Em todo o mundo, os profissionais de bibliotecas e centros de informação estão fazendo o melhor possível, tanto pessoal quanto profissionalmente, para lidar com a pandemia do COVID-19. Mesmo que algumas bibliotecas estejam – cautelosamente – começando a afrouxar as restrições, outras estão começando a adotá-las.
Naturalmente, o foco está no curto prazo – como manter a equipe, os clientes seguros, como continuar oferecendo serviços da melhor maneira possível, como gerenciar a incerteza. Para muitos, parece difícil pensar além dos próximos .
Ao mesmo tempo, já está claro que este é um momento histórico, com medidas sem precedentes sendo tomadas por governos, empresas e indivíduos. Estas medidas estão tendo um enorme impacto no presente, mas e o futuro? Até que ponto o que estamos vivenciando hoje não apenas “será” a história, mas “fará” a história?
Este artigo tem como objetivo identificar dez fatores de desenvolvimento que estamos vendo hoje, explorando o que eles podem significar em termos de tendências que podem moldar o futuro das bibliotecas. Estas ideias não são – e não podem ser – exaustivas, e certamente podem ser melhoradas.
1) Restrições aos deslocamentos mudaram dramaticamente nossas vidas – voltaremos ao normal?
Limites para onde podemos ir, como e com quem podemos ir estão afetando uma grande parte da população global. No nível pessoal, algumas pessoas estão sendo mantidas longe da família e dos amigos, inclusive em momentos difíceis. Muitos não conseguem trabalhar e enfrentam uma perda de meios de subsistência que, que, se não receberem o apoio de outras pessoas, pode ser crítica.
Embora muitos possam chegar se recuperar assim que a pandemia terminar e possam voltar ao trabalho, outros tantas não terão a mesma sorte. Enfrentamos o risco de aumento do desemprego, falta de moradia e pobreza no futuro. Muitos precisarão de treinamento, apoio ou simplesmente um local para fugir de tudo enquanto procuram reconstruir suas vidas e carreiras.
Diante disso, a necessidade de serviços públicos gratuitos e acolhedores, como bibliotecas, capazes de ajudar as pessoas a encontrar novas oportunidades de trabalho ou negócios e de oferecer um momento de descanso, deverá ser mais alta do que nunca. Iniciativas como incubadoras de empresas, suporte na procura de emprego ou em programas mais amplos de treinamento provavelmente serão importantes.
2) Muitas de nossas atividades se tornaram online – elas permanecerão nesse modelo?
Assim como muitas bibliotecas restringiram ou deixaram de circular materiais físicos, elas viram paralelamente uma demanda muito maior por conteúdo digital. Eles estão trabalhando duro para identificar maneiras de apoiar o aprendizado online para estudantes de todas as idades, muitas vezes superando barreiras. Em seu próprio trabalho, mesmo aqueles que antes eram mais resistentes a novas ferramentas e tecnologias estão se acostumando ao trabalho e à comunicação remotos.
Como, no entanto, as restrições não durarão para sempre, muitos já estão ansiosos pela possibilidade de trabalhar cara a cara com usuários e colegas, além de voltar a lidar com novos livros e materiais novamente. Mas, as possibilidades do digital – para aprender, pesquisar e acessar todas as formas de cultura – ficarão mais claras para todos, e a conveniência pode substituir a necessidade como uma razão para o uso de ferramentas online. É claro que elas trazem consigo preocupações contínuas sobre como proteger a privacidade no processo.
Parece provável que o papel das bibliotecas como provedores de informações e serviços tanto digitais quanto físicos – venha a ser confirmado. Resta saber se as condições mais favoráveis estabelecidas pelos titulares dos direitos de acesso a obras eletrônicas continuarão (ou até que ponto continuarão imprimindo obras físicas) e se os próprios orçamentos das bibliotecas voltarão aos gastos com acervos físicos.
3) Os governos estão investindo bilhões em economias – como eles vão recuperar este dinheiro?
Como destacado acima, as restrições necessárias para limitar a propagação da pandemia estão tendo um grande impacto na capacidade de muitos ganharem a vida. Indivíduos e empresas do setor cultural, por exemplo, estão sendo duramente atingidos pela falta de audiências ou visitantes físicos. Em muitos países, os governos tentaram agir oferecendo empréstimos ou subsídios para cobrir custos e pagar salários.
Embora essas medidas sejam bem-vindas no curto prazo, isso deixa em aberto a questão de como esses mesmos governos lidarão com a dívida contraída no longo prazo. Com as receitas fiscais provavelmente também baixas, parece inevitável que muitos procurem cortar gastos públicos, ameaçando as bibliotecas.
As bibliotecas precisarão defender que elas – juntamente com outros serviços importantes – têm o potencial de fazer parte da recuperação de modo a receber o suporte necessário para fazer isso. A experiência dos anos após a crise financeira de 2008 foi bem negativa para muitos, embora pelo menos o dano bem documentado causado possa ajudar a garantir que os políticos pensem duas vezes.
4) A educação foi interrompida e atrasada – podemos limitar os efeitos desse trauma?
