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Olinda, a mosca ou a sopa?

RECIFE – Com os títulos de Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO e Primeira Capital Brasileira da Cultura e Monumento Nacional, Olinda tem muito a oferecer para seus turistas e habitantes, porém a realidade é outra. A irreverência e a espontaneidade são marcas da cidade que ostenta a pluralidade e o choque dos conflitos, entre a cultura tradicional e a cultura contemporânea, em sua rotina habitual. Procurada pelo ponto turístico mais visitado do Estado, Olinda vende para o turista uma cidade de festas, sons, sabores, cores e tambores, mas isso pouco se vê no dia-a-dia. Recorrentemente, turistas aproveitam os 9,73 km² das paisagens bucólicas do Sitio Histórico durante o dia, mas quando anoitece e se iluminam as ruas, tudo fecha e todos se recolhem atrás dos muros centenários, forçando a realidade contrastante com a condição cultural nata da cidade. A insegurança e a falta de atrações culturais na Cidade Alta tornaram-se um problema sem resolução e aparentemente de magnitude desprezada e oprimida pela prefeitura do município.

A fim de mudar esse cenário, Edival Hermínio da Silva, o Véio, há 10 anos promove em seu bar o evento Quinta do Chorinho. Inicialmente o projeto teve apoio e organização do Mestre Salu e depois de seu falecimento foi tocado apenas pela Bodega, estabelecimento de propriedade do senhor Hemínio. Em paralelo a esse projeto, foi criado em 2006 a Terça do Vinil, onde o DJ 440 toca vinis dos freqüentadores do bar e do comerciante Shaolin, que leva sua mercadoria (vinis) para ser vendida e trocada por outras, entre os clientes do bar.

Na Bodega de Véio, turistas e moradores confraternizam e desfrutam do melhor que a cidade poderia oferecer: a cultura pernambucana e olindense. A Bodega, localizada no coração do Centro Histórico, entre ladeiras e casarões antigos, tornou-se o ponto mais freqüentado da cidade, o berço da nova boemia olindense. Lá se reúnem jornalistas, poetas, artistas, intelectuais, políticos, estudantes, escritores, empresários e toda a nata pensante e atuante de Olinda e da RMR (Região Metropolitana de Recife), em noites que além de transpirar cultura e arte, inspiram criações e movimentos.

Todo mês, Edival Hermínio, investe cerca de R$ 3.000,00 (três mil reais) para promover shows e recitais em seu estabelecimento, contratando artistas de todos os seguimentos para se apresentar em seu bar, procurando atender o público que sempre lota a rua para assistir e se divertir. “O Véio faz o papel de agente cultural na Cidade Alta, ele preenche a lacuna da prefeitura”, comenta Edson Gomes, amigo e cliente. E como proclama o próprio senhor Hermínio pelos quatro cantos da Cidade Alta, seu trabalho é feito por prazer e por amor à cultura popular e à música, sendo, por esse motivo, ele próprio patrocinador de diversos blocos carnavalescos de Olinda. E com esse tipo de trabalho sendo realizado, a Bodega hoje é considerada um pólo cultural, um ponto turístico e a segunda casa de muitos “amigos do Véio”, como assim são chamados seus clientes.

A polêmica

Porém, no último dia 14 de Outubro (sexta-feira), Edival Hermínio foi surpreendido com a solicitação de comparecimento na Secretária de Controle Urbano para participar de uma reunião onde seria tratada a proibição dos eventos em seu estabelecimento. A ação foi reiterada pela SODECA, Sociedade Olindense em Defesa da Cidade Alta, e por alguns empresários da Rua do Amparo, que se sentem prejudicados com a movimentação que os eventos trazem ao local, sob alegação de perturbação da ordem e da tranquilidade da região com o respaldo da Lei Municipal 5.306/2001.

Surgiram daí posicionamentos diversos de moradores, comerciantes, amigos e clientes do local. Contra a proibição, a moradora e proprietária da sorveteria Saborear-te, Laiza Vilaça interpreta a resolução da prefeitura como absurda, pois, segundo ela, a Bodega de Véio favorece o turismo e a segurança local; seus eventos nunca chegaram a ultrapassar os horários estabelecidos por lei, com encerramento dos shows às 22h e o fechando da casa pontualmente às 23h.

