Acordei cedinho, todo dia é assim AQ/DQ, antes ou depois da quarentena. Acordar não é necessariamente pular da cama. Fico ali, absorto no caos íntimo. Dois, três livros não lidos clamando por atenção ao lado cama, o emanharado de fios que comportam carregador e fone de ouvido, o copo d’água cheio e esquecido.
O celular tem 22% de bateria, os ícones da área de trabalho revelam a atividade noturna: mensagem do banco, duas chamadas perdidas provavelmente de telemarketing, alertas de updates, e o pior do rolê, cento e quarenta e oito mensagens de Whatsapp, dá medo de abrir.
Não tem jeito, é inevitável abrir a Caixa de Pândora, o vício é mais forte que o medo.
Lá em cima no menu o descrito OsOsório, família Osório e sua diversidade, nem tão diversa assim.
Primos que nunca vejo, que nunca vi, e mesmo o que vi os desconheço. Tios e tias, que se o frescor da infância garantiu registro bons, o tempo e os fatos se incumbiram de apagar. A reserva civilizada da família extinguiu atividades whatzapianas há tempos, massacrada pelas imagens religiosas, piadas recicladas dos anos 80, o terraplanismo e os gritos em caixa alta: É A MINHA OPINIÃO.
Naquela manhã, algum dia da primeira quinzena de abril de 2020, as mensagens celebravam a COVID19: vídeos com personagens de jaleco questionando a OMS, sujeitos com pinta de dono de agência de carro usado defendendo a abertura do comércio e atacando a esquerda coronavirista, senhores na andropausa, de bermuda e óculos escuros, praguejando e defendendo a cloroquina.
A bandeira do Brasil chorando colore tudo.
– A trama está clara: a esquerda globalista quer destruir o governo Bolsonaro. Esse vírus é uma farsa.
Meu primo, Felipe Osório, formado em marketing agressivo com lato sensu em olavismo, proclamava o fim ideológico do Coronavirus. Seguiu um debate insano madrugada adentro, cujo simples contraponto de um outro primo mais sensato, Leonardo, incendiou a raia da irracionalidade:
– Mas gente, as pessoas estão morrendo…
A frase atiçou o fogo que condenou as bruxas na Idade Média, e o tiozão Julio, com sua alta experiência em venda de pneus, misturou história, ciência e religião para condenar todos os opositores do combo Trump/Bolsonaro a uma inquisição rediviva.
Setenta por cento das cento e quarenta e oito mensagens do Whatsapp estavam contidas nessa refrega. Não era ficção, é o mundo real da família Osório. Mas sempre foi assim, será que a quarentena me deixou sensível?
O desejo de café me fez pular da cama, sim senhoras e senhores, eu passei todas as emoções descritas, sem um gole de café na guela. Elas seguiram…
Vieram as fotos…
Fotos, fotos…o primo x num churrasco depois do futebol segurando um cartaz “Corona nem vem em mim”, ao lado um monte de lenhador com camisa suada de time, sorrrindo o riso dos sábios. O sobrinho da minha prima fazendo selfie com os amigos e amigas numa balada secreta no sítio. As tias tomando cafezinho com bolo juntas, porque o amor de quem sempre se odiou não pode esperar na quarentena. Não, não tem foto de pescaria, tava chovendo no interior.
Pois é, família é acidente genético e todo o resto é construído socialmente.
Café limpa o pesadelo do início do dia, desce em goles rápidos. Aquela ideia volta forte, agora não é questão de opinião, de ideologia, é vida ou morte, isolamento ou nada, essa família não dá, vou deletar OsOsório, vou sair do grupo, chega.
O dia seguiu sem tempo pro celular, esqueci.
Mas, a noite chega, o sono, alguns textos, uma playlist de músicas velhas, as lembranças da vida AQ: encontros, andanças, protestos, bobagens, vida na rua, pra lá pra cá, livrarias, lojas de livros velhos, o cotidiano 42 horas no trabalho. No mundo besta do pré quarentena não havia tempo pra fazer drama com o Whatsapp dos OsOsório.
Olhei os três livros, a água que provavelmente não seria bebida, a bagunça conhecida do móvel ao lado, alguma poeira e o celular vibrando o octogésima mensagem de Whatsapp daquele novo dia, grande parte dos OsOsório. Tudo como dantes. Família é mesmo acidente genético, e o remédio, talvez, só a morte.
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