Em agosto passado, a biblioteca da Embaixada dos Estados Unidos fechou suas portas. De nome pomposo – Centro de Referência e Informação (IRC) –, ela oferecia informações sobre os Estados Unidos, com ênfase no governo, política e relações bilaterais Brasil-E.U.A. Foi por meio de um e-mail curto e nada grosso que a decisão foi comunicada. Nele, a senhora Abigail Dressel, até então Conselheira de Cultura, Educação e Imprensa da Embaixada, começa agradecendo a diretora e a equipe de bibliotecários pelo trabalho desenvolvido.
Questão de justiça, diga-se de passagem. Afinal de contas, a biblioteca oferecia informações especializadas para instituições brasileiras, funcionários da Embaixada e pesquisadores, o que exigia da parte de seus empregados certa dose de dedicação na execução das tarefas de seleção e processamento técnico. E sem mais delongas, ela chega ao olho do furacão: “A internet revolucionou o nosso acesso à informação e transformou o papel que bibliotecas tradicionais como o IRC desempenham em nossas sociedades.”
E finaliza, sentenciando à morte uma biblioteca com mais de quarenta anos de existência, sem deixar de agradecer, nas linhas terminais, os que atuaram em prol da sua sobrevida: “Infelizmente, decidimos fechar o IRC no dia 5 de agosto de 2016. Sou muito grata pelo trabalho que a equipe do IRC fez por todos esses anos.” Desce a cortina, apagam-se as luzes. The end!
A leitura da mensagem me fez recordar aquela frase do Millôr Fernandes: “Diplomata é um indivíduo cuja cor predileta é o arco-íris.” No caso em questão, a delicadeza rosiclair das sete linhas de e-mail não comprometeu em nada o forte tom terroso adotado pela senhora Dressel.
Dificilmente terei acesso aos embates internos criados em torno da decisão. De todo modo, tenho lá minhas suspeitas, levantadas a partir da própria mensagem da senhora Dressel. E para os pusilânimes, lamento informar que Foucault me dá o direito de palpitar. Está lá, nas páginas de A Ordem do Discurso: “Que ninguém se deixe enganar; mesmo na ordem do discurso verdadeiro, mesmo na ordem do discurso publicado […], se exercem ainda formas de apropriação de segredo e de não-permutabilidade”.
O “segredo” evoca o que, embora decidido na coxia, livre, portanto, de testemunhas, se exibe nas entrelinhas. Ah! O agradecimento! O preâmbulo, marcado pela ode dirigida aos empregados do IRC, revela a cautela em publicizar a notícia, encarada como hedionda, tanto pelos futuros desempregados do IRC, quanto para a maioria dos bibliotecários brasileiros, irritada com a perda de postos de trabalho. Já a “não-permutabilidade” estabelece a relação de poder institucionalizado entre os polos ativo e passivo, de quem manda e de quem obedece: cumpra-se.
Engana-se quem pensa estar eu fazendo uma crítica ao fechamento. Suspeito, inclusive, que a Embaixada Americana tenha agido corretamente. Afinal de contas, o quadro apresentado pela senhora Dressel é pouco favorável ao IRC. Ela o classificou como uma biblioteca tradicional. Sejamos sinceros: poderia haver pior predicado para um equipamento cultural? O filósofo alemão Josep Pieper, em O que é filosofar?, afirma ser próprio da tradição construir o pensamento a partir do que foi revelado “desde sempre”. É consagrado, portanto, em entidades tradicionais, um conjunto circunscrito de operações.
No processo de sacramentalização dos objetos (o que custodiar?), dos modos de operar (como representar?) e de se relacionar (cooperamos com quem?), a biblioteca tradicional se enrijece, aspirando, desse modo, evitar tensões que poderiam, inclusive, representar uma ameaça à sua perpetuidade. Em outras palavras, essa modalidade de biblioteca não sabe lidar com o conflito. Segura de sua vocação quase sobrenatural, nunca é abatida por qualquer crise de identidade, e quem ousa questioná-la tende a ser execrado. Seus problemas se reduzem, costumeiramente, a filigranas: Comprar ou não um metabuscador? Renovar ou cancelar a assinatura da Veja? Ah! E seus gestores têm espasmos quando o espaço físico se revela insuficiente para guardar o acervo ou quando a classe 3 da CDD sofre alterações, exigindo trabalho redobrado por parte dos catalogadores.