Anésia, vizinha da Bodega há 27 anos, conta que o Ministério Público já havia feito reuniões com 20 comerciantes locais sobre a questão da poluição sonora e ressaltou que Edival sempre levou a risca as recomendações dessas reuniões. Ela frisa ainda que os problemas dos quais se queixam os reclamantes não são de culpa do estabelecimento e sim da (falta de) educação de alguns freqüentadores, que não se importam em urinar na rua, tampouco em jogam latas de cerveja pelos córregos. Sem contar que culpa maior pode-se se atribuir à ineficiência da prefeitura, que tem conhecimento da movimentação do local há anos e nem sequer tomou qualquer providência no sentido de organizar o trânsito, facilitar o estacionamento de carros nas proximidades do local ou mesmo da limpeza efetiva. Aliás, o que foi aqui chamado de ineficiência pode ser facilmente substituído pelo termo descaso, visto que a ausência dessas ações por parte da prefeitura é perfeitamente sanada em tempos de Carnaval. Para a moradora essa proibição é fruto de inveja de alguns empresários locais, devido à grande adesão e fidelidade do público aos eventos. Por outro lado, Izabela Maranhão, moradora e funcionária do restaurante Flor do coco, posiciona-se a favor da resolução e fala que os negócios – do restaurante e da pousada – são diretamente prejudicados com o movimento da Bodega de Véio. “Alguns hospedes solicitam na reserva quartos silenciosos, por já saberem como é aqui a rua. A rua vira uma ‘zona’; o Véio é uma mercearia e não um bar”, diz ela que crê que o caráter do estabelecimento é de outra natureza e se descaracteriza ao promover os eventos.

A repercussão

Além de toda a repercussão local, a notícia da proibição espalhou-se pela internet e vários movimentos de protesto foram iniciados nas redes sociais. “Olinda tá precária demais, vivendo da fama de ser um sítio cultural. E quem faz a cultura de verdade em Olinda está morrendo pela falta de atenção do poder público e privado; vamos mudar!”, agita a banda Eddie nos comentários da página da Bodega em uma rede social. Na mesma página Carlos Lopes diz: “morei mais de 35 anos ‘nas Olindas’ e a SODECA era chamada de Sociedade dos Desocupados da Cidade Alta. Enquanto em outros lugares o Véio seria parte do patrimônio cultural, aqui sofre intervenção”. Catarina Dee Jah, cantora e moradora da Rua do Amparo, alerta que “O esvaziamento cultural é muito mais grave do que uma dúzia de vinis e um chorinho. São 14 casas fechadas nesta rua que outrora servia de moradia e sede para diversos artistas, carnavalescos e gente de sensibilidade. A culpa da proibição não é da Bodega, não é do som e sim da falta de educação das pessoas que a frequentam. Cansei de ver marmanjo mijando na porta da minha casa; cansei de abrir as janelas e ver copos cheios de resto de bebida nela. O problema é muito maior!”.

Em relação à situação, o Véio, Edival Hermínio da Silva, se pronuncia dizendo que lamenta pela resolução da prefeitura de Olinda e comenta que será uma grande perda, mas que continuará defendendo a cultura popular. Ressalta que acredita que a prefeitura deveria dar apoio a essas iniciativas e não coagi-las. Segundo Edival Hermínio a secretaria recomendou que fosse parado por algum tempo a realização dos eventos e que a programação retornasse depois de algumas semanas, mas que não fossem todas as semanas, ou seja, que os eventos fossem intermitentes. No que Edival Hermínio discordou, pois acredita que seus clientes não iriam se acostumar com a mudança e também pelo caráter incerto da produção, visto que existem pessoas que trabalham com a realização dos eventos. Como é o caso de Shaolin, que vende seus vinis durante as festas. “Quando vi Shaolin chegar com os vinis quase choro. Esse é o ganha pão dele e assim como ele, existem outras pessoas que ganham seu dinheiro disso que acontece aqui”, desabafa o Véio. “O projeto vai continuar em um bar lá na orla, mas já tem gente me dizendo que não é a mesma coisa. Certa vez a prefeitura trouxe aqui uma senhora do Ministério da Cultura. Ela disse que seria dado andamento no processo de cadastramento da Bodega como Ponto de Cultura, mas nunca mais tive notícias desse processo. Penso como seria útil agora”, lamenta ele.

