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Privatização e o fim de uma biblioteca comunitária em São Paulo

Atividade na Biblioteca Comunitária Itinerante Leia Bem no Mundo. Foto: divulgação

São Paulo é uma cidade conhecida por suas diferenças sociais. Possui diversos espaços culturais, mas é excludente quando se pensa na existência desses dispositivos culturais nas periferias. E as novas políticas do governo estadual, bem como da prefeitura municipal colaboram para aumentar essas diferenças. Fazendo um recorte da Zona Norte, a região tem o bairro de Santana como seu ponto central, e os bairros periféricos que se encontram com a Serra da Cantareira, como Brasilândia, Peri e Jardim Damasceno.

O bairro de Santana é um dos mais antigos da Zona Norte, e teve origem a partir da Companhia de Jesus, em 1673. Seu povoamento foi lento, devido aos alagamentos provocados em torno do Rio Tietê, que impediram seu desenvolvimento até o final do século XIX. Em 1893 foi construído a ferrovia que ligava o reservatório da Cantareira até o centro, o Tramway da Cantareira, contribuindo para o povoamento da região. Nas décadas de 1960 e 1970, o trem é desativado, dando lugar ao metrô da linha Azul.

Santana concentra diversas opções culturais, como a Biblioteca São Paulo, outras duas bibliotecas municipais, o Arquivo do Estado de São Paulo, Sesc Santana, salas de cinemas em shoppings centers, teatros, e espaços para shows e eventos como o Anhembi. Mas para quem está na periferia da Zona Norte, esses locais se tornam de difícil acesso. Na periferia, três bairros contam com fabricas de cultura, como a Brasilândia, a Vila Nova Cachoeirinha e o Jaçanã, mas mesmo assim, esses espaços não conseguem abranger a demanda da região.

E foi tentando atender os moradores mais afastados que em maio de 2016, o coletivo do Você tem fome do que?, formado por educadores, técnicos em biblioteconomia, entre outros profissionais, iniciou um projeto de ocupação cultural, que é reconhecida pela Prefeitura de São Paulo, criando a Biblioteca Comunitária Leia Bem no Horto, dentro do Parque Estadual Alberto Löfgren, conhecido como Horto Florestal. Na época, a administração do Parque aprovou o projeto apresentado pelo coletivo.

A comunidade em torno do Horto Florestal reflete bem as diferenças sociais. De um dos lados, na região do Mandaqui e do Tremembé, encontra-se mansões, condomínios alto padrão, colégios particulares e o Clube do Barro Branco. Do outro lado, no distrito do Cachoeirinha, encontramos os moradores do complexo Cohab Jardim Antártica, e os moradores do Jardim Peri e Jardim Damasceno, onde muitos não contam nem com saneamento básico. A região apresenta deficiência no sistema de transporte, devido às vias inadequadas e estreitas. Destaca-se a baixa qualidade de vida e precariedade das moradias, com uma taxa de criminalidade alta, ocasionada principalmente pelo tráfico de drogas.

Contando com um grupo de voluntários, trabalhando principalmente com a integração das comunidades do entorno, utilizando o eixo de cultura e leitura, e também, difundindo informação relacionadas a preservação ecológica e bons hábitos de saúde. O espaço contava com um acervo “colaborativo”, com livros que ficavam disponíveis para os visitantes, sem necessidade de fazer cadastro. Também eram realizadas aulas de yoga, contação de histórias, sarais e feiras de troca de livros.

Por ser uma biblioteca da comunidade e feita por voluntários, a Leia Bem no Horto era um organismo vivo, diferenciada por seus livros serem de livre acesso e empréstimo. Não precisava de um documento, nem comprovante de residência. Também não se controlava a data de entrega, dando a oportunidade de quem precisa, apreciar pelo tempo necessário sua leitura, contava somente com um livro de visitantes. A maioria dos livros sempre retornavam.

Foram seis anos oferecendo diversas atividades, trazendo palestrantes e reforçando o valor de artistas da periferia, e sempre contando com a participação da comunidade do entorno. Mas o diálogo com a secretaria do parque nunca foi fácil. A cada nova gestão, o medo de serem despejados assombrava a biblioteca. Muitos projetos da agenda cultural eram aprovados inicialmente, e ao chegar na data, eram impedidos de acontecer. Mas o coletivo sempre priorizou o diálogo, contando com o apoio de todos que frequentavam o Parque, e conseguindo incentivos, inclusive para arrecadação de livros através da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC).

Com a pandemia de Covid- 19 no começo de 2020, o Parque fechou. Durante todo o período o coletivo não parou, desenvolvendo ações culturais virtuais, que iam desde contações de história, até as ações voltadas para educadores. No decorrer dos meses, o coletivo recebeu a notícia da privatização do Horto Florestal. Ao assumir, a nova gestão demorou muito para entrar em contato e querer conhecer o projeto.

Pouco tempo depois, em julho de 2021, com o Parque ainda fechado, o coletivo decidiu por fazer uma ação de retirar os livros que estavam dentro da biblioteca para dar uma nova destinação e fazer com que eles circulassem na comunidade. E foi nesse momento que a nova gestão tomou uma postura como se os livros e a biblioteca fossem de pertencimento da administração do Parque, sem levar em consideração que todos os livros foram arrecadados através da iniciativa da sociedade civil, sendo que esses não possuíam nem número de tombo. Após muito conflito, com diversas tentativas de contato com a concessionária responsável, o coletivo conseguiu retirar os livros do espaço. Mas infelizmente a nova administração não reconhece que o espaço é uma ocupação cultural da sociedade civil.

Em um momento de ataques à cultura, às ciências, aos livros e ao meio ambiente, a perca desse espaço é lamentável. Em agosto de 2021, o coletivo se retirou do espaço, deixando novamente uma lacuna na região. Muitos são os projetos de elitização dos espaços, transformando o Parque em um quintal das mansões da região. A Biblioteca Leia Bem no Horto era um símbolo de resistência nesse espaço.

O coletivo não deixou de ser atuante, continua nas redes virtuais abrindo espaço para projetos da periferia da Zona Norte, apoiando outras bibliotecas da cidade, e agora tornou-se itinerante, ocupando praças, escolas e calçadas por tempo indeterminado. A biblioteca agora tem um novo nome: Biblioteca Comunitária Itinerante Leia Bem no Mundo. 

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