Por Julieta Mortati, do Opera Mundi | Tradução Mari-Jô Zilveti
Luis Sanjurjo era professor na faculdade de comunicação da UBA (Universidade de Buenos Aires) quando, há seis anos, em uma de suas aulas, uma aluna que trabalhava no ministério da Justiça comentou que a bibliotecária do presídio de Ezeiza, na Grande Buenos Aires, procurava alguém que pudesse fazer um seminário de leitura com as detentas. Ela via que as mulheres que cumpriam pena apenas retiravam livros de autoajuda e romances água-com-açúcar, e gostaria de tentar gerar algum interesse por outros gêneros de literatura.
Sanjurjo se interessou pela ideia: apresentou um projeto para o seminário e, durante a empreitada, se deu conta de que outra coisa estava nascendo. “Percebi que minha tarefa não era um trabalho estritamente de leitura, porque relacionávamos os textos com o corpo, a história e a memória. A necessidade de dar forma às inquietudes que surgiam na oficina fez com que a experiência se materializasse no primeiro número da revista”, relata Sanjurjo. A revista Elba (sigla de “Em Los Bordes Andando”; em tradução livre, “Caminhando pelas Beiradas”) foi apadrinhada por Taty Almeida, escritora e ativista argentina e integrante das Mães da Praça de Maio, e Osvaldo Bayer, escritor e jornalista argentino. Sobre o nome da publicação, Sanjurjo explica: “Foi um conceito que nasceu em uma reflexão filosófica e estratégica que nos permitiu trabalhar em uma instituição tão rígida e refratária a mudanças como uma casa de detenção. Porém, por outro lado, toda cadeia tem fissuras que têm a ver com o âmbito da expressão, por cujas fronteiras decidimos caminhar”.
No primeiro número da revista com os textos da oficina das mulheres, Sanjurjo escreveu: “Levamos adiante a oficina convencidos da importância desta forma de fazer cultura, na qual recuperar a voz é o primeiro passo. E aqui estamos, mudando de posição e ocupando nosso lugar de ‘sujeitos da comunicação’.” A revista chegou à prisão Marcos Paz, também na Grande Buenos Aires, e ali a experiência foi replicada.
Yair Biela, que morou na rua quando criança e esteve preso oito anos, e hoje é grafiteiro e compositor de tango, começou a assistir às oficinas em Marcos Paz. Sanjurjo – que também é coordenador do Observatório de Políticas Públicas do Centro Cultural de Cooperação da capital argentina – e Biela impulsionaram neste ano a criação da cooperativa En Los Bordes Andando. “Começamos a perceber o quão difícil era sustentar as iniciativas. Era muito caro proteger as pessoas que iam dar as oficinas. E as mudanças no serviço penitenciário tornavam difícil a tarefa com os detentos, uma vez que em seis anos passamos por quatro gestões diferentes”, diz Biela. A cooperativa, além de ser um espaço de debates entre os membros, permite que as pessoas que ministram as oficinas possam cobrar um salário como por seu trabalho. “Na próxima leva de oficinas, a equipe que as organizará será formada pelas pessoas que estão participando delas agora. Então, os próximos salários serão para elas, e isso é muito importante porque constrói-se uma espiral de inclusão. As cooperativas são ferramentas fundamentais para a inclusão social, porque não dependem de empregador, são autônomas e tiram o estigma das pessoas condenadas socialmente pela máquina social que gera mais confinamento”, aponta Biela.
Sanjurjo opina que “a cooperativa é uma ferramenta política que serve para dar visibilidade à agenda dos contextos do confinamento, além de ser uma fonte de inclusão para quem esteve privado de liberdade e permitir construir uma ponte firme de debate com o mundo exterior, já que a cadeia não é um mundo social exterior, mas está estreitamente vinculada com o que acontece na sociedade. O estigma impede que se gerem alternativas de inclusão desde as esferas simbólica, afetiva e do trabalho.”
