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Por que o amor não é natural? Sobre as emoções, o indivíduo e a cultura

Nas palestras que realizei nos últimos anos, ao ser questionado sobre o que é o amor, respondia que essa não é a pergunta mais correta a ser feita. Na verdade, sugeria em seguida a formulação de outra indagação: “O amor é?”. Essa sugestão se justifica pela impossibilidade de delimitar e fundamentar o amor como “coisa”, com algum lugar determinado e comum à natureza humana. Desse modo, me contraponho ao argumento de que o amor é natural ou espontâneo. Isso porque entendo que os sentimentos são construções culturais com reflexos sociais e políticos. Então, tenho dúvidas quando vejo certas proposições que buscam definir o que é o amor como um sentimento dado a priori, parte constitutiva de uma essência humana.

Apoio-me na abordagem de que o amor, como outros sentimentos, tem um caráter situacional, o que quer dizer que as maneiras pelas quais os sujeitos se posicionam em uma relação partem de certos “códigos”, situando-os e posicionando-os em um contexto histórico particular. Isso envolve levar em consideração os significados atribuídos ao amor em representações sociais mais amplas, as noções de pessoa e o lugar do amor na vida social. Assim, penso as emoções como elementos de natureza contextual, volátil e transitória, e não como uma dimensão intrínseca ao eu que estariam fincadas profundamente nas mentes ou na alma de seus portadores.

Nesse sentido, me oponho a algumas análises recentemente produzidas sobre o tema “amor”. Quero me ater especificamente ao livro do filósofo Renato Noguera, cujo título completo é Por que amamos: O que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor, publicado em 2020 pela editora Harper Collins. A obra divide-se em onze capítulos e conta com o prefácio da filósofa Djamila Ribeiro. O intuito principal do autor é refletir sobre os variados significados do amor por meio dos mitos (indígenas, orientais, africanos, ocidentais), da filosofia e da biologia. Isso nos traz, inicialmente, a impressão de que Noguera parte de um princípio “relativista” para analisar esta emoção, entendendo que não existe apenas uma forma de amor e que ele pode ser entendido como culturalmente localizado. Entretanto, suas observações têm certas ambiguidades — a serem analisadas mais à frente — e o autor assume, por vezes, um pressuposto naturalista, colocando o amor como uma característica essencial do ser humano, isto é, pré-cultural.

Antes de avançar, quero dizer que a escolha pela obra deste filósofo não foi arbitrária. Na verdade, Noguera e eu temos algumas aproximações intelectuais e afetivas, de trocas engrandecedoras. Além disso, trata-se de um dos poucos homens negros intelectuais, de alcance nacional, falando de amor. Contudo, partimos de lugares distintos para analisar o mesmo fenômeno e, para mim, há muitos equívocos em suas interpretações. Separei, então, quatro pontos em sua obra que me chamaram atenção, dois mais gerais e dois mais específicos. Os mais gerais referem-se: a) sua análise sobre a monogamia e b) sua visão normativa acerca do amor. Os mais específicos são c) a tese que ele defende sobre “o amor como sobrevivência” e d) o “ciúme como algo natural do ser humano”. Minhas críticas se concentrarão nesses pontos.

No que se refere aos aspectos mais gerais, em seu livro há uma abordagem histórica pouco profunda sobre o amor no ocidente e sua vinculação à monogamia e, por essa razão, ele a interpreta como uma “questão de escolha”, pior: Noguera afirma existir uma essência interior nas pessoas que as fazem monogâmicas: “depende de cada indivíduo e do entendimento de seus desejos […] Há pessoas com naturezas afetivas monogâmicas, que se sentem bem em relações conjugais com um único cônjuge” (NOGUERA, 2020, p. 125). Desse modo, descarta-se os fatores macroestruturais que, ainda hoje, condicionam a monogamia institucionalmente.

Sendo assim, sustenta-se um simplismo gratuito na definição de causalidades e efeitos para questões complexas, de maior envergadura. Isso em razão de sua obra funcionar como uma literatura de aconselhamento para ensinar o que é o amor e como amar de modo saudável, introduzindo e apresentando essa “arte” para que as pessoas tenham direcionamento e mantenham o amor em suas relações. Nessa “literatura de aconselhamento” entende-se que as emoções possam ser gerenciadas e controladas para o sucesso/êxito pessoal e/ou para alcançar o “autoconhecimento”. Na obra de Noguera não falta o jargão afirmativo do que seria (ou o que caracteriza) uma relação amorosa “bem-sucedida” e quais são os artifícios mais apropriados para não dar “um fim no amor” que para ele, ocorre (sempre e com toda a humanidade) quando não se tem admiração ou desejo. Assim, Noguera parte do princípio do que “deveria ser” uma boa relação amorosa ou um amor verdadeiro, em uma visão totalmente normativa.

