A Biblioteca Mário de Andrade é a maior biblioteca pública do estado de São Paulo, e a maior do gênero no país, sendo superada apenas pela Biblioteca Nacional. Seu interior possui diversos ambientes e os mais incríveis acervos que nos levam a conhecer o mundo. Em sua estrutura, como espaço de biblioteca, possui os acervos: 1) circulante, 2) artes, 3) coleção São Paulo, 4) coleção Geral, 5) mapoteca, 6) hemeroteca e as 7) obras raras.

Cada qual com suas especificidades e público específico, mas aqui irei falar sobre como foi estagiar dentro da seção circulante, o espaço com maior fluxo e leitores diversos que uma biblioteca pode ter. Infelizmente, devido a pandemia grande parte deste período ocorreu de forma remota, mas o tempo que pude ir ao presencial foi o suficiente para conhecer pessoas que ficarão em minhas memórias e carreira enquanto profissional bibliotecário.

Em setembro de 2019 recebi a ligação com a notícia de ter sido selecionado para estagiar na Biblioteca Mário de Andrade, eu nem soube como reagir, para a maioria dos frequentadores de bibliotecas e estudantes de biblioteconomia, a Mário de Andrade é um ícone.

Ao passarmos em seus portões ficamos deslumbrados com seu tamanho, estrutura tão impotente e trabalhar ali acaba se tornando um sonho que eu felizmente pude viver. Já em meus primeiros dias, estando no balcão de atendimento no período da manhã, pude conhecer pessoas que me fizeram entender mais ainda o que significa ser um bibliotecário, qual é a nossa função estando dentro de uma biblioteca e o que devemos fazer para acolher os mais diversos públicos sem distinção.

Uma das primeiras pessoas com quem tive a honra de conversar foi o Seu João, frequentador assíduo da biblioteca. Toda semana ele estava por lá para ler, ou melhor, ouvir os seus livros. Digo isso porque o Seu João é um senhor com deficiência visual e um usuário nato do leitor de livros Orcam My Eye que, para quem não conhece, é um leitor visual que permite que deficientes visuais possam compreender textos e objetos por meio de feedback de áudio.

Seu João ia até a biblioteca pelo menos duas vezes por semana, estava sempre lendo obras nacionais, amava Clarice Lispector. Durante suas idas sempre tirava uns minutos para conversar conosco no balcão enquanto arrumamos o equipamento. Estava sempre disposto a ouvir e falar, curioso sobre nosso dia a dia, procurava uma companhia, nem que fosse por algumas horas do dia. Ele é uma pessoa em situação de rua, morador de casas de acolhimento e encontrou na biblioteca uma outra forma de acolhimento humana e cultural. Nos levava até um chocolate como agrado! E não é essa uma das funções das bibliotecas? Receber a todos e confortá-los em meio aos livros e pessoas diferentes de você, mas que ali estão de igual para igual.

Outro senhor que também era um grande frequentador era o Marquinhos. Sendo uma pessoa com deficiência intelectual, tinha o costume de ir à biblioteca pelo menos 1 vez por mês devolver e realizar o empréstimo do mesmo livro, um livro didático que sempre estava com ele. Ao chegar na biblioteca nos cumprimentava com rimas carinhosas de nossos nomes com palavras bonitas. Sua presença era sempre marcante e foi de uma grande vivência poder conhecê-lo.

Um outro tipo de leitoras que eu amei compartilhar alguns momentos são senhoras que possuem um gosto por autores com grandes coleções, do suspense ao romance. Por exemplo, a Dona Maria estava mensalmente na biblioteca em busca de novos livros dos Sidney Sheldon e comentava o quanto gostava de um bom suspense. Já a Dona Márcia era uma grande fã da Agatha Christie e suas investigações. Eu achava muito interessante compartilhar alguns momentos de conversas no balcão com elas sobre o que acharam dos últimos livros que leram e tinham orgulho ao falar que já haviam lido a maioria dos livros desses autores.

Como leitor de sagas infanto-juvenis, seria injusto não comentar a respeito das pessoas que iam atrás dessas obras. Me lembro uma vez de uma leitora que chegou afobada ao balcão solicitando um dos livros de Outlander e ficou feliz ao saber que tínhamos tanto o que ela pediu, quanto o seguinte. Ela estava lendo no celular e eu não acho que seja confortável ler um livro de mais de 700 páginas no aparelho. Eu considero que um dos melhores momentos trabalhando em uma biblioteca é quando pedem indicações de livros que você gosta e nesse momento eu fazia questão de panfletar sobre Cassandra Clare, uma importante autora de livros de fantasia.

Por fim, uma importante vivência que pude ter foi o contato com as pessoas em situação de rua. Diariamente eles iam até o acervo para ler algo ou descansar, mas o mais comum era a busca por filmes. Era um momento de lazer que eles poderiam ter em um lugar aconchegante e acolhedor, alguns gostavam de conversar, como o Marcos, que estava lá diariamente em busca de filmes, sempre bem animado.

Infelizmente, presenciei dois acontecimentos que me deixaram reflexivo, mas que servem como crescimento pessoal. Um deles foi sobre a Júlia, mulher trans em situação de rua, que passou a frequentar a Mário com seu marido em busca de livros do Stephen King. Ela estava sempre muito entusiasmada com o autor e eu gostava de conversar com ela porque eu também gosto muito do Stephen, então estava sempre realizando indicações de livros dele. O que aconteceu foi que eles molharam um dos livros que foram emprestados em um dia de chuva e ela ficou extremamente constrangida de falar para nós o que tinha acontecido, nós a acolhemos para que não se preocupasse com isso, mas foi um momento de muita sensibilidade imaginar o acontecimento. Após o fato, ela continuou indo até a biblioteca para buscar novos livros.

O outro acontecimento já foi mais complicado. Um usuário da biblioteca foi até o balcão reclamar da presença de uma pessoa em situação de rua, obviamente expusemos a ele o direito de ida de todos à biblioteca e ele foi embora aos gritos. Infelizmente o preconceito e a discriminação ainda existem e não podemos permitir que isso aconteça dentro da biblioteca, que deve ser um espaço de acolhimento e recepção a todos, principalmente a essas pessoas marginalizadas pela sociedade.

Concluo aqui meu relato rápido sobre algumas pessoas que pude conhecer no meu pouco tempo como estágio na Mário de Andrade, mas foi o suficiente para reforçar o que a segunda maior biblioteca pública do país representa. As bibliotecas em um geral devem estar preparadas para recepcionar os mais diversos públicos e vetar a discriminação e o preconceito, seja de quem vier. Devemos estar aptos a recepcionar e atender, divulgar e incentivar a leitura e o consumo cultural. Recomendando o uso da biblioteca ou levando até quem não pode estar lá.

*Todos nomes usados na reprodução do texto são fictícios a fim de preservar a identidade das pessoas citadas.

Comentários

Comentários