Por Camila Moraes do El País
Um negro arrancado da sua terra é jogado no Brasil sem prévio aviso. Passa seis dias apanhando. No sétimo, busca um alento na memória. Sorri, mas só quando pensa nos seus. Batuca, porque na África, de onde ele veio, esse era o convite para dançar, comer e rezar. Assim ele renova as energias que vão permitir que sua pele maltratada resista uma semana mais sob o sol da lavoura e o látigo do colonizador europeu. É um negro escravizado, trazido ao país no século XVI pelos portugueses que chegaram à Bahia pouco antes. Foi ele quem inventou o samba.
O samba é hoje o ritmo nacional por excelência. Mas, antes de ser música, ele é esse chamado que reúne os brasileiros ao redor de som e comida para todos, como vem fazendo há séculos. Quem, aqui, não reage sorrindo a um “vai dar samba”? Isso porque o samba nasceu na Bahia, mas se espalhou de norte a sul do Brasil e virou sua principal identidade sonora, renovando ao longo do tempo o seu papel de integração e, principalmente, de resistência. Tão atual que é, ele ainda junta os diferentes, dá alegria e, enquanto o batuque durar, faz a gente esquecer do resto.
Quem remonta essa história é Dona Dalva Damiana, cantora, compositora e sambadeira de 89 anos, que nasceu em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, onde vive até hoje, na mesma casa onde nasceu e viveu com os pais e mais sete irmãos. O espaço é comprido e estreito, cheio de toalhas de flores que decoram suas “poucas posses” e dão ao ambiente aquele inconfundível ar festivo de Brasil. Ampla e aberta, ao contrário de sua casa, Dona Dalva começa a conversar reclamando da idade, que está ficando sem saúde. É só falando de samba que ela deixa de ser uma senhora quase centenária para gesticular e sorrir como uma menina. “Quando o samba começa, os problemas vão embora”, diz.
Neta de uma escrava que fez parte de uma irmandade afrocatólica formada só por mulheres (da qual ela também faz parte hoje), a Nossa Senhora da Boa Morte, símbolo do forte sincretismo religioso baiano e da resistência africana no Brasil, Dona Dalva garante que “samba para o baiano é sangue”. Por isso, fundou em 1961 o Samba de Roda Suerdieck, o mais tradicional do Recôncavo, cujo nome emprestou da fábrica de tabaco onde trabalhou, feito a mãe charuteira, por 32 anos. Foi sua maneira de manter vivo aquilo que desde muito jovem aprendeu a fazer – “grudar uma palavra na outra e jogar em cima uma música” para criar composições que nascem do dia-a-dia, como mostra sua primeira canção:
Venha cá como quiser, ô, jiló
Como quiser venha cá, ô, jiló
Plantei jiló, não pegou
A chuva caiu, rebentou
Eu cortei miudinho, botei na panela
Pensei que era jiló, não é jiló, é berinjela
Não resta dúvida de que o berço do samba é o Recôncavo, a faixa de terra ao redor da Baía de Todos os Santos, repleta de rios navegáveis, que na época da Coroa Portuguesa chegou a ser responsável por 5% do PIB brasileiro – graças às suas plantações de açúcar e de tabaco e também ao intenso comércio de utensílios que havia na região. Lá existem, ainda hoje, mais de 250 quilombos. Segundo Roberto Mendes, cantor e compositor de Santo Amaro, onde fica a matriz das Casas do Samba da região, “o samba é tradicionalmente um comportamento musical”. Para entendê-lo em sua origem, é preciso resgatar sua configuração primeira, que deu origem a todas as demais: o samba de roda, declarado patrimônio imaterial nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2004 e mundial, pela UNESCO, em 2005.
Samba de roda não é o mesmo que uma roda de samba. Sua identidade reside nachula, uma espécie de cantiga de louvor à mulher e à beleza feminina declamada com técnica vocal específica por cantadores homens, e também na viola-machete portuguesa, incorporada à percussão africana. Da roda, participam homens e mulheres: tradicionalmente, eles tocam os instrumentos (viola, violão, cavaquinho, pandeiro, atabaque, prato, triângulo, timbau) e põem a voz, elas marcam o ritmo com as palmas, dançam uma a uma para os tocadores vestidas com roupas típicas e chamam as companheiras para fazer o mesmo com aumbigada. Tudo isso acontece dentro de um círculo (a roda), que no passado se formava espontaneamente depois de um dia de trabalho ou das festas de rezas aos santos, tão populares no interior baiano. “O samba de chula está para o Recôncavo, com o cultivo de cana de açúcar, assim como o blues está para o Mississipi, nos Estados Unidos, com o algodão”, compara Mendes, uma das maiores referências de música na Bahia, citando uma das mais importantes contribuições musicais dos EUA ao mundo.
O samba de roda, mesmo sendo secular, continua a ser praticado, especialmente no interior da Bahia. Ainda assim, tem de lutar para se manter. Apesar de ser patrimônio cultural do país e do mundo, ainda não foi reconhecido formalmente pelo próprio Estado baiano. Isso significa que, apesar do que já se conquistou, guardiãs do samba como Dona Dalva Damiana enfrentam batalhas diárias para garantir a preservação de algo que pertence não só a elas, mas a todos. Em Cachoeira, o Suerdieck ainda carece de uma sede própria. Da casa que ocupa em aluguel graças a um convênio com a Prefeitura de Cachoeira, a placa da entrada da casa foi roubada recentemente. O lugar carece de espaço para guardar os trajes das sambadeiras, a chuva danifica muito do que é guardado ali e não há recursos para pagar um funcionário. “Se Deus nos der o direito de ter uma sede, vou morrer gratificada e feliz, porque vou deixar na Terra uma lembrança do meu trabalho”, diz, alimentando a esperança.