Em relação aos aspectos mais específicos, em diálogo com autores apoiados nas ciências neodarwinistas, notadamente na psicologia evolucionista, Noguera compactua com a ideia de que há fatores não culturais no amor, tratando-se de um vínculo animal de sobrevivência, um afeto que contribuiu para cooperação e promoção da espécie humana. O amor, consoante o autor, seria um programa genético de ação humana para sobrevivência, em que a cultura e a história apenas o modularia. Em outras palavras, reconhece-se a influência da cultura, mas em um a posteriori do equipamento biológico (que em boa parte determina o comportamento humano). O que nos remete à “concepção estratigráfica” discutida por Clifford Geertz em sua obra A interpretação das culturas, como se os seres humanos fossem constituídos por níveis ou camadas (biológico-orgânico, psicológico, social e cultural), sendo cada uma dessas completas e irredutíveis em si mesmas.

O amor nada seria além do ímpeto de reprodução e manutenção da espécie humana […] um complô da natureza que aproximaria indivíduos para que eles procriassem. O amor seria, então, um simples instinto animal […] O amor é, então, vital para a sobrevivência humana. À medida em que as pessoas se aproximam e criam laços, elas aumentam as condições de se manterem em um mundo coberto de ameaças e hostilidades […] o amor não é fruto só de nossos planejamentos e pretensões, mas faz parte de um corpo, pertencente à natureza, repleto de mecanismos que não enxergamos com clareza, construídos ao longo dos milênios […] (NOGUERA, 2020, p. 48).

Mesmo reconhecendo os problemas e as limitações dessas afirmações ancoradas em uma perspectiva evolucionista, o autor persiste mantendo diálogo com ela ao decorrer de seu texto, não apresentando às críticas que ele mesmo diz existir. Em outras ocasiões, afirma que o amor não pode ficar refém da psicobiologia, ou melhor, de um “engodo biológico”, mas em seguida se contradiz, colocando-o como inerente à natureza humana, fundamental para a adaptabilidade e sobrevivência da espécie e presente em todos os indivíduos (um sentimento universal).

Quanto ao “amor”, por um lado, a minha discordância específica é a mesma que a de David Le Breton (2009) apresenta em relação às áreas que produzem uma “razão naturalista” (aí inserem-se a psicologia evolucionista e a neurociência moderna, baseadas na perspectiva evolucionista do neodarwinismo). Por outro lado, a minha divergência geral encontra-se com a insatisfação de Marshall Sahlins (1976) com os usos e a abusos da sociobiologia, área que interpreta a complexidade do mundo social e do comportamento humano por um prisma e por meio de fundamentos estritamente biológicos. Todas essas áreas, com as quais Noguera dialoga, há referências a programas genéticos e analisa-se as emoções em total independência dos dados sociais ou culturais.

Noguera acredita que se temos, no fundo, um ancestral em comum, a diferença cultural entre nós é passível de ser ignorada, pois no fim, corresponderemos aos mesmos apelos biológicos. Ao dialogar com os neodarwinistas e, até mesmo, trazer Darwin para o seu texto, utilizando expressões como “nos tempos das cavernas agíamos assim e por isso no presente fazemos assado”, com total rejeição às variabilidades históricas e aos contextos socioculturais, Noguera realiza análises generalistas e simplificações baseadas no princípio de seleção natural aplicado ao amor. Nessa perspectiva, o amor é enxergado como consequência da herança da espécie humana. A expressão simbólica desse sentimento por parte dos indivíduos e a sua presença na sociedade, nada teria a ver com a educação recebida por eles, mas com um princípio hereditário, o qual a sociedade não tem nenhuma ou muito pouca influência.