Ao observar as paredes da Bodega vemos os retratos de sua história, de 1981 até hoje, dentre eles fotos dos “amigos do Véio”, fotos dos eventos, da família, de turistas ilustres, certificados, condecorações e homenagens. Dentre as condecorações encontra-se o Título de Cidadão de Olinda, proferido pela Prefeitura e pela Câmara dos Vereadores pelo trabalho prestado a sociedade; o prêmio da revista Veja na categoria Botecos e a Menção Honrosa da Polícia Militar de Pernambuco pelo trabalho prestado em apoio ao turista e no auxilio das atividades da polícia. A Bodega do Véio não é apenas um bar ou uma mercearia, é patrimônio de Olinda. É um lugar onde se pode desfrutar de um bom atendimento, de uma boa gastronomia, de boas músicas, de boas conversas e de cultura, coisa que não se vê muito por Olinda todos os dias.

Possíveis soluções

Para Edival Hermínio a solução é muito simples e ele acredita que com o trabalho da prefeitura tudo pode ser resolvido. Para ele, algumas soluções como um empenho conjunto em realizar um trabalho de educação e conscientização dos visitantes do Centro Histórico, bem como efetivar um policiamento nas ruas do entorno, fazendo com que estas sirvam de escoamento para o fluxo de pessoas e de veículos nos dias de evento, além de proibir o estacionamento que prejudica a circulação na rua, também disciplinando o trânsito, configuram medidas que ajudariam a resolver a grande lotação da rua. “Eu apoio a prefeitura, mas acredito que deveríamos sentar e conversar: a Bodega, moradores, empresários insatisfeitos e sociedade”, sugere ele.

Para Chico Arruda, geógrafo e professor da UFPE, a solução seria o controle dos problemas: “o controle sonoro, o controle do fluxo, o controle do comércio ambulante, o controle com vista para o equilíbrio”. Segundo ele, a SODECA tem sua importância para a cidade, mas deve estudar melhor suas ações e atitudes, pois as manifestações públicas são marcas das cidades históricas.

O que se vê com a proibição é o descaso da prefeitura com o incentivo à cultura. Ironicamente a 1ª Capital Cultural Brasileira depara-se com ações que nada mais fazem que tolher as mais espontâneas expressões culturais que insistem em afirmar a essência da cidade. A cidade que foi palco contra a opressão, onde se ouviu o primeiro grito de república das Américas e onde negros, índios e brancos lutaram juntos contra a ocupação Holandesa, hoje oprimi a opinião e a manifestação pública acerca da Lei Municipal 5.306/2001, conhecida como a lei do silêncio. Maracatus, agremiações e expressões culturais que envolvam sons, que tanto encantam no carnaval, são coibidos de ensaios com penalidade de multa. Projetos independentes, que não chegam a custar qualquer centavo para a Prefeitura, mas dos quais a sociedade participa assiduamente, são podados por grupos insatisfeitos por motivos vis. O turista que já não passa mais de dois dias em terras olindenses, agora que não passará mais de um. Olinda tem muito a mostrar, mas tem que se fazer vista por mais do que meros quatro dias do ano em que os olhos do mundo se voltam pra expressão popular do povo brasileiro. Que a política cultural oficial olindense deixava muito a desejar, já era de conhecimento de todos. Mas o que conhecemos agora é a face hipócrita de uma política que procura sustentar o status cultural não só não incentivando, como inibindo iniciativas de muitos que acreditam que o título conferido à cidade em 2006 tem alguma fundamentação. Sabemos que a perda maior não é da Bodega e sim de Olinda como um todo; é do povo, é da cultura popular. Resta-nos saber quem é que ganha com esse estorvo fútil e fundamentado, unicamente, na falta de interesse dos órgãos competentes em efetivar a obrigação que lhes cabe, independentemente de haver ou não os eventos da Bodega. O que se vê hoje são os grupos que fazem o carnaval de Olinda ser o que é, procurar Recife para ensaiar, já que em sua terra de sede, não pode. E a história repete os fatos, enquanto Recife ferve, Olinda branda.

“Olinda é pra os olhos
Não se apalpa
É só desejo
Ninguém diz
É lá que eu moro
Diz somente é

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