Por Maria do Rosário Caetano, do Brasil de Fato
Quem espera de um filme que ele ultrapasse a função de mero entretenimento, dispõe na atual temporada de três produções brasileiras – Sem Pena, de Eugenio Puppo, Ilegal, de Raphael Erichsen & Tarso Araújo, e O Mercado de Notícias, de Jorge Furtado – que se enquadram no que o distribuidor Adhemar Oliveira define como “cinema necessário”. Nome similar ao cunhado pelo crítico paranaense Aramis Millarch (1943-1992): “cinema de utilidade pública”.
Em algumas cidades brasileiras, mesmo que em poucos horários, o espectador interessado em filmes reflexivos e que estimulem a consciência cidadã poderão assistir aos três títulos. O filme de Jorge Furtado estreou há nove semanas e já foi visto por 13 mil espectadores. O documentário de Eugenio Puppo estreou semana passada. E Ilegal chega aos cinemas quinta-feira, 9 de outubro.
Adhemar Oliveira, que programa quase 100 salas em diversos estados brasileiros, explicita seu conceito de “cinema necessário”: “esta vertente da produção, em especial o documentário, engloba filmes que se destinam aos que se preocupam em aprofundar discussões sobre temas de grande relevância social”. No caso destes três lançamentos recentes, Adhemar lembra que Ilegal se ocupa de tema fundamental: a saúde. Sem Penadiscute o sistema judiciário do país. E O Mercado de Notícias debate o jornalismo brasileiro.
Ilegal, a estreia desta semana, é um filme militante, que defende usos medicinais de derivados da cannabis. O Mercado de Notícias, ao discutir o jornalismo, levou às salas do Circuito Cinespaço de Cinema, especialmente, estudantes de Comunicação. Vale lembrar que Patrícia Durães, uma das programadoras do Cinespaço, mantém, em muitas salas da rede, o Projeto Escola, voltado ao atendimento de professores e estudantes. Graças ao Clube do Professor, Patrícia atende a milhares de profissionais da Educação catalogados ao longo das duas últimas décadas. E os atende em horários especiais, a serem previamente agendados, e com preços mais acessíveis que os de mercado.
Impunidade?
Adhemar Oliveira conta que, ao ser procurado por Eugenio Puppo, interessado em tê-lo como distribuidor do documentário Sem Pena, se pôs a pensar: “mais um filme sobre o sistema penitenciário brasileiro!” Assistiu ao documentário “por dever de ofício”. Mas ficou surpreso com o que viu.
“Trata-se” – pondera – “de um filme de grande qualidade cinematográfica. Um documentário que instiga não só os que se preocupam com a questão de nossa imensa população carcerária, mas também a quem se interessa pela linguagem do cinema. Puppo realizou um documentário inovador”.
O filme é fruto de sugestão da advogada Marina Dias, filha de José Carlos Dias, membro da Comissão Nacional da Verdade. Cinco anos atrás, quando ela presidia o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Marina compreendeu a necessidade de divulgar a causa maior de seus associados: a luta por um judiciário democrático, que atenda aos encarcerados, independente de seu poder aquisitivo, cor da pele ou credo religioso.
O filme lembra, logo em seus primeiros minutos, que a palavra penitenciária vem de penitência, prática cara à Igreja Católica. E passa, então, a somar depoimentos de encarcerados e seus familiares, funcionários do sistema penal, juristas, magistrados e religiosos (da Pastoral Carcerária da CNBB). Foram ouvidos 52 pessoas, sendo que onze delas permaneceram na edição final. O montador sintetizou, em narrativa de 86 minutos, 270 horas de som e imagem.
O filme, exibido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e eleito o melhor pelo Júri Popular, não é um documentário de “cabeças falantes”. Ou seja, uma soma de imagens e vozes de inúmeros especialistas num determinado assunto.
“Desde o início” – conta Puppo – “sabia que faríamos um filme sem juridiquês. E nisto fui totalmente apoiado pelo IDDD, por Marina Dias e pelo sucessor dela na presidência do Instituto, Augusto de Arruda Botelho. Nossa intenção era fazer um filme que falasse com clareza sobre a tragédia de nosso sistema prisional. Temos a terceira maior população carcerária do mundo. Só perdemos para a China e os EUA”.
A decisão de não mostrar o rosto dos entrevistados, fossem eles profissionais reconhecidos como Nilo Batista e Luiz Eduardo Soares, ou desconhecidos (como os presos e seus familiares), também foi adotada desde o início do filme.
“Entendemos” – explica o realizador – “que potencializaríamos a fala de nossos entrevistados se não mostrássemos a imagem deles”. E assim foi feito. Só saberemos quem são os entrevistados quando eles forem identificados nos discretos letreiros finais. Ao invés da imagem de presos, juízes, juristas ou religiosos, ouviremos declarações contundentes que se fazem acompanhar de registros de imensos corredores recheados de arquivos burocráticos, edificações judiciais, estátuas de próceres do Direito, cenas de presídios, guardas com suas enormes escopetas, viaturas carregando presos e perturbadora imagem coletiva de sentenciados atados por algemas e entrelaçados uns aos outros.