Assim, o amor estaria associado a uma fisiologia, sendo este sentimento selado para eternidade e tocando os seres humanos de modo idêntico no curso da história. Quer dizer, a espécie humana é destinada a senti-lo. A perspectiva de Noguera, portanto, estatiza o amor, podendo ele ser abordado como mecanismo de deflagração inato, respondendo espontaneamente a momentos que é exigido, sendo concebido como pretensamente fisiológico e suscetível de descrição absoluta. Essa perspectiva parte do princípio de que o amor está em uma estrutura psicobiológica universal. O amor, mais especificamente, e as emoções, em geral, são analisados, por Noguera, como invariáveis. Desse modo, ao utilizar como base a psicologia evolutiva, o autor compactua com a ideia de que

No curso da evolução, mediante reações biológicas e a emissão de sinais providos de particular utilidade para a sobrevivência da espécie, correspondendo a esquemas mobilizados por classes particulares de situações (luto, perda de status, ganho de poder etc.) [daí] a expressão das emoções inscreve-se numa continuidade expressiva que se iniciou com os primatas e foi legada ao homem. Elas são, aliás, reveladoras do esquematismo de observação que se impõe para a afirmação da universalidade da expressão das emoções (LE BRETON, 2009, p. 194).

Ademais, a perspectiva de Noguera traz consigo um certo dualismo na abordagem do amor: temos, de um lado, o amor, que surge como substância e, de outro, o indivíduo, a matéria pela qual o amor perpassa e que o indivíduo o ressalta por meio de seu equipamento psicobiológico. Assim, pergunta-se: quem exprime o que? O indivíduo exprime o amor ou é o amor que o exprime? Essa ambiguidade ocorre devido ao dualismo que coloca o amor, como estado totalmente independente, de um lado, e o indivíduo de outro.

Ao defender que o amor é a “base para sobrevivência humana”, Noguera contraria a realidade concreta e material das sociedades humanas e exclui a singularidade individual, esquecendo-se, por exemplo, da performatividade dos agentes e da multiplicidade de signos em torno desse sentimento. Nessa lógica, diria que o limite de sua análise é justamente retirar a dimensão simbólica do amor, em que a significação do cotidiano circunscrita na dimensão social e individual é deixada de lado. O contexto é inteiramente excluído e leva-se a cabo uma dimensão atemporal do amor, analisando-o em uma espécie de estágio absoluto, abordando-o de modo “puro”, sem ambiguidades. Sendo este sentimento, em resumo, substância incontestável do corpo humano.

Noguera faz um movimento similar ao analisar o “ciúme”. Ao partir de uma perspectiva freudiana, ele interpreta esse sentimento como algo natural do indivíduo, em que todos eles, em todas as sociedades, o sente. Aqueles que não sentem, na verdade, estão doentes. Em suas palavras, sendo o ciúme universal e inescapável, o que resta aos seres humanos é criar estratégias para lidar melhor com ele, isto é, assumi-lo e atribuí-lo outras orientações. Além disso, ainda que indiretamente, o autor trata o ciúme como um impulso, o colocando na dimensão do “instinto egoísta” do humano, que preza pela disputa com o outro.

[…] O ciúme é uma emoção bastante natural ao ser humano, e só não o sentem as pessoas que possuem uma vida mental inconsciente perturbada. Então, ao contrário do que muitos pensam, a ausência total de ciúme não é algo que deve ser considerado totalmente positivo. Pelo contrário, não sentir ciúme em situação alguma indica um transtorno, uma anomalia, sendo, inclusive, bastante negativo […] O ciúme é algo natural, todos o sentimos, e é importante saber assumi-lo […] Eis aqui o ponto: em uma mente saudável, o ciúme é involuntário, mas a maneira como lidamos como ele é uma escolha (NOGUERA, 2020, p. 175-176).

Em relação a análise do ciúme, Noguera dialoga com uma corrente específica nas pesquisas sobre emoções: o “essencialismo”, formada pelos estudos psicológicos e psicanalíticos, como avaliado por Cláudia Barcellos Rezende e Maria Cláudia Coelho (2010). Nessa perspectiva, entende-se que

As emoções são fenômenos comuns e naturais a todos os seres humanos. […] A capacidade de sentir emoções resultaria do equipamento biológico e psicológico inerente à espécie humana e seria, portanto, universal. Seriam assim invariáveis no tempo e no espaço, de modo que as pessoas poderiam se identificar com outras em sociedades distintas ou em épocas passadas em função de sentirem emoções como amor, tristeza, raiva, medo etc. Nesse modo de pensar, as emoções trariam poucas ou nenhuma marca das culturas nas quais as pessoas vivem. Essa visão está presente no senso comum, na mídia e em algumas áreas disciplinares (REZENDE; COELHO, 2010, p. 19-20).

