Por Camila Moraes do El País
De todos os louros que Que horas ela volta? anda colhendo, um toca em cheio todos os sensibilizados pelo tema do filme – a marca escravocrata da relação entre patrões e empregados domésticos no Brasil – e, em especial, Anna Muylaert. São as cartas enviadas à diretora por espectadores tocados por sua história de servidão que resiste ao tempo. Muylaert diz que vibra com esses depoimentos e não com a perspectiva de um Oscar. Em avalanches de sentimentos, eles falam de como a história de Val, uma doméstica que se sente inferior aos patrões, mudou suas vidas.
Tem sido grande o esforço de divulgação do filme, mas é no boca-a-boca de pessoas reais, de um e de outro lado do balcão, na rua e na internet, que o longa-metragem tem extrapolado as telas, suscitando um debate antigo, que nunca deixou de ser urgente, mas que sempre ficou para depois. Parece, enfim, que a hora chegou. Confira trechos selecionados de cartas recebidas por Anna Muylaert, recolhidas do perfil da diretora no Facebook, onde foram publicadas, anônimas.
Quartinho dos fundos
Anna,
Não sei se você vai ler isto, mas tive que escrever depois de assistir ‘Que horas ela volta’. Como foi o filme que despertou tudo isso, sinto que quero te agradecer e agradecer ao filme de alguma forma, porque é muita coisa. Foi uma explosão que implodiu ‘aqui dentro’ o filme. Quando acabou, senti que uma tempestade havia chovido dentro de mim e que eu não havia entendido direito… Tinha que assistir de novo… E de novo… É tanta coisa trazida à tona, é tanta sombra exposta à luz pela primeira vez, é tanto conteúdo submerso, tendo a chance de tomar um ar…
Pela primeira vez na vida, me dei conta e admiti pra mim mesma de verdade, de coração, que minha avó foi empregada doméstica quando migrou pra São Paulo, vindo do Norte de Minas, fugindo da fome, dos coronéis e da seca; que minha mãe, a partir dos 12 anos, foi empregada doméstica quando migrou pra São Paulo pela segunda vez, fugindo da fome e do frio gélido do interior do Paraná; que eu fui empregada doméstica quando saí de São Paulo, morando no quartinho dos fundos, trocando a limpeza-faxina e a ‘guarda’ de uma casa-clínica de terapias por um lugar pra dormir, e antes, vivendo relações de opressão, abuso e submissão extremas com ricaços de outra capital do Brasil, quando, em troca da ‘ajuda’ que eles me davam (um teto), eu tinha que pagar com presença incansável em suas vidas sempre que eles queriam, tocar violoncelo em suas festas e churrascos e almoços e jantares e visitas de ‘gringos’ e pra seus filhos sempre que eles queriam (claro, sem receber nada por isso, afinal, esta era a forma de ‘pagar’ pelo teto), fazer companhia pras crianças e aguentar qualquer desrespeito e qualquer falta de educação e qualquer humilhação, e, ajudar na faxina e na cozinha, em troca de um teto pra dormir. Servir, servir, servir. Se crer e se ver menor, menor, menor. Inferior. Desqualificada. Subalterna. Eterna devedora.
Mas eu nunca falava disto. Nunca me dava nem conta disto. Mas a gente também nunca falava das experiências da minha mãe e da minha vó. A gente tinha e eu ainda tenho vergonha disso tudo, vergonha de contar. Aquilo tudo que a gente finge que nem aconteceu. O lance é que, até assistir o filme, na verdade, eu tinha para mim que “tudo isto é assim mesmo”. Que “é assim que a vida é”. Eu tinha naturalizado todas estas violências, estes abusos, estas opressões, entende? Eu tinha encaixado tudo bem encaixadinho: “é assim mesmo quando a gente não tem grana.” “É assim mesmo quando a gente não tem dinheiro.” É assim mesmo, “é assim mesmo”, “é assim que é…”… E ainda sentia culpa por tudo isto: “Se eu tivesse dinheiro não teria que passar por isso, então a culpa é minha!”. Me chocou muito a fala da personagem Jéssica quando ela diz pra Val: “Eu não me acho melhor do que ninguém. Eu só não me acho pior.” Sabe, eu não sabia, mas eu me achava e me acho pior, sim.