Graças ao trabalho rápido de muitas instituições de ensino – incluindo-se aí suas bibliotecas -, muito do ensino mudou para as plataformas online. As aulas e palestras são fornecidas por videoconferência, trabalhos de casa e tarefas definidas e recebidas por e-mail ou plataformas dedicadas, e algumas até propõem exames virtuais.
No entanto, é claro que, para aqueles que chegam ao final dos anos letivos em maio ou junho [no caso dos Estados Unidos ou novembro e dezembro, no caso do Brasil], não é um ano normal, levando a preocupações sobre como garantir que as crianças não fiquem para trás ou percam .
Com o passar do tempo, é provável que exista uma grande necessidade de apoio aos estudantes que desejam recuperar ou tomar novas decisões sobre seus futuros. As oportunidades de aprendizado on-line e / ou ao longo da vida desempenharão um papel fundamental nisso – as bibliotecas têm a reputação e os materiais para apoiar ambos, como provedor ou plataforma para terceiros. Dessa forma, eles podem ajudar a garantir que a interrupção temporária não se transforme em dano permanente.
5) Testagem, rastreamento e emergência eficientes estão ajudando a combater a pandemia – mas os governantes irão voltar atrás nessas medidas tão logo essa situação mude?
Os governos em todo o mundo destacaram o valor dos testes e do rastreamento de contágios como meio de retardar – e em alguns casos conter – a propagação da pandemia. Ao coletar informações sobre a saúde e a vida das pessoas, elas esperam poder isolar melhor as pessoas em risco e tratar os infectados. Os limites da liberdade de locomoção visam parar a infecção.
Tais medidas costumam fazer parte de pacotes de poderes de emergência, permitindo que os governos tomem todas as providências que considerem necessárias nesse contexto. Às vezes – lamentavelmente, estas providências foram acompanhadas por retórica conservadora.
No entanto, nem sempre parece claro quais são as garantias de que essas medidas especiais serão suspensas na primeira oportunidade segura. Isso faz uma grande diferença. A possibilidade de coletar informações sobre os cidadãos e contornar os procedimentos normais pode ser útil na luta contra o Covid-19, mas também pode servir a finalidades menos positivas.
As bibliotecas já podem ajudar cidadãos e parlamentares a acompanhar o que os governos estão fazendo – um primeiro passo vital para a responsabilização – e precisarão continuar fazendo isso durante a fase de recuperação. Os próprios governos podem tentar se apegar a poderes extraordinários por mais tempo do que deveriam. As bibliotecas precisarão estar prontas para lembrá-los – e aos cidadãos – da necessidade de retornar a altos níveis de proteção de dados, privacidade, liberdade pessoal e acadêmica e abertura ao mundo o mais rápido possível.
6) Ficou claro que leis e práticas não estavam prontas – será que vamos aprender as lições?
Uma das mais importantes preocupações para muitos no campo das bibliotecas tem sido como lidar com o fato de que as leis de direitos autorais – e, em particular, as exceções e limitações seguidas pelas bibliotecas – frequentemente estão firmemente presas à era analógica. Com as atividades locais agora paralisadas, as bibliotecas muitas vezes se viram incapazes de fornecer serviços pelos quais já pagaram, ou que seriam completamente incontroversos se fornecidos presencialmente, como, por exemplo, contação de histórias.
Existem etapas bem-vindas – por meio de acordos de lei branda e ação unilateral de alguns titulares de direitos – para melhorar tais questões, mas está claramente longe do ideal que a capacidade das bibliotecas de prestar serviços em tempos de crise se baseie em boa vontade e bons relacionamentos.
O desafio no futuro será garantir que as lições da crise sejam aprendidas e que as bibliotecas e seus usuários não enfrentem mais dificuldades em trabalhar com ferramentas digitais e analógicas. A adaptação adequada das leis de direitos autorais para a era digital será uma parte essencial disso, embora certamente possamos esperar esforços para contrapor-se a isso, a fim de deixar as decisões nas mãos dos titulares de direitos.
7) As fraquezas e a incompletude em nossa infraestrutura digital se tornaram claras – vamos corrigi-las?
Sem dúvida, mais pessoas e mais do que nunca, e com mais elementos de suas vidas pessoais e profissionais, são capazes de continuar agora em suas casas. No entanto, esse claramente não é o caso de todos. Isso não ocorre apenas porque seus meios de subsistência dependem de atividades que foram forçadas a fechar, mas também porque eles não têm acesso de boa qualidade à Internet e as habilidades necessárias para usá-la.
Em um momento em que a conectividade pode fazer a diferença entre poder conversar com a família e os amigos, continuar trabalhando e manter-se abastecido e saudável, o impacto da divisão digital está mais claro do que nunca. As pessoas que vêm aos estacionamentos das bibliotecas usar a sua rede para baixar tarefas pessoais – ou filmes – são simplesmente exemplos das falhas de nossa infraestrutura atual.
