Regina Dalcastagne, doutora em teoria literária pela Unicamp, professora a UnB, com mais de 15 livros publicados é uma pesquisadora que analisou 692 romances de 383 autores, publicados entre 1965 e 2014 pelos três maiores grupos editoriais até então. Sua pesquisa tem sido muito mencionada e ficou famosa por reportar uma realidade já percebida pela maioria do público leitor crítico: o reflexo do machismo e do racismo no Brasil.
A pesquisa revela que mulheres e homens negros aparecem como autores em 2% das publicações e como personagens em 6%. Mulheres negras protagonistas aparecem 6 vezes e como narradoras, 2 vezes. Já mulheres brancas aparecem 136 vezes como protagonistas e 44 vezes como narradoras. A pesquisa também revela inúmeros outros dados, como os estados dos autores.
Entrar em qualquer livraria grande e olhar as estantes nos confirma alguns desses dados, ainda hoje. É notável a maior quantidade de autores homens nas prateleiras em detrimento de mulheres. Não é tão simples perceber pelas lombadas os autores negrxs, mas não é difícil perceber quão pouco lembramos, lemos ou são citados em trabalhos ou leituras obrigatórias em escolas e universidades.
Fazer um movimento contrário ao fluxo fácil da indicação de mais comprados em editoras brancas, de clubes de assinaturas com curadores e autores brancos, de listas de indicações do que você “não pode deixar de ler antes de morrer” num mercado “brancocêntrico” não é simples. A massa da informação que recebemos de todos os lados diz que temos que continuar lendo o ponto de vista de homens branco-heteronormativo-cis-de-meia-idade e que eles são os melhores por serem os mais vendidos. Não se debate quem escolhe o que se publica, o que se divulga, o que se patrocina e o que se vende. Temos a ingênua noção de que temos escolha.
Cuti, no seu livro “Literatura negro-brasileira”, nos lembra “quando escolhemos o que ler, esse ato já é secundário. A disponibilidade do material já foi uma seleção, ou seja, nós escolhemos o já escolhido. As sucessivas seleções que antecedem a nossa foram feitas sem que pedíssemos. É entre apenas o que está disponível que podemos exercer a nossa limitada liberdade de escolha.”
O livro da Djamila Ribeiro, “Pequeno manual antirracista”, figurou por semanas na lista dos mais vendidos, após grande polêmica de violência nos Estados Unidos contra a população negra. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, a cada 90 minutos uma mulher morre no Brasil, em sua maioria negras. Por que, apenas após uma grande violência policial apropriada pela mídia para vender informação, é que se perguntar “como ser antirracista” se torna importante?
A Djamila Ribeiro é uma grande intelectual, com uma bela e considerável trajetória. Mas apenas após publicar uma coleção de livros que se esgotou e precisou ser reeditada, além de escrever inúmeras colunas em grandes revistas de muito reconhecimento, é que ela pode publicar numa grande editora. Ela já tinha um imagem, um público e provou que vende. Assim é a lógica capitalista, que se apropria de qualquer coisa que se mostre lucrativa.
Ela continuar sendo uma das pouquíssimas pessoas negras a ser publicada por grandes grupos editoriais reforça a lógica capitalista-meritocrática, onde o referencial é a partir da “maioria”, apesar da situação da maioria não ser contextualizada historicamente. É por “competência” que há tão poucos autores negros publicados em grandes editoras, ou por condições históricas ignoradas até hoje?
Assim são, também, nossas bibliotecas, reproduzindo a lógica sistêmica. Não há impessoalidade na catalogação, indexação, seleção. Um acervo/uma biblioteca/uma coleção é o reflexo de uma sociedade, de contextos históricos, do conhecimento e ideologia dos profissionais, como é o caso dos bibliotecários, que por ali passaram.
Grandes distribuidoras e fornecedores de e-books normalmente não negociam com editoras pequenas ou independentes, o que elimina boa parte dos livros de populações negras, indígenas, lgbtq+, marginais/periféricas da concorrência numa licitação pública, por exemplo, onde está a maior parte dos recursos financeiros para compra de livros no Brasil. Isso já elimina parcialmente a possibilidade de incluir expressivamente a literatura antirracista em acervos de bibliotecas de instituições públicas.
Não há neutralidade ou impessoalidade no trabalho de técnicos e gestores de informação. A seleção é, sempre, uma função ideológica. Ela parte das experiências, referências e crenças de quem seleciona. Ninguém seleciona o “pior” do seu ponto de vista, e sim o que acredita ser melhor, seja para publicar em sua editora, para disponibilizar para a venda em uma livraria, para leitura própria, indicar/presentear ou o que quer que seja. Se posicionar como alguém isento, impessoal, é fazer as escolhas mais fáceis, sem reflexão, sem olhar para o seu lugar no mundo, isto é, manter e reproduzir escolhas hegemônicas, “clássicas”, consagradas e, portanto, opressoras.
Manter-se neutro não é o que nos disseram – é, sim, corroborar com o sistema vigente. Por isso mesmo romantizam essa posição e nos dizem que é a mais adequada. Sendo assim, é preciso um movimento de toda a sociedade, e em especial dos profissionais da informação em relação a se atualizar quanto a debates sociais, compreender seu papel político e seu lugar na luta antirracista. O racismo é estrutural, está em todas as camadas da sociedade e não é possível mudá-lo sem encará-lo – ou sem encarar-se.
Qualquer um de nós reproduz o racismo, ainda que inconscientemente. É o movimento por observar e se questionar que pode fazer a diferença na sociedade que desejamos. Parafraseando Grada Kilomba (A Máscara, In: Memórias da Plantação), a consciência sobre o racismo não deve ser vista simplesmente como uma questão moral. É um processo psicológico que demanda trabalho. “Por isso, em vez de fazer a clássica pergunta moral: ‘Eu sou racista?’ e esperar uma resposta confortável, o sujeito branco deveria se perguntar: ‘Como eu posso desmantelar os meus racismos?’”.
Peço licença à Grada pra dizer que os sujeitos negros ou não negros no Brasil devem também fazer-se essa pergunta, pois muitos poderiam isentar-se por afirmar que “não há brancos no Brasil”. Para os que gostam do clichê racista “o racismo começa nos próprios negros”, gostaria de lembrar que nascer negro não significa ter consciência disso e ter consciência disso não significa tornar-se automaticamente antirracista. É preciso estudo, trabalho e um esforço psicológico para fazer um movimento para fora dessas práticas sociais racistas. É preciso começar a questionar o que conhecemos, e fazer as perguntas necessárias, conforme disse Grada. E, assim, “Tal pergunta, por si só, já inicia esse processo.”