caixas de som da Jamo), além de adquirir um kit de som móvel para apoio na realização de eventos externos e principalmente para investir em exposições interativas (foram realizadas várias), contratação de escritores e ilustradores de livros infantojuvenis, oficineiros e contadores de história que realizaram atividades para os usuários e também para atualização dos funcionários. Infelizmente, pouco tempo depois, com a famigerada “mudança de governo” aquela pequena fatia de orçamento deixou de ser gerida diretamente pela Biblioteca e logo depois me transferia para outra Biblioteca, a Mário de Andrade.

E. S.: Você atuou como bibliotecário na Biblioteca Mário de Andrade. Pode nos contar foi é essa experiência? Qual é o papel dela na comunidade local?

W. O.: Quando cheguei na “Mário” a situação não era diferente das vivida na Monteiro Lobato. O fantasma real da precariedade habitava (e de certa forma ainda habita) aquela “casa” de quase 90 anos. E pior, os problemas ali eram em escala muito maior, mas eu era apenas novamente um bibliotecário de referência e aos poucos fui percebendo o tamanho da encrenca. Se o prédio estava com vazamentos e rachaduras, não se podia elogiar o mobiliário, também em pedaços, situação que colocou mais uma vez o acervo em risco. Sem contar a falta de público em alguns setores, desatualização do acervo a inexistência de uma estrutura organizacional condizente com o tamanho do edifício, com o acervo existente e os serviços prestados. Apesar de muitos colegas de outras bibliotecas sempre me dizerem que a Mário sempre foi privilegiada, ela sofria do mesmo problema que o Ônibus-Biblioteca, a Biblioteca Monteiro Lobato e todas as outras bibliotecas ramais da cidade de SP, e ouso dizer do restante do país: faltava a ela ser INSTITUCIONALIZADA. E o que quero dizer com esse palavrão?
Somente a partir do momento que participei (mais por estar no lugar certo, na hora certa, do que por experiência) da reforma e modernização do edifício, da transformação da Biblioteca Mário de Andrade em um Departamento da Secretaria Municipal de Cultura, situação que permitiu que ela voltasse a ter um orçamento próprio e finalmente ter aprovado um Projeto de Lei que criava uma nova estrutura organizacional é que foi possível iniciar o processo de recuperação pelo qual a instituição passa.
Durante essa fase toda de transformações creio que aprendi bastante. Algumas vezes errando, mas acertando bastante, principalmente quando ouvia mais do que falava. Dentro do possível, como coordenador de uma área técnica e depois como supervisor de acervo, somente conversando, e nem sempre apenas concordando, com todos – de pessoal da limpeza, passando por vigilantes, auxiliares (transformados nos últimos anos em desprezíveis siglas: AGAP ou AGPP), bibliotecários e outros profissionais com formação superior – foi possível elaborarmos diagnósticos de cada área, e em seguida, passo-a-passo, atacamos problemas de toda ordem.
Finalmente comprovei que a escolha por parte do corpo diretivo da Biblioteca de atuar promovendo a participação da equipe, mesmo em uma estrutura altamente hierarquizada e com vícios típicos das repartições públicas, foi o que possibilitou reatar laços da Mário com a comunidade. De nada adiantaria um prédio reformado, equipes maiores e mais recursos, sem um plano de trabalho (algo que deixou de existir por um bom tempo devido à falta de pessoal e de cobrança mútua) e entusiasmo da equipe para cumpri-lo.
A resposta da comunidade teve início com a abertura da Biblioteca Circulante em julho de 2011. Desde sua abertura, os números nos impressionam e destaco o seguinte: de média de 70 empréstimos/dia em 2006 para 250 em 2012, totalizando 77.681 livros emprestados e outros 101.332 consultados. Tais números só são possíveis por que:
– a Biblioteca passou a comprar mais livros, algo que só foi possível otimizando processos de aquisição direta das editoras e criando edital para aquisição via modalidade Pregão para aquisição de livros de editoras pequenas, solicitados por usuários (independente da editora), lançamentos e obras ligadas à programação cultural;
– a área de Tratamento da Informação (catalogação, indexação e etiquetagem) além de ter sido praticamente recriada e de ter o número de profissionais ampliado passou a ter metas de produção (semanais, mensais e anuais) e chega a enviar, em algumas semanas, mais de 100 livros novos para as estantes das áreas de atendimento;
– o pessoal das áreas de atendimento promove exposições de destaques de acervo e realiza a tarefa mais importante da biblioteca: se desdobra na mediação de leitura e informação, seja no atendimento presencial como no virtual;
– a equipe de Ação Cultural, voltou a trabalhar integrada com as equipes ligadas ao Acervo e Atendimento, contribuindo para a formação de público e para trazer novos usuários.
Ainda falta muito para que a Comunidade, além de ser atendida, passe a participar ativamente da gestão da Biblioteca Mário de Andrade, mas o primeiro passo foi dado, que é prestar serviços com qualidade mínima à população. Para ampliar essa participação está sendo implantado um Conselho Consultivo, onde haverá a participação de funcionários, membros da diretoria e da Secretaria Municipal de Cultura, usuários e representantes do mercado editorial e cultural, além disso, é fundamental que a Associação de Amigos da Biblioteca se fortaleça e tenha maior participação de usuários, algo que sempre é colocado em voga, mas que ainda não veio ocorrer porque ainda há a sensação de que tal organização tem que ser ligada ao diretor vigente e não um espaço que deve ser ocupado por qualquer cidadão, concorde ele ou não com a diretoria vigente.