Uma sequência, a mais inesperada do filme, nos mostra um morador de rua propondo ao dono de uma Ferrari novinha em folha: “Leva eu, Doutor”. Isto, no centro de São Paulo, tendo ao fundo a majestosa Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Em outra sequência do documentário, vemos uma senhora de pele negra acusada de tráfico de drogas, sendo julgada. Uma vizinha que a conhece bem depõe a favor dela. A “encenação” assume ares kafkianos. “Neste momento” – contou o cineasta – “senti necessidade de mostrar o rosto dos protagonistas”.
O filme é embalado por trilha sonora de John Cage (1912-1992). A criação sonora do músico, que Puppo conheceu numa Bienal de São Paulo, em 1985, poderia ter ficado fora do filme, se a Fundação John Cage não tivesse abraçado o projeto e reduzido o custo inicial da cessão de direitos autorais de 60 mil euros para um sexto do valor (10 mil euros). Ou seja, foram pagos R$30 mil pelo uso de “4 Peças Para Piano Preparado”, compostas em 1942.
A quem acredita que o Brasil é o país da impunidade e que aqui os que infringem a lei estão soltos pelas ruas, o filme prova o contrário: há milhares de pessoas encarceradas e com penas já cumpridas. Só que não há agilidade da Justiça para soltá-las, nem defensores públicos na quantidade necessária para atendê-las. E mais, a Justiça é morosa, sim, pesada, burocrática. Mas para prender pretos e pobres, ela é das mais ágeis.
Derivados da cannabis
O documentário Ilegal, de Raphael Erichsen e Tarso Araújo, não tem a ousadia estética deSem Pena, mas deve enriquecer e dar complexidade à mais que necessária discussão sobre a legalização das drogas (pelo menos as mais leves). O debate, aliás, começou comQuebrando o Tabu, documentário de Fernando Grostein Andrade, lançado há três anos, e que reuniu depoimentos do médico Drauzio Varella, dos ex-presidentes FHC (Brasil), Jimmy Carter e Bill Clinton (EUA) e César Gavíria (Colômbia), de Paulo Coelho e do ator mexicano Gael García Bernal.
Ilegal centra-se na luta de três mães de crianças portadoras de epilepsia rara e submetidas a intensos processos de convulsões. Estas crianças têm em substância derivada da maconha um remédio capaz de dar-lhes, se não a cura, pelo menos qualidade de vida. Só que a medicação é legalmente proibida. O filme registra, de forma apaixonada, a luta destas três mães contra o preconceito e a burocracia, acompanhando-as em visitas à Anvisa e ao Congresso Nacional.
O caso mais mobilizador, no filme, é o da menina Anny Fischer, de cinco anos, portadora de epilepsia grave. Graças à luta dos pais, ela tornou-se a primeira brasileira com autorização para usar cannabis medicinal.
O filme, que nasceu de reportagem de Tarso Araújo publicada na revista Superinteressante e repercutida no Fantástico, deu origem a movimento de caráter nacional pela legalização da Cannabis medicinal. Tarso, um dos diretores do filme, é também o idealizador da campanha “Repense”, viabilizada por crowdfunding (ou doação voluntária). Esta campanha, criada em março último, incentiva o debate e a reflexão sobre o uso medicinal da maconha no Brasil. Todo o material criado propõe-se dar visibilidade à campanha e oferecer informações claras e confiáveis sobre o assunto.
O filme, que tem as mães e suas crianças como elemento catalizador, ouve também médicos, pesquisadores e parlamentares (caso do petista Paulo Teixeira). Quem quiser saber mais sobre a campanha deve acessar o site http://campanharepense.org/
Picasso e Escola Base
O longa-metragem O Mercado de Notícias, de Jorge Furtado, soma trechos encenados da peça de mesmo nome escrita pelo dramaturgo britânico Ben Jonson (1572-1637), contemporâneo de Shakespeare a depoimentos e reflexões de 13 jornalistas sobre seu ofício (Cristiana Lobo, Renata Lo Prete, Bob Fernandes, Fernando Rodrigues, Geneton Moraes Neto, Jânio de Freitas, José Roberto de Toledo, Leandro Fortes, Luis Nassif, Mauricio Dias, Mino Carta e Paulo Moreira Leite). E investiga dois casos especiais que mobilizaram a imprensa brasileira nos governos Lula.
O primeiro aborda o episódio de “objeto contundente” que teria sido arremessado sobre o então candidato à Presidência, José Serra, e depois – descobriu-se – seria uma “bolinha de papel”.
O segundo investiga a existência, numa repartição pública federal de um quadro de Pablo Picasso, colocado próximo ao retrato oficial do então presidente Lula. O filme mostra que o tal quadro não passa de reprodução (vendida como souvenir) de original pertencente ao acervo de museu dos EUA.
O documentário relembra, ainda, uma das maiores falhas da imprensa brasileira contemporânea: o Caso Escola Base, que destruiu a vida profissional de seus donos, acusados de assédio sexual a crianças que nela estudavam.
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