Então o filme está reverberando aqui em mim. É muito forte, entende? E é muito bom que está acontecendo. Porque agora eu posso olhar pra tudo isto de novo de outro jeito, sabe?
Obrigada, Anna, por abrir ‘o quartinho dos fundos’, esse lugar a que ninguém quer ir, que ninguém quer olhar e que eu queria esquecer.
Um grande e afetuoso abraço, com gratidão gigante.
Autoconhecimento
Anna,
Assisti ao seu filme hoje. Estou morrendo de orgulho de ser brasileiro e de acreditar tanto na produção cultural do Brasil – e na resistência dela. Ao mesmo tempo em que ainda lido com a aflição e o constrangimento da minha própria vida. Tive vontade de socar-me dentro da poltrona do cinema em vários momentos. Tem muito de mim – e de qualquer garoto(a) de classe média deste país – na história que você contou. Felizmente, em uma realidade que já não existe dentro da minha casa há muitos anos. Tive vergonha do meu riso, mas ele saia de nervoso. O reconhecimento do ridículo, ali, refletido em qualidade digital, foi bastante sintomático. É lindo, leve, rasgante e assustador, se é que quatro palavras podem defini-lo. Só um olhar muito sofisticado conseguiria encontrar a equação exata para essa coerência do paradoxo de sensações e sentimentos. Obrigado por tê-lo feito. Entre todas as mensagens políticas, sociais e morais, tem, ali, uma incrível didática para o exercício de autoconhecimento que nosso país (nosso povo) é tão desleixado em fazer. E isso é muito!
Obrigada, mãe
Anna,
Você não me conhece e eu não sei se essa mensagem vai cair na caixa de spam. Mas estou te escrevendo e chorando. Porque eu tenho chorado desde ontem, quando vi ‘Que horas ela volta’ no Belas Artes.
Nunca chorei tanto num cinema. Tão copiosamente, de uma forma tão doída. E é engraçado, porque saí dali sem saber dizer se tinha gostado do filme ou não. Daquele jeito da crítica, sabe. Daquele jeito racional eu não sabia o que dizer. Eu só sabia que era eu e a minha mãe ali.
Minha mãe nunca foi empregada doméstica. Mas, eu conheço aquela subserviência. Eu conheço aquele questionamento. Conheço sobretudo a falta de compreensão, a falha de uma mãe em se conectar com a filha. Conheço uma filha que não aceitou o que a mãe tinha pra dar. Que também achou que era pouco, que também achou que era errado porque “o mundo não tem que ser assim”.
Porque eu achei que eu podia fazer melhor. E eu pude. Mas, só porque ela esteve lá por mim. E só agora, quase aos 30, eu começo a compreender isso. Eu começo a entender que ela não soube fazer muitas coisas. Como a Val, que não soube voltar, não soube estar presente.
O engraçado é que a Val é efetivamente parecida com a minha mãe. Na aparência, no jeito de falar, no jeito de servir. Era a minha história ali. E eu não sei ainda o que fazer com isso, só que saí do cinema com uma necessidade enorme de ligar para minha mãe só pra dizer “eu vi aquele filme com a Regina Casé e lembrei de você”.
Esse filme humanizou minha mãe um pouco mais para mim. E eu sinto que dei um passo mais largo neste sentido.
Parabéns e obrigada
Cultura machista
Cara Anna,
A nossa cultura é tão machista que quando essa questão é levantada causa espanto. Ela adormece nosso pensamento de como poderia ser diferente.
Eu posso imaginar (apenas um pouco) a pressão que está sobre você. Porém, sua postura e seu filme estão tocando essa questão do modo mais elegante, legítimo e que o único que pode fazer avançar, a meu ver, sem ressentimento e com um conteúdo implacável.
Como pessoa interessada na dramaturgia como um instrumento de autoeducação, eu gostaria que o Brasil voltasse a fazer cinema exatamente para pensar sobre si e não somente para fazer bilheteria. Você e sua equipe estão conseguindo os dois. Isso é muita coisa.
Alegre-se. Te desejo força, saúde, paz e alegria. ‘Que horas ela volta’ é um presente para todo brasileiro. E veja, a ficha está caindo na hora. Isso é muito poderoso!
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