Há, no entanto, outro problema. Na Argentina, a Lei de Cooperativas proíbe a participação no conselho de administração a quem tenha cumprido pena por roubo ou furto até dez anos depois da pessoa ter saído da prisão. Para permitir que os ex-detentos tenham acesso ao conselho da cooperativa, a deputada María Carmen Carrillo, do partido Frente para a Vitória, apresentou um projeto de modificação desse artigo da lei 20.337 no Congresso argentino. “É um absurdo, porque você dobra a condenação de alguém que já pagou pelo que fez. Este artigo discriminatório contradiz a Constituição no que diz respeito à inserção no mercado de trabalho. A cadeia não é uma fábrica de escravos baratos. Se o trabalho é dignidade, e se o trabalho ensina quanto custa ganhar a sua própria grana, é muito provável que os rapazes saiam do delito através da cultura, do trabalho e da educação. Insegurança é não ter acesso à saúde, é não poder dar de comer para a sua família”, diz Biela.
Para a cooperativa, a Elba é uma parte fundamental do projeto. A revista, que começou sendo gratuita, agora tenta converter-se em uma fonte de trabalho. “Em um primeiro momento, nós a usávamos para dar visibilidade aos problemas e ao potencial criativo das pessoas envolvidas. Investíamos nela a cada dois meses, e a ideia era sair para entregá-la gratuitamente. Como a cooperativa é uma figura empresarial de inclusão econômica e de trabalho, ela nos permitiu tomar decisões importantes. As capas são feitas com estêncil, então nenhuma é igual à outra. Por isso elas têm o status de um objeto de arte e podemos vendê-las por um preço mais alto. Fizemos uma seleção dessas capas e a reproduzimos em uma tiragem maior de mil exemplares a um preço mais barato, para que as pessoas sigam trabalhando”, explica Biela. A Elba é publicada uma vez por ano, e cada edição aborda os temas trabalhados na oficina, como o corpo, a cidade, o tempo e o poder (para a última edição, o serviço penitenciário lhes comprou livros do filósofo francês Michel Foucault).
Quinze pessoas começaram com a revista, e hoje, seis anos depois, são mais de 70. Todas participam nas diversas oficinas – pensamento, expressão, jornalismo, cinema, música e estêncil – organizadas pela En Los Bordes Andando e realizadas na unidade 31 do Complexo Federal de Detenção de Mulheres de Ezeiza e nas unidades 24 e 26 do Complexo Federal de Detenção de Jovens Adultos de Marcos Paz. O sétimo número de Elba, dedicado às paixões, foi apresentado em maio deste ano no Centro Cultural da Cooperação de Buenos Aires. Da mesa de debates, participaram, entre outras pessoas comprometidas com a causa, Silvina Prieto, que cumpre pena perpétua em Ezeiza há 13 anos e recebeu um prêmio literário em dezembro do ano passado. Sanjurjo resume em uma história a experiência destes anos: em uma das primeiras oficinas nas quais trabalhavam com a temática do corpo, ele teve a ideia de levar uma dúzia de flores de jasmim. Silvina Prieto, que era uma participante bastante ativa, ficou de lado, em silêncio. Sanjurjo se aproximou para lhe perguntar se tinha acontecido alguma coisa: “Ela me disse que fazia oito anos que não sentia o perfume de jasmim. Acredito que esta anedota ilustra o poder que te dá recuperar a palavra. Dentro da cadeia, há uma extinção da identidade, da história. E a literatura é uma ferramenta de sobrevivência fundamental na qual você encontra um tom de vida para viver e para se expressar. E na vontade de recuperar a voz, há um gesto de resistência que lembra que somos humanos e que temos algo a dizer”.
E, com este exemplo, explicou sua batalha: “A escrita não é apenas uma ferramenta contra os estereótipos, mas uma ferramenta que tem a ver com o reconhecimento dos valores simbólico e material do trabalho. Escrever não é apenas um gesto poético, mas, para nós, é algo estratégico, que tem a ver com a dignidade e com sentir-se valorizado pelo que se diz”.
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