E. S.: A atuação dos bibliotecários está sempre ligada à educação, às vezes direta, às vezes indiretamente. Qual é, na sua opinião, o papel da biblioteca e do bibliotecário no contexto da greve e do movimento dos professores que estão acontecendo atualmente?

W. O.: Acredito que os bibliotecários devem apoiar e participar deste movimento, mas não só deste que ocorre no Rio de Janeiro e em menor escala em São Paulo, mas de quaisquer profissionais que sejam, principalmente daqueles ligados à educação e cultura. É preciso que o bibliotecário, que é uma categoria profissional com poucos membros, se alie a esses profissionais não apenas para defender seus direitos, mas principalmente em busca de melhorias efetivas nessas áreas, mudanças que afetarão positivamente as bibliotecas escolares e públicas, uma vez que qualquer revolução educacional passa necessariamente pela obtenção e circulação de informações, e as bibliotecas deveriam ser esse espaço privilegiado. No contato com outros profissionais podemos dar a conhecer nosso fazer educacional e apreender melhor o fazer educacional dos professores. Devemos lutar para deixar para trás a velha rixa bibliotecário vs professor.

E. S.: Você é um profissional politicamente engajado na área, inclusive fazendo parte da recentemente criada Associação dos Profissionais da Informação (ABRAINFO). Quais são as suas expectativas sobre a Associação? Que trabalho você desenvolve nela atualmente?

W. O.: Minha expectativa sempre foi grande, pois participei das discussões desde o início delas em meados de março de 2012 quando o Briquet de Lemos lançou a seguinte pergunta em um Grupo de Discussão: “porque não temos uma associação nacional de bibliotecários?” A discussão que se seguiu, e que durou algumas semanas e centenas de e-mails, acabou migrando para o Facebook até chegar a uma associação de profissionais da informação. Isso aconteceu porque todos perceberam, ou acho que percebem, que é preciso desenvolver as áreas onde esses profissionais atuam, principalmente nos campos onde estão localizados: bibliotecas, arquivos e museus, mas não só eles. Temos, por exemplo, uma Lei de Acesso à Informação, criada que eu saiba à revelia destas instituições e profissionais e que em muitos lugares é tocada muitas vezes por pessoal que não possui os conhecimentos que conhecemos. As bibliotecas, principalmente as públicas e escolares, em geral, mas não todas, ainda estão em uma espécie de limbo do tempo sem acompanhar os avanços atuais ou sequer existem de fato, como acontece em algumas cidades e escolas país afora. Algumas bibliotecas universitárias de instituições privadas enfrentam sérios problemas também. Em relação aos arquivos, conforme percebi participando de dois encontros da Rede Memorial (http://www.redememorial.org.br) chega a ser pior que em bibliotecas segundo palavras de gestores dos mesmos.
Há mil problemas e não só nas áreas que citei, e como na resposta acima. Acredito que só unindo esforços será possível pressionar os governantes em todas as esferas de governo, não se esquecendo de sensibilizar toda a sociedade, outro desafio imenso!
Mas para isso tudo acontecer, primeiro é preciso sensibilizar os profissionais e isso não é fácil, pois enfrentamos o descrédito e a falta de participação. Muita gente vê os movimentos atuais e está “pagando para ver o que acontece” ao invés de ajudar a fazer acontecer. Outros dizem: mais gente querendo pegar nosso dinheiro, já não basta o CRB?
E não é só a ABRAINFO que se movimenta. A FEBAB mudou seu estatuto e está aceitando filiações de profissionais de Estados que não possuem sua associação local. Em São Paulo, um grupo (eu participei das discussões) criou uma nova Associação de Bibliotecários para tentar reocupar o lugar deixado pela saudosa APB – Associação Paulista de Bibliotecários, destruída pela incompetência de alguns e pelo comodismo de muitos (eu inclusive) que não lutaram pela sua sobrevivência até as últimas conseqüências.
Na ABRAINFO estou diretor de Comunicação e, por isso, minhas responsabilidades nesse momento de consolidação (apenas em Setembro conseguimos finalmente registrar a associação, criar o CNPJ, abrir uma conta corrente etc.) estão ligadas principalmente à manutenção do site e postagem de informações novas nele e também nas redes sociais, principalmente no Facebook.
Em relação ao site, escolhemos o CMS Drupal e ele foi criado por um especialista contratado por nós. Criamos um grupo de apoio provisório que fez várias sugestões, mas como ainda faltam alguns ajustes, principalmente a possibilidade de filiação e pagamento automático da anuidade via Internet e a escolha de um projeto de Comunicação Visual, ele está meio parado. Mas a idéia é que tenhamos uma equipe trabalhando em seu desenvolvimento contínuo e se algum leitor da Biblioo se interessar em colaborar é só me procurar.

