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Rebatizem nossas bibliotecas! Removam os nomes dos ditadores!

Ernesto Gaisel na Biblioteca do Palácio da Alvorada em 1977. Foto: Orlando Brito

“Intelectuais comprometidos” é um termo cunhado pelo historiador francês especializado em nazismo, Christian Ingrao, para se referir a uma alta porcentagem dos comandantes da SS (a “Tropa de Proteção” nazista), e de seu serviço de segurança, o temido SD, que detinham uma alta formação acadêmica/intelectual, indo de juristas e economistas a filólogos, filósofos e historiadores.

Como mostra uma reportagem do El País, uma pesquisa conduzida por Ingrao, que analisou minuciosamente a trajetória e as experiências de oitenta desses indivíduos que eram acadêmicos – e ao mesmo tempo criminosos –, derrubou o senso comum de que quanto maior o grau de instrução mais uma pessoa estará imune a ideologias extremistas.

“Na verdade, se examinarmos os massacres da história recente, veremos que há intelectuais envolvidos. Em Ruanda, por exemplo, os teóricos da supremacia hutu, os ideólogos do Hutu Power, eram dez geógrafos da Universidade de Louvain (Bélgica). Quase sempre há intelectuais por trás dos assassinatos em massa”, disse Ingrao ao El País.

Um fenômeno parecido se verifica no Brasil quando se analisa o perfil dos presidentes-ditadores, bem como de seus apoiadores. Diz-se, por exemplo, que o general Golbery do Couto e Silva, uma das figuras mais destacadas da ditadura civil-militar, que neste 1º de abril completa 57, era um leitor compulsivo, tendo formado ao longo dos anos uma biblioteca de 10 mil volumes, entulhando sua casa em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

“Reproduções de quadro dos mestres europeus ocupavam as paredes que escaparam às estantes. Seus prazeres d’alma eram a leitura e a conversa. Não ia ao cinema e amealhara cultura teatral lendo peças. Era um erudito marcado pelo autodidatismo”, assinalou o jornalista Elio Gaspari em seu livro “A ditadura derrotada” (Companhia das Letras, 2003). Quando morreu, em 1987, sua biblioteca foi doada à Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro.

Segundo uma reportagem da Revista Época, as dedicatórias contidas nas páginas dos livros que compõem a antiga biblioteca de Golbery revelam a relação próxima que o todo-poderoso chefe da Casa Civil do governo Ernesto Geisel manteve com escritores, intelectuais, integrantes da Academia Brasileira de Letras (ABL) como Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca, João Cabral de Melo Neto, Raul Bopp, José Cândido de Carvalho, Josué Montello e Pedro Nava.  

Nos anos de poder, Golbery amealhou quase 400 obras autografadas, nas quais é chamado de “notável brasileiro”, “eminente patrício”, “compadre”, “companheiro de estudos”, “ilustre brasileiro que muito admiro”, aquele “cujo pensamento vem sendo a inspiração do país”.  “Esses breves textos ilustram as teias que se formavam em torno do poder. Uma rede de interesses que pode soar constrangedora para quem preferiu manter sua imagem pública dissociada do regime”, diz a reportagem que fez uma lista de autores/bajuladores e suas dedicatórias à Golbery.

Sobre a “intelectualidade” dos agentes do regime, obviamente que esta era pautada numa “ideologia tecnocrata”, como bem assinalou Amarilio Ferreira Jr. e Marisa Bittar, doutores em História Social pela Universidade de São Paulo (SP) e professores do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (SP), ao analisarem o perfil do coronel Jarbas Passarinho, um dos principais “intelectuais orgânicos” da ditadura que violentou (e continua a violentar?) o Brasil durante 21 anos.

Como nos lembra Antonio Gramsci, “todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político”.

Se apropriando desta ideia, os “intelectuais orgânicos” ou os “intelectuais comprometidos” da ditadura civil-militar brasileira buscaram capilarizar suas maneiras não só de ver, mas principalmente de influenciar o espectro político-cultural-social do país. Como consequência, passaram a ser identificados como tendo uma inteligência superior e um conhecimento elevado, dignos de registro histórico, emprestando seus nomes a logradouros e prédios públicos como, por exemplo, escolas e bibliotecas.