Podemos esperar que esta crise leve a maiores investimentos na conexão de comunidades – um poderoso estímulo econômico. Com isso, será necessário solicitar suporte para o desenvolvimento de habilidades, tendo as bibliotecas como um provedor potencial óbvio. Precisamos evitar que aqueles que ficam online pela primeira vez não percebam o potencial ou sejam vítimas de golpes e outros perigos.
8) A necessidade de compartilhamento global de informações é óbvia – vamos torná-lo permanente?
Muitos de nós têm sido visitantes regulares de sites que compartilham informações mais recentes sobre a disseminação da pandemia. É claro que, além de mapas e estatísticas gerais, também há uma enorme quantidade de dados e pesquisas sendo compartilhadas entre autoridades em todo o mundo, em um esforço para entender o que está acontecendo e para avançar no trabalho em direção a tratamentos eficazes e até a uma vacina.
Este trabalho foi apoiado por amplos esforços para suspender acessos permitidos apenas a usuários pagos e outras restrições no acesso a artigos e outros trabalhos relacionados ao COVID-19. Com o tempo, também ficou mais fácil reutilizar trabalhos, por exemplo, no curso de garimpagem de texto e dados.
Resta a questão de saber se essas restrições reaparecerão após o término da crise ou se veremos uma mudança duradoura para um ambiente mais aberto de compartilhamento de informações. Parcialmente, isso dependerá de leis, por exemplo, deixando claro que atividades como garimpagem de texto e dados não devem exigir novos pagamentos ou autorização. Em parte, serão necessárias mudanças nas práticas e nos modelos de negócios. As bibliotecas precisarão manter a pressão em favor da abertura.
9) A poluição diminuiu e a qualidade do ar aumentou – aprenderemos a viver vidas mais verdes?
Um dos raros pontos positivos da pandemia foi a queda nas emissões dos transportes e da indústria, levando à melhoria da qualidade do ar e da água em muitos lugares. Sem a possibilidade de ir trabalhar, visitar amigos ou família ou sair de férias, as pessoas estão emitindo menos carbono e produzindo menos outros produtos químicos poluentes. Conferências e reuniões mudaram para online, e as pessoas estão descobrindo atrações locais, pelo menos onde podem.
É claro, uma vez que as restrições sejam levantadas, muitos vão querer aproveitar a primeira oportunidade de visitar os entes queridos novamente e voltar à vida normal. Mas com as pessoas se acostumando a limitar a condução e os voos por necessidade, podemos esperar que o padrão de aumento das emissões globalmente seja interrompido ou pelo menos diminuído, não?
Quando reabrirem, as bibliotecas terão a oportunidade de redobrar seus esforços para promover estilos de vida verdes, bem como reunir evidências que apoiam os esforços contínuos para entender e lidar com as mudanças climáticas. Alguns podem continuar com o suporte que começaram a oferecer aos usuários em termos de ferramentas e conselhos, para que possam continuar trabalhando remotamente, reduzindo assim as viagens. Também podemos esperar que as pessoas valorizem mais do que antes suas áreas locais e o que há para fazer lá, novamente limitando as viagens que emitam poluição.
10) O valor da cultura no bem-estar é claro – continuaremos a investir para torná-la realidade?
Como destacado acima, as bibliotecas (e editores) estão vendo grandes aumentos na demanda por suas ofertas digitais. Em um momento de estresse – geralmente associado à inatividade forçada – as pessoas querem se distrair, ser informadas ou inspiradas por obras criativas, contemporâneas e históricas. Exposições virtuais estão ocorrendo, algumas até lembrando como as sociedades lidaram com pandemias no passado.
Bibliotecários e arquivistas também já estão trabalhando duro para coletar notícias e outros materiais que ajudarão futuros pesquisadores a entender os eventos e experiências de hoje. Isso pode até nos ajudar a melhorar nossas respostas na próxima vez que enfrentarmos esse desafio.
Mas será que essa consciência da importância da cultura durará no futuro? Isso certamente é esperado, embora a capacidade dos criadores e das bibliotecas de fornecer isso dependa muito se eles continuam recebendo o suporte necessário. As leis e práticas precisarão mudar para facilitar isso, mas pelo menos como a crise mostrou, não há falta de energia e inventividade aqui.
Como exposto na introdução, ainda estamos muito no meio da crise. Com o foco quase exclusivamente nas próximas semanas, certamente é muito cedo para dizer com confiança o que virá a seguir. No entanto, o que acontece agora moldará o futuro. As ideias acima estabelecem algumas tendências em potencial, que provavelmente irão interagir umas com as outras à medida que avançamos no futuro.
As bibliotecas correm o risco de ver uma demanda crescente enquanto precisam lutar muito pelos recursos existentes? Elas serão capazes de acompanhar – e apoiar – uma economia e sociedade cada vez mais digitalizadas, sem mudanças nas leis? O que será necessário para manter – ou restaurar – os principais valores da biblioteca quando a crise terminar? Aguardamos ansiosamente suas opiniões e ideias.
*Publicado originalmente no Library Policy and Advocacy Blog da IFLA sob o título “Now and Next: What a Post-COVID World May Bring for Libraries” | Tradução: Chico de Paula | Revisão: Gilda Queiroz