E. S.: Você tem se tornado um cronista da cidade de São Paulo através de suas Redes Sociais. Quais os aspectos que mais te chamam atenção na cidade? Você pode nos contar alguma situação que mais lhe marcou?

W. O.: Como muitos paulistanos, eu tenho uma relação de amor e ódio com a cidade de São Paulo. Mas deixando de lado esse lugar comum, o que mais provoca inquietação e gera os textos são as pessoas, a forma como elas se relacionam entre si e com a própria cidade. Essa variedade de tipos humanos e o que presencio é algo surpreendente, pois em questão de minutos eu posso cruzar com uma garota que provavelmente mora em algum lugar bacana em Pinheiros lendo dentro do ônibus “O jogo da casa de vidro” do Hermann Hesse e logo em seguida, ver sentado em plena Avenida Paulista um morador de rua lendo o livro “Poemas” do Rainer Maria Rilke. Ou seja, não importa a situação, ambos devem curtir boa literatura, o que demonstra que apesar das diferenças e injustiças sociais, não queremos só comida ou luxo, queremos algo mais. Sinto que a cidade conta suas histórias via comportamento das pessoas, através do abandono ou mesmo em intervenções típicas da região central como as grades de aço retorcido ou pontiagudos em portas e muretas, além de luzes de emergência acesas somente à noite, instalados em frente de lojas apenas para evitar que pessoas em situação de rua durmam à noite em frente delas.
Uma das situações mais marcantes que vivi em São Paulo foi fruto de um ato inconsequente. Eu morava próximo à Praça da República, e aproveitando uma saída noturna para “jantar” um pedaço de pizza na Casa Aurora (uma padaria localizada na malfadada Rua Aurora, rua bastante lembrada por abrigar várias boates e cinemas eróticos). Depois de comer não um pedaço de pizza, mas dois, decidi não voltar direto para casa pelo famoso cruzamento da Avenida São João com Ipiranga. O caminho alongaria em cinco ou seis quarteirões minha caminhada, mas naquele momento me esqueci que ainda imperava a bagunça provocada pela operação higienista da Polícia Militar iniciada em janeiro de 2012 com o intuito de acabar com a “cracolândia”. Apesar de já terem passado mais de 20 dias da operação inicial, a caçada inútil continuava.
Dois quarteirões depois da minha saída da padaria me deparei com um grupo enorme de pessoas vindo em minha direção. Pego de surpresa, apenas me encostei em um portão de aço e vi uma das cenas mais deprimentes e amedrontadoras que já presenciei: no meio da turba cambaleante de irmãos meus que em sua maioria já não usavam roupas, mas verdadeiros trapos, ouvi choro, gritos e xingamentos contra os policiais. E naquele estado de irritação nem eu escapei, pois um deles parou, me olhou e gritou: “o que você quer?” Paralisado que estava, apenas representei o papel de machão-amedrontado, conseguindo falar apenas: “só ‘tou’ aqui”. Finalmente, junto com os últimos maltrapilhos vieram os policiais, sossegados dentro de seus carros.

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