Outro desafio é manter vivo o interesse dos jovens por essa e outras modalidades de samba. Para Dona Nicinha (Santo Amaro, 1949), outra sambadeira tradicional da região, responsável há 38 anos pelo samba de roda Raízes de Santo Amaro, “alguns se interessam, mas muitos preferem o axé, o arrocha e o pagode”, ritmos hoje mais populares na Bahia. É também a eles que o atual secretário da cultura do Estado, o músico Jorge Portugal, pretende chegar ao escolher o samba como protagonista do Carnaval de Salvador – considerada a maior festa de rua do mundo – em 2016. “Queremos preservar as expressões culturais de matriz africana, como o samba, e temos planos de ação continuada que incluem, a médio e longo prazo, a irmandade da Boa Morte e a Casa de Dona Dalva”, explica. Nessa toada, o carnaval soteropolitano teve nesta sexta-feira um show para celebrar três momentos da história do samba no Largo do Pelourinho, com o cantador de chula Seu João do Boi, Roberto Mendes e Paulinho da Viola – cuja presença marca a fase em que o samba vai ao Rio e por lá floresce. Como mostra a programação, que inclui vários outros shows, a festa vestiu a camisa dos 100 anos do gênero, celebrados em 2016 – já que em 1916 se registrou oficialmente, na Biblioteca Nacional, o primeiro samba (Pelo telefone) no Rio.
Branco na poesia, negro no coração
Riachão (Salvador, 1921), o sambista mais veterano ainda em atividade na Bahia, tinha 16 anos quando, no caminho da loja de materiais de costura para o ateliê do renomado alfaiate soteropolitano Spinelli, onde trabalhava, encontrou no chão um recorte de revista que dizia: “Se o Rio não escrever, a Bahia não canta”. Ele, que escutava e cantarolava sambas cariocas desde a infância, ficou intrigado, inclusive deprimido, com a manchete. Em um rompante não de raiva, “porque raiva quem é do samba não sente”, mas de resposta àquela provocação, ensaiou os versos de sua primeira canção, batuque marcado na palma da mão:
Eu sei que sou malandro, sei
Conheço o meu proceder
Deixe o dia raiar
A nossa turma é boa, ela é boa
Somente para batucar
Riachão, que completa seus 95 anos em novembro, nunca deixou de ser alfaiate, comerciante, mensageiro e outras coisas mais, mas aí começou uma vida inteira dedicada ao ritmo brasileiro por excelência.
Eternizada por Vinícius de Moraes, a questão do berço do samba – se ele é da Bahia ou do Rio – nunca mais esquentou sua cabeça, ainda que tenha aparecido outras vezes em suas conversas. Em uma delas, ele dava uma entrevista à imprensa do Rio junto com outro sambista baiano dos veteranos, o Batatinha(Salvador, 1921-1997). Lado a lado com o colega, Batatinha quis ganhar o afeto dos cariocas e afirmou: “Quando me entendi, vi que o samba estava vindo do Rio”. É verdade que nesse momento os jornalistas vibraram, relembra Riachão, “mas foi a mim que deram razão quando, no dia seguinte, saiu no jornal minha resposta: o samba nasceu na Bahia, porque o Brasil nasceu na Bahia”.
Porém, em lugar de temer a parcela carioca da equação, os baianos a assumiram, mesmo que com parcimônia. “O samba tem mais de 400 anos”, relembra Jorge Portugal. “Ele nasceu do batuque dos escravos, que virou samba de roda, ainda hoje com representantes autenticíssimos. A mesma coisa no Rio de Janeiro foi chamada de ‘partido alto’, só que lá estavam todas as rádios. Por isso, essa música foi para o resto do país, e hoje o samba brasileiro é confundido com o do Rio. Mas é isso. Como diz a famosa frase, ‘samba é como passarinho, é de quem pegar primeiro’”, resume.
Com várias participações agendadas nesse carnaval, Juliana Ribeiro, jovem cantora e compositora que pesquisa as matrizes africanas do samba, está entre os novos talentos do gênero que não para de se renovar na Bahia. Juliana garante que baiano fez e continua fazendo samba à sua maneira – tanto é assim, que em território baiano não são comuns as escolas de samba: “Aqui, tudo acontece na senzala. Não pode tirar isso de perspectiva. É questão de identidade, não tem regra: aquilo com o que você se identifica é o que o constitui e que você vai passar para os seus filhos”, diz a artista que leva 15 anos na estrada e cujo álbum de estreia na carreira solo, Amarelo, é um valioso resgate de ritmos anteriores ao samba, como jongo, maxixe, a semba angolana e lundu. Junto com Gal do Beco e Ju Moraes, Juliana acompanhou Nelson Rufino, grande compositor baiano de samba que completa 50 anos de carreira este ano, em um emocionante show comemorativo no Teatro Castro Alves, com entradas a um real, em 31 de janeiro.
Da briga entre Bahia e Rio de Janeiro, que muitos – como Riachão, Rufino e Juliana – consideram ultrapassada, o compositor santo-amarense Roberto Mendes resgata apenas a necessidade se olhar mais e melhor pela cultura nacional. “Nosso Governo promove entretenimento, não cultura. Muita coisa do Recôncavo e da Bahia já se perdeu, porque o Brasil oficial pouco se importa com o Brasil real”, diz, ciente de que o povo que batucou primeiro não pode ser esquecido. Afinal, se a Bahia não cantasse, o Rio de Janeiro não teria o que escrever.
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