É caso do já citado coronel Jarbas Passarinho, que dá nome a Biblioteca Municipal de Lago da Pedra (MA), minha terra natal. Não é demais lembrar que Passarinho, enquanto ministro de estado, foi signatário do Ato Institucional Número Cinco (AI5), que escancarou a ditadura civil-militar no Brasil, recrudescendo a perseguição, a captura e a morte de muitos opositores ao regime chamados, pejorativamente, de “subversivos”.

“Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”, disse Jarbas Passarinho, que também era imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), se dirigindo ao então presidente-ditador Costa e Silva por ocasião da assinatura do AI-5, instrumento político-jurídico que, repita-se, consubstanciou a repressão, torturando, exilando e matando centenas de opositores ao regime, o que, por si só, já seria o suficiente para rever tal homenagem.

A propósito, Jarbas Passarinho deve perder o título de doutor honoris causa dado a ele pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A proposta, que partiu da bancada dos estudantes no Conselho Universitário daquela instituição, deve, em nome de uma reparação histórica, seguir o mesmo caminho quando o órgão máximo da UFRJ também revogou, por unanimidade e aclamação, o mesmo título que havia sido dado, em 1972, ao general Emílio Garrastazu Médici, um dos presidentes-ditadores que o Brasil deve lembrar, mas nunca celebrar.

De volta à seara das bibliotecas, deve repetir o gesto do governo de Pernambuco que, em 2002, por meio do Decreto n° 24.075, resgatou o nome original de Biblioteca Pública daquele estado que, desde 1971, se chamava Biblioteca Pública Estadual Presidente Castello Branco, uma homenagem nada merecida ao marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, o primeiro dos presidentes-ditadores (1964 a 1967), que continua a dar nome a Biblioteca Pública Municipal de Urussanga, em Santa Catarina.

O marechal Artur Costa e Silva, o segundo presidente-ditador (1967 a 1969), por sua vez, é o homenageado da Biblioteca Pública Municipal de Floriano, no Piauí. Foi durante o governo Costa e Silva que o regime mais recrudesceu. Um dos eventos mais marcantes deste período, fora, obviamente, a instituição do AI5, foi a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, assassinado com um tiro no coração, com uma pistola calibre 0.45, pelo tenente Alcindo Costa, que comandava o Batalhão Motorizado da PM.

A Biblioteca Pública Municipal Presidente Emílio Garrastazu Médici, no município de Uniflor, no Paraná, é uma homenagem ao terceiro presidente-ditador. Como nos lembra a Wikipédia, Médici foi o responsável por consolidar a comunidade de informações, interligando todos os escritórios ligados ao SNI (Serviço Nacional de Informação), além de intensificar o combate às esquerdas, reprimindo de forma violenta os movimentos de oposição, como bem registra a melhor historiografia.

No município de Jussiape, na Bahia, a Biblioteca Pública Municipal faz uma homenagem à Ernesto Geisel, o quarto presidente-ditador (1974-1979). Na minha pesquisa para escrever este artigo, não encontrei nenhuma biblioteca com o nome de João Batista Figueiredo, o último presidente-ditador (1979 a 1985). Pudera, ele mesmo pediu para ser esquecido depois de se dizer iludido com a política, não sem antes se notabilizar como uma das figuras mais estúpidas dos anos de chumbo.

Na lista de bibliotecas do site do Sistema Nacional de Bibliotecas (SNBP) certamente será possível encontrar muitos nomes de apoiadores e entusiastas da ditadura civil-militar brasileira. Essa pesquisa pode e deve servir de base para um movimento unificado que exija, de uma vez por todas, que nossas bibliotecas sejam rebatizadas excluindo os nomes dos ditadores e daqueles que os apoiaram. Esse gesto serviria não para que se esqueça a história violenta da ditadura, mas para que se possa lembrar dela com um olhar crítico, cuidando para que ela nunca mais se repita.

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