O bibliotecário tradicional se jacta da dimensão de seu acervo corrente, de seu catálogo de obras raras e de seu ultra mega poderoso software. Esse tipo de biblioteca se tornou um problema para o futuro das bibliotecas porque se nega a dialogar com o presente. Já que a biblioteca tradicional não se (re)constrói a partir da insatisfação de uma dada realidade – incólume às mudanças dos ventos –, ela se define enquanto “não ser”. O curioso é que sua condição fantasmagórica é resultante de um processo egolátrico. Ela se proclama, arrogantemente: “Eu sou.” E a senhora Dressel retruca: “Enterre-se. Você é inútil e onerosa.”
A biblioteca tradicional é definida pela defecção, pois se revela incapaz de viver dentro da lógica do provisório. Ela é pateticamente inflexível, beirando a insanidade ao perder suas coisas: prédio, estantes e códigos classificatórios. Essa parafernália cara e mal gerida costuma produzir inveja nas bibliotecas-irmãs e mero descaso por parte de usuários costumeiramente satisfeitos com as migalhas servidas em baixelas: auto-empréstimo, reserva pela Internet e uma listinha semanal de novos títulos enviados pelo e-mail. Fabulous? Isolar as novidades sob um fundo de permanência é o mesmo que costurar remendo em roupa velha, colegas. Nem Foucault, nem Jesus nos apoiaria.
E o que me resta? Agradecer à senhora Dressel. Nenhuma biblioteca merece ser salva pelo simples fato de ser biblioteca. Começo a suspeitar que o espírito do Riobaldo, personagem do Grande Sertões: Veredas, baixou num corpo ianque. Vejo-a, proclamando, que nem o Tatarana: “Estou contando ao senhor, que carece de um explicado. […] A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir.” Parece-me que certos bibliotecários sentiram o poderio de sua fala. Alguns vociferaram no Facebook e outros, mais devotos, imploraram pela intervenção divina. Espero, sinceramente, que a mortandade dê uma pausa nos trópicos. De todo modo, em caso de falecimento, coloco-me à disposição para produzir um ensaiozinho a respeito, onde citarei, prazerosamente, a Quinta Lei de Ranganathan.
Não me acusem de sadomasoquismo. O que faço é cultivar a dúvida como semente da esperança. A incerteza quanto ao futuro, embora dolorosa, pode ser muito salutar para qualquer biblioteca. Ela acaba impondo ao bibliotecário – refiro-me aos não lunáticos, evidentemente – uma capacidade dialógica frente ao estranho. E, diga-se de passagem, o estranho pode não ser, necessariamente, algo inédito. Exemplo: as bibliotecas custam caro, costumam trabalhar de forma isolada e, raramente, conseguem tangenciar sua relevância. Pois em tempo de crise, torna-se mais necessário justificar o impacto de seus produtos e serviços nos resultados da instituição. Caso contrário, é propaganda enganosa adotar os predicados de “importância” e “brilhantismo” sobre entidades que se ufanam por seus prédios e acervos, geridos por gente monocórdica. Recentemente, o representante da Tinder Foundation, afirmou: “Eu amo bibliotecas, mas admiro quando elas desempenham o seu potencial. Quando este não é o caso, eu acho que eles puxam a instituição para baixo. Eu acredito que elas prestam um desserviço ao público.” Estou de acordo.
Biblioteca tem finalidade: produzir benefícios para uma comunidade. Nessa condição, a sociedade tem o direito de questionar se ela merece continuar recebendo dinheiro caso tenha se reduzido a emprestar livros e a garantir emprego para bacharéis em Biblioteconomia. “Infelizmente, decidimos fechar o IRC.” Não se constranja, senhora Dressel. Você prestou um grande serviço à Biblioteconomia tanto quanto o senhor Carnegie que, no início do século XX, construiu mais de três mil bibliotecas pelos Estados Unidos.
É aquela história: um passado glorioso não é salvo conduto para a obviedade dispensável e dispendiosa de certas bibliotecas brasileiras. Quando a existência perde sentido, a morte iminente pode ser uma saída. Vai que o temor pelo desaparecimento produza ímpetos de inteligência entre certos bibliotecários, fazendo-os sensíveis a práticas cooperativas. Mas isso é papo para outra crônica.
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