O autor aborda o ciúme como uma substância inata e genérica presente em todos os seres humanos, em qualquer lugar e época, o colocando como pré-existente ao social. Desse lugar, ele segue uma tendência comum e generalizada dos estudos mencionados: atribuir às emoções ao íntimo do indivíduo, o que impede de fornecer explicações suficientes sobre os fenômenos sociais mais amplos. Nessa direção, o autor esquece que o ciúme, no ocidente, é representado socialmente como intrínseco ao amor e é considerado como importante estado emocional, estando intimamente associado à monogamia do modelo judaico-cristão, só fazendo sentido à luz do parentesco ocidental e da maneira com a qual se concebem os relacionamentos amorosos nessa região, que são assentados no mito do amor romântico.

Com isso, a partir das considerações de Rezende e Coelho (2010) indago a universalidade do ciúme defendido por Noguera: o ciúme não pode ser considerado como natural, muito menos como resultado espontâneo de exigências de exclusividade sobre aqueles a quem amamos. Ao contrário, seu desenvolvimento se dá em torno de “regras de relacionamento” socialmente compartilhadas, que o tornam legítimo e esperado em relações conduzidas “[…] por expectativas prescritas de reciprocidade e exclusividade, mas que o condenam em outros modelos de relacionamento nos quais a ‘regra’ é o compartilhar do outro, a exemplo dos modelos poligâmicos” (REZENDE; COELHO, 2010, p. 12).

Essa maneira moderna de amar, ao atrelar o sentimento amoroso ao casamento monogâmico, autoriza uma imposição ao parceiro de exigência de reciprocidade e exclusividade. Legitimado, o ciúme pode ser considerado como “prova de amor” e sua ausência seria sinal de desinteresse amoroso. O ciúme é codificado, assim, como demonstração de afeto e cuidado, entrando nas relações como um “tempero”. Portanto, a construção do ciúme é social e resulta de diferentes padrões de reação, mas há alguns traços comuns no contexto ocidental que são pautados por uma ideia de envolvimento real ou imaginário do parceiro com outra pessoa fora de seu relacionamento primário. Por exemplo, um sujeito é tido pelo ciumento como valioso e importante, o centro de sua vida, numa relação na qual ele procura se inserir como dependente em termos emocionais. Nessa lógica, o ciúme parte de um rival, incita uma reação frente à ameaça e, por fim, faz o ciumento arrumar meios para eliminar os riscos da perda de seu amor para outrem. Diante dessas considerações, pode-se dizer que amor e ciúme formam um complexo de aparência indissociável para as subjetividades ocidentais que não pode ser universalizado.

Em todo o caso, amor e ciúme, para Noguera, são imbricados à dimensão psicobiológica dos seres humanos, como de natureza universal, mas ao mesmo tempo invariável e restrito à particularidade de cada indivíduo. Tais emoções, tidas como preexistentes ao social, seriam apenas modeladas pela cultura, que ensina a lidar com esses sentimentos. Nessa perspectiva, Noguera anula o ser humano enquanto condição e retira-se a dimensão simbólica de sua relação com o universo social, tratando suas emoções como decorrentes de comportamentos instintivos. Observa-se uma perspectiva que alega a soberania do instinto ou dos programas genéticos sobre a cultura.

Noguera, além de anular e esquecer-se da semântica das emoções e o caráter simbólico da expressão dos sentimentos, trata as emoções como uma mecânica do corpo humano, pura e simplesmente fisiologia, sendo as manifestações emotivas imutáveis e idênticas em qualquer lugar. Essa interpretação dialoga com um pano fundo mais amplo presente no senso comum ocidental que põe as emoções como extremamente destacadas da vida real, excluindo-se a ambivalência e as variações individuais em torno delas. Desse modo, ignora-se as diferenças sociais e culturais que estão presentes na vida cotidiana que solicitam movimentos específicos dos agentes, como o tom de voz e sua alternância e os próprios movimentos corporais em torno da expressão das emoções.

