Continuando a ideia de que a escolha de um livro para alguém é a sugestão de um novo amigo, acredito que participar da escolha de uma nova amizade para outra pessoa é uma tremenda responsabilidade. Antes de apresentar o mundo, um novo amigo deve estar pressuposto que conhecemos bem os envolvidos e que é apenas uma sugestão, não uma imposição.
Encontro entre pessoas, definição que os dicionários não dão conta, o que “não é visível, mensurável e observável”. Para Yolanda Reyes, é complexo formar leitores, construir relações com palavra escrita que não têm a estrutura linear da informação. Isto porque “não é fácil escrever, nem expressar-se, tampouco traduzir em palavras um mundo interior para comunicar a outros seres humanos, que têm, por sua vez, mundos interiores próprios…”.
Assim, somos levados a pensar na linguagem; em sua dimensão de expressão de arte, na literatura e nos livros de histórias, na relação do sujeito com a dimensão do sensível, perspectivas que a escola e adultos muitas vezes desconectam dos processos de desenvolvimento e formação dos sujeitos.
Rainer (Ler e brincar, tecer e cantar – citado por REYES, 2012, p.20) diz que “as coisas não são todas tão compreensíveis nem tão fáceis de se expressar quanto geralmente nos fizeram crer. A maioria dos acontecimentos são inexprimíveis; ocorrem no interior de um recinto no qual jamais palavra alguma adentrou. E mais inexprimíveis do que qualquer outra coisa são as obras de arte”.
Outro elemento que não podemos deixar passar em branco está relacionado à observação e escuta atenta do adulto ao que agrada à criança. Tatiana Belinky, escritora, em entrevista cita a definição de sua neta de oito anos sobre um livro bom para crianças: “Sabe, Tati, livro que não dá pra rir, não dá pra chorar, não dá para ter medo, não tem graça!” (Leda Oliveira, O que é qualidade em literatura infantil…o escritor., 2005).
Ainda sobre as escolhas de livros pelos bebês e crianças pequenas, podemos citar a experiência de Reyes (2010), com seu grupo Espantapajaros na Colômbia, junto a bebês, crianças pequenas, livros e adultos. Este grupo organiza o acervo também considerando o interesse dos pequenos leitores e uma das categorias de classificação chama-se: “os livros mais mordidos”.
Bonnafé (Los libros, eso es bueno para los bebès, 2008), que colabora por meio de sua análise sobre alguns critérios que em geral estão presentes na definição do que são livros “adequados” para crianças pequenas, afirma para os partidários do útil, que os textos e as ilustrações têm que aproximar a criança do seu cotidiano, do seu habitual…
“[…] descartam por completo a observação mais elementar dos bebês, quem tem demonstrado de maneira eficiente sua preferência por relatos de imaginação, por reinos encantados e pelos países dos ogros e fadas e por tudo aquilo que justamente, escapa à vida cotidiana e permite sonhar! (BONNAFÉ, 2008, p. 161 – tradução livre).
Para o adulto que esquece a sua infância – memórias afetivas, muitas vezes permeadas por livros, histórias e o olhar de adultos atentos – tem dificuldade de lembrar o que seja liberdade para quem ainda não sabe andar ou que começa a falar. Atualmente, as exigências com cuidados, o politicamente correto, o consumo como fonte de realização, também invadem os espaços da infância e podem embaçar o olhar, ao definirmos o que é interessante e saudável para uma criança pequena.
Olhar a infância, com sua beleza, tristeza, sempre inclui rever percepções, principalmente quem se vê envolvido com o desenvolvimento e a formação da pessoa. A ideia de que a criança que não lê, não precisa do contato com livros, pode vir do posicionamento que não ousa perceber que crianças e a infância são resultantes de processos, vivências.
Ao incluir a infância como categoria social repleta de ambiguidades, outro autor de literatura contribui para a reflexão proposta. Rotterdamm, em “O Elogio da Loucura” (2003), em uma divertida brincadeira sobre a vida humana, provida de sal e graça, dá voz à loucura, Deusa Grega Moria.
Esta personagem toma a voz e faz a aproximação entre tempos presumidamente distantes na vida, a infância e a velhice, dois momentos de liberdade em que as normas de conduta e moral ou ainda não foram incutidas, ou já perderam sentido. E assim, segundo a Loucura, desfrutam demais da felicidade, nesta árdua tarefa que é viver, vendo e ouvindo o que os adultos deixaram de perceber, mas que um dia terão a sorte de reverter.
Com Paulino (O mercado, o ensino e o tempo: o que se aprende com a literatura que se vende?, 2007), que ressalta a vida em seus variados ritmos, somos convidados a notar como um olhar estagnado não desfruta da riqueza e pluralidade que a velhice e a infância podem proporcionar. O narrador de Gabriel Garcia Marquez, em “Minhas Putas Tristes”, prepara um casamento, a primeira união de sua vida, seu primeiro amor. “Cansado de monologar, ele escreve, contando como, mesmo aos 90 anos, ainda é possível encontrar o outro, nesse espaço erótico delicado da literatura e da vida.”
Podemos observar aqui características da infância e da literatura: afeto, fantasia e memória. Um primeiro casamento aos 90 anos; crianças desde bebê recebendo livros como presentes que possam explorar com liberdade, transformando-os em chapéus ou tijolos. Espero propor um deslocamento no tempo e no espaço para quem acredita que a arte, no caso a literatura infantil, pode colaborar com a vida em uma convivência constituída em sua ambiguidade, livre de amarras.
Crianças, principalmente as pequenas, muitas vezes apontam para lugares e situações que nós adultos não conseguimos enxergar, por falta de paciência, de tempo e de imaginação. Apesar desta limitação, é o adulto quem determina o tempo das brincadeiras, do descanso, da alimentação etc. Não podemos negar que as regras são necessárias, mas como seguir regras com liberdade?
É possível, mas precisamos aprender, ensinar, aprender! Como será educar as crianças pequenas desde bebês em espaços de liberdade? Será possível escutar e observar o que as crianças têm a dizer, mesmo as que ainda não falam ou que apresentem um vocabulário ainda restrito? Rever os conceitos de infância, por exemplo, com a ideia de liberdade, pode ser uma alternativa.
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