Na contramão deste autor, defendo que as emoções são essencialmente simbólicas, são interpretadas como maneiras de expor aflições no interior de uma comunidade social, como argumenta Marcel Mauss (2001). Nesta, os indivíduos se reconhecem e se comunicam por meio de um fundo afetivo mais ou menos próximo. De outro modo, as sociedades levam os indivíduos a expressarem obrigatoriamente os seus sentimentos, sendo os sentimentos explorados dentro das tramas/dinâmicas sociais presentes na sociedade. As emoções dão aos sujeitos uma grade de interpretação sobre o que vivenciam e identificam da atitude dos demais indivíduos. Assim, os sujeitos conformam seus afetos de acordo com as expectativas e a compreensão do grupo do qual fazem parte, como vemos com a gramática do término de um relacionamento amoroso. Portanto, as emoções dos integrantes de uma mesma sociedade se inserem em um conjunto aberto de significações, de cultos e rituais, de um vocabulário, de valores morais etc.

Em virtude disso, visualizo uma “dinâmica da afetividade”, que é justamente considerar, antes de tudo, os aspectos sociais intrínsecos à história social dos sentimentos. Na verdade, há nuances que demonstram os agenciamentos de um ator social no interior de um contexto cultural, que o faz mobilizar, a depender da situação vivenciada, uma gramática mais adequada para expressar a emoção. Le Breton (2009), ao argumentar em favor dessa dinâmica da afetividade, traz o conceito de “tonalidade afetiva” que considera:

Os sentimentos nascem num indivíduo preciso, numa situação social e numa relação particular ao evento. A emoção é ao mesmo tempo avaliação, interpretação, expressão, significado, relação e regulamento do intercâmbio. Ela se modifica de acordo com os públicos e com o contexto. […] Ela flui dentro da simbólica social e dos ritos em vigor: não se trata de uma natureza descritível de forma descontingente e independente dos atores, pois que, segundo os indivíduos e suas histórias pessoais, um dado evento pode suscitar múltiplas reações afetivas e uma pluralidade de respostas (LE BRETON, 2009, p. 210).

Assim, as emoções não são transferíveis de um indivíduo ou de um grupo ao outro, em termos substancialistas, muito menos estão dispostas em processos fisiológicos, incrustradas no interior do corpo humano. Na verdade, as emoções são relações, isso porque elas se transformam de acordo com o público e o contexto. As emoções se inserem, portanto, em uma gama de ritualidades e se opõem, a todo tempo, às tentativas de encaixes engessados biologizantes, que as descrevem independentemente dos sujeitos sociais. Em suma, as emoções, em geral, e o amor, em particular, devem ser compreendidas como tributárias das relações sociais e do contexto cultural em que emergem.

Ao contrário de Noguera, para mim o amor não só constitui e ordena as relações sociais, como também é um significado dessas relações. O amor, em particular, e as emoções, em geral, não são objeto possuído ou possuidor, elas não existem fora das interações sociais e do acaso da vida cotidiana. Sarah Ahmed (2010, 2014) defende que os sentimentos não residem em sujeitos ou objetos, mas são produzidos como efeitos da circulação. Ao investigar as histórias das emoções que circulam em discursos individuais e sociais, nota-se como os mundos são modelados nos corpos, e como os corpos foram e são construídos como efeitos de emoções e histórias coletivas. Corpos que, por sua vez, tornam-se objetos, com seus efeitos. Embora não resida em um sujeito ou objeto específicos, as emoções significam enquanto circulam entre relações de diferenças e outros deslocamentos. Assim, proponho explorar as emoções como sujeitos, objetos e signos que engendram economias afetivas em suas dimensões materiais, sociais e psíquicas e, se elas não se instalam clara ou definitivamente nos corpos/objetos que habitam, certamente envolvem processos de materialização.

REFERÊNCIAS

AHMED, Sara. The promise of happiness. Durham [NC]: Duke University Press, 2010.

AHMED, Sara. The cultural politics of emotion. 2nd. ed. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2014.

LE BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

MAUSS, Marcel. A expressão obrigatória dos sentimentos (rituais orais funerários australianos) (1921). In: MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 325-333.

REZENDE, Cláudia Barcellos; COELHO, Maria Claudia Pereira. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FGV Ed., 2010.

SAHLINS, Marshall David. The use and abuse of biology: an anthropological critique of sociobiology. Ann Harbor: University of Michigan